ONDE ESTÁ JOANA CIPRIANO?
Até poderíamos acreditar nisto, não estivéssemos habituados a ouvir as palavras "tentativa de suicídio" para encobrir as torturas praticadas pela PIDE ou a ter de nos resignar a conclusões de inquéritos "internos", sempre que se trata de situações embaraçosas, como a que sucedeu, há semanas, com a morte de um rapaz na esquadra de Lagos, onde, mais uma vez, a polícia declarou tratar-se de um "suicídio"
Apresunção da inocência é, como se sabe, uma das regras fundamentais do Estado de direito. O caso do desaparecimento da criança algarvia suscita reflexão. A 12 de Setembro, Joana Cipriano, de oito anos, saiu de casa, a fim de comprar duas latas de atum e um pacote de leite. Nunca mais foi vista. Pertencendo a uma família pobre, os vizinhos logo sugeriram que a mãe a teria espancado, por ela ter roubado, nos trocos, dois euros.
Numa primeira fase, a Polícia Judiciária de Portimão admitiu ser possível que a mãe a tivesse vendido a um casal alemão, pelo que, ao contrário do que deveria ter feito, não pesquisou os locais onde a criança vivia, só os tendo revistado, e mal, dez dias depois. A 23, a mãe da criança, Leonor Cipriano, era presa, tendo sido conduzida, no dia seguinte, para a cadeia de Odemira, onde ficou em prisão preventiva.
Para quem não saiba, isto significa que o juiz considerou, não que ela era culpada, mas que poderia vir a prejudicar as investigações policiais. A lei prescreve que este tipo de prisão não pode durar, numa primeira fase, mais do que seis meses, pelo que, a 18 do corrente mês, a juíza do Tribunal de Instrução Criminal de Portimão, depois de ter voltado a interrogar Leonor Cipriano, decidiu mantê-la presa, com base em que existia a possibilidade de fuga, de perturbação do inquérito, de alarme social e, novidade, de que tinham surgido alguns indícios.
Desde o início que as investigações correram mal. Abandonada a tese da venda da criança, a PJ aventou a hipótese de o corpo da vítima ter sido triturado numa "sucateira", propriedade da mãe do padrasto de Joana, e, a 12 de Dezembro, que o mesmo pudesse ter sido retalhado e, depois, dado a comer a uns porcos. Estas hipóteses foram entretanto abandonadas. Sem nada para mostrar, a tensão entre o procurador do Ministério Público de Portimão e a PJ crescia. Dentro desta, aliás, já tinha deflagrado uma guerra, entre os inspectores de Faro - os quais, possivelmente por se sentirem incompetentes para lidar com o caso, tinham requisitado elementos especiais à Direcção-Geral de Banditismo de Lisboa - e o pessoal do Departamento de Investigação Criminal de Portimão. Num ponto estavam todos de acordo: os indícios recolhidos pelos laboratórios da polícia científica não permitiriam sustentar, em tribunal, a hipótese de homicídio.
Mas eis que surge uma reviravolta. Pelos vistos, aguarda-se a conclusão de exames periciais à roupa interior de Joana (na qual terão sido encontrados vestígios de sangue e de sémen) e à saliva de elementos pertencentes à família do padrasto da criança, numa tentativa, presume-me, para determinar o ADN. As questões surgem, em catadupa. Se a polícia tinha estes elementos, qual a razão por que não foram analisados? Se só agora o vão ser, terão validade? Por que motivo só em vésperas do fim da prisão preventiva foi a juíza informada do facto?
Casos extremos, como este, são interessantes, porque revelam, na sua nudez, o problema da formulação da culpa. Há dias, o Expresso e o Correio da Manhã publicavam, em primeira página, uma foto da presa desfigurada. Segundo a própria, teria sido espancada pela polícia, a fim de assinar uma confissão.
Um porta-voz da Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da Polícia Judiciária veio, de imediato, à televisão, afirmar ser tudo mentira. Segundo a sua versão, Leonor Cipriano ter-se-ia tentado suicidar, quando, durante um interrogatório, fora, sozinha, à casa de banho, procurando, no regresso, saltar para o vão que unia os andares. Até poderíamos acreditar nisto, não estivéssemos habituados a ouvir as palavras "tentativa de suicídio" para encobrir as torturas praticadas pela PIDE ou a ter de nos resignar a conclusões de inquéritos "internos", sempre que se trata de situações embaraçosas, como a que sucedeu, há semanas, com a morte de um rapaz na esquadra de Lagos, onde, mais uma vez, a polícia declarou tratar-se de um "suicídio".
No caso de Joana Cipriano, suspeito que não há quaisquer provas físicas que demonstrem quem é o culpado, o que levará os responsáveis pela investigação a dar à confissão um valor que não se lhe pode atribuir. Sob coacção, qualquer ser assina o que lhe colocarem à frente. Quem esteja habituado a ver filmes anglo-saxónicos, certamente notou a diferença entre o que se passa nos tribunais americanos e ingleses e nos portugueses. Lá, quase tudo depende da exibição das provas; aqui, a evidência empírica desempenha um papel menor.
Um estudo retrospectivo das perícias de natureza sexual, feitas na Região Norte, no primeiro semestre de 2004, demonstrou que só metade dos casos remetidos para a delegação do Porto haviam sido observados até às primeiras 72 horas depois da ocorrência. A outra metade ultrapassou o limite, o que torna os testes inválidos; ou seja, mesmo quando a evidência está disponível, o Estado português é incapaz de a analisar atempadamente. Como denunciava uma responsável pelo Instituto de Medicina Legal, o quadro de pessoal médico só estaria preenchido em 10 por cento. Os resultados são trágicos. Se eu for violada no Porto, corro o risco de, quando os vestígios do crime forem examinados, já não terem qualquer valor para efeitos de prova.
Uma das minhas séries preferidas intitula-se The Prime Suspect. Produzida pela empresa de televisão Granada, tem na actriz Helen Mirren uma espantosa inspectora da polícia (o script, impecável, é da autoria de Lynda La Plante). Para além dos méritos artísticos do programa, demonstra a forma como, no Reino Unido, a maioria dos crimes são resolvidos, não por confissões, mas exactamente por análises laboratoriais.
Os juízes, os tribunais e as polícias - sobretudo a PSP e a GNR - têm sido alvo de frequentes reparos. O mesmo não sucede quando se trata dos comportamentos populares. Ora, os algarvios que esperaram horas a fio pela carrinha que transportava Leonor Cipriano, estavam ali apenas com um desejo: linchá-la. A responsabilidade pela crise na justiça não reside apenas nas autoridades. Para o povo português, a presunção de inocência é um luxo para consumo de intelectuais.
Maria Filomena Mónica
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home