sexta-feira, 25 de março de 2005

ALGUMAS COISAS BOAS, OUTRAS INEVITÁVEIS


1.Depois de três meses de interregno na governação do país - uma especialidade portuguesa, de cada vez que muda o governo - a nova maioria está finalmente apta a governar. Começa com a grande notícia e o grande alívio do fim, para todos os efeitos práticos, das regras rígidas do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Luís Campos e Cunha não vai ter de viver as angústias por que passou Manuela Ferreira Leite, nem o descontrolo por que passou Bagão Félix. Se cumprir o prometido, tem o prazo de uma legislatura, nem sequer para suprimir, mas apenas para "estabilizar" (seja isso o que for) o défice das contas públicas. Há quem esteja muito satisfeito com a notícia; eu, sabendo como a casa gasta, temo pelo regresso do laxismo, do desperdício e da inflação. Uma vez mais, ou muito me engano, ou os portugueses irão rapidamente concluir que, afinal, nada é verdadeiramente urgente e nada é tão grave que não possa ser resolvido com a compreensão, o apoio ou os dinheiros de Bruxelas. Cabe ao ministro das Finanças não deixar que a opinião pública conclua que acabou o problema do défice, como que por magia. É preciso recordar que, quando o Estado gasta metade da riqueza produzida no país, o problema não é de Bruxelas, é nosso.

2. A oposição de esquerda, entretanto, deve estar feliz, pois logo à partida parece ter conseguido tudo o que exigia ao Governo PS: revisão do PEC em Bruxelas; referendo urgente sobre a despenalização do aborto; revisão do Código do Trabalho, para tornar ainda mais excepcionais os motivos de despedimento; revisão da lei do arrendamento, antes mesmo da sua saída; aumento das pensões. Aparentemente não falta nada - o que levou Jerónimo de Sousa, em desespero de causas, a reclamar a garantia da sobrevivência do sector têxtil tal como existe, ou seja, fundado na falta de qualificação profissional, salários de segundo mundo, inexistência de inovação tecnológica e de gestão, e, consequentemente, o apoio do Estado, sem outra finalidade à vista que não o adiamento do inevitável.

3. Em 30 anos de democracia, houve apenas dois referendos populares em Portugal, e em ambos os eleitores votaram contra a vontade da maioria parlamentar e partidária do momento: contra a despenalização do aborto e contra a regionalização. Para alguns daqueles que vivem instalados dentro do sistema político, confundindo democracia com partidocracia, estes dois casos de desautorização popular devem servir de lição para o futuro, evitando voltar a correr o risco de receber do povo a resposta que não se quer ouvir. Por isso mesmo, agora eles defendem a tese de que se faça, se imponha, a despenalização do aborto e a regionalização sem esse incómodo de perguntar às pessoas se elas continuam a pensar o mesmo ou se, afortunadamente, já mudaram de ideias.
Incomodada com o facto de José Sócrates ter reafirmado que só os eleitores, que travaram os processos, têm legitimidade política para os destravar, a deputada dos "Verdes" Heloísa Apolónia trouxe a questão ao debate do programa do Governo, lamentando que não baste a vontade maioritária da esquerda parlamentar para despenalizar o aborto até às dez semanas. Diz ela temer que, com o novo referendo, "tudo possa ficar na mesma" e pergunta o que aconteceria se o resultado voltasse a ser um "não". Ó senhora deputada, pois aconteceria essa coisa a que se chama "democracia directa". Não eram os seus antepassados políticos que defendiam isso?

4. Em Bruxelas, e como já sucedera com a tentativa de nomeação do sr. Butiglione para a Comissão, Durão Barroso foi uma vez mais forçado a recuar, desta vez, na proposta Bolkenstein, um projecto de liberalização do mercado de serviços com possibilidade de dumping social incluído. A lição é a mesma de então: apesar do tradicional optimismo com que sempre acha ser capaz de relativizar qualquer questão, e apesar da sua permanente arte do compromisso, Durão Barroso voltou a ser confrontado com uma parte da "velha Europa" que não aceita negociar nem ceder em princípios que lhe são identitários. É a tal história dos "valores", que há quem pratique e há quem apenas apregoe.

5. A morte de três polícias em menos de um mês no concelho da Amadora não aconteceu ali por acaso geográfico. Quem semeia o betão descontroladamente colhe criminalidade e insegurança. Quem planeia (?) e faz erguer cidades desumanizadas, sem jardins, sem passeios, sem espaços públicos, sem escolas decentes, sem acessos correspondentes à dimensão da construção, condena-as previamente a serem guetos sociais onde germina a marginalidade e a lei do salve-se quem puder. Depois, não adianta chamar a polícia nem perguntar onde está o Estado. Está dissolvido no mundo subterrâneo dos negócios autárquicos, do financiamento dos clubes de futebol e das campanhas dos partidos.

6. Costumo ler com grande atenção as notícias sobre criminalidade. De há uns anos para cá, venho notando, às vezes só nas entrelinhas das notícias, o aumento de um fenómeno altamente perturbante: a frequência, cada vez maior, com que são soltos pelos tribunais, antes ou depois dos julgamentos, em recurso, os verdadeiros grandes bandidos: chefes de redes internacionais de droga, lavagem de dinheiro, tráfico de mulheres, emigração clandestina. Muito embora as provas recolhidas pela PJ sejam normalmente mais do que suficientes para a condenação, os arguidos acabam por se ver beneficiados com toda a espécie de expedientes formais processuais, de que não gozam, por hábito, os banais criminosos, e que deitam por terra toda a prova recolhida. No limite até, quando não parece haver nenhum expediente formal invocável, chega a suceder que um prazo inexplicavelmente ultrapassado permita um habeas corpus libertador.
Repito que se trata de mera observação empírica, fundada tão-só na leitura de jornais e, esporadicamente, de revistas de jurisprudência. Até posso estar enganado na minha conclusão relativa à frequência de tais casos. Mas o assunto parece-me suficientemente grave para justificar mais atenção da parte de quem a deve exercer.

Miguel Sousa Tavares