quinta-feira, 17 de março de 2005

OS COLOCADORES DE FELTRO



Eu já ando nisto há muito tempo para perceber os sinais. Mal ou bem, o meu blogue foi uma fonte de citações constantes contra Santana Lopes. Nada que eu não tivesse previsto e não desejasse, porque, em política, espera-se que aquilo que se diz tenha consequências e influência. Sabia igualmente que uma parte dessa atenção vinha do critério jornalístico que considera mais interessante o que diz uma voz vinda do mesmo lado do que a de um adversário que critica por obrigação. É um efeito comunicacional perverso, mas que não permite nenhuma inocência, nem de quem cita, mas, acima de tudo, de quem sabe que vai ser citado por esse efeito. Há aqui duas maldições inevitáveis: uma é que a cizânia vende mais; outra é que se sabe do que a casa gasta e o jornalismo é, em Portugal, uma das profissões mais politizadas que existem, dominantemente à esquerda do espectro político. O Abrupto foi por isso um "sucesso" nas críticas a Santana Lopes, embora o seu autor sempre soubesse que tal derivava mais da conjuntura comunicacional e não se iria repetir quando viessem os socialistas. Se houvesse qualquer ingenuidade sobre um mínimo reconhecimento de mérito nas críticas, que tivesse a ver com a sua substância e não com a coreografia dos momentos e das duplicidades de escolhas, oh pavorosa ilusão!, tê-la-ia perdido logo a seguir.
Continuemos com a história exemplar das vaidades e ilusões, para a qual alego já o meu total conflito de interesses. Há uns dias escrevi uma das minhas primeiras notas sobre o novo poder socialista e sobre uma área particularmente sensível para quem estima a liberdade do ar que se respira. Repeti deliberadamente um título que já tinha usado, sobre a mesma matéria, a respeito dos mesmos "sinais" que o governo Santana Lopes deu, quando ainda parecia poder exercer sem muita controvérsia o seu poder. Cito-a integralmente:

"Sinais

Vai ser interessante ver como o governo do PS vai organizar a sua "central de comunicação" e tentar alargar o seu espaço de tranquilidade na comunicação social. Alguns preliminares já são visíveis para quem esteja atento aos sinais.
A ofensiva contra os comentadores políticos que lhes podem ser hostis ou criar problemas já está em curso, só que não é feita da forma grosseira como o governo Santana a fez, mas sim mais sofisticada, baseada em critérios "jornalísticos" ou "institucionais". Já se nota poder novo no ar..."


Como esperava, confesso, os mesmos órgãos de informação que citavam religiosamente o Abrupto e que, nalguns casos, o reproduziam quase integralmente na sua parte política, esqueceram-se de o ler nesse dia, e não devem ter lido esta meia dúzia de palavras, certamente erradas e excessivas. Na verdade, a citação é um mecanismo de autoridade e ninguém é obrigado a citar se não acha interesse ou relevância. Cita-se quando se concorda ou se discorda muito, ou quando se acha que a matéria é relevante, mesmo quando são apenas "sinais" que se detectam. E eu, clarividente para ver os "sinais" do PSD, certamente vejo os do PS por zelo e obrigação partidária... Contra Santana Lopes era um "espírito livre"; contra o PS, sou um factótum partidário.
Sucede que sou um pouco duro de roer nestas coisas e enquanto não me calarem, o que hoje é difícil, não me calo. Vamos pois aos "sinais", ténues como fumo, mas soprando todos na mesma direcção: colocação de feltro por todo o lado, para proteger a visibilidade pública dos erros que o PS venha a cometer e a "imagem", esta tenebrosa realidade da política de superfície, dos seus governantes.
Quando escrevi estes "sinais" tive em conta dois motivos próximos, premonitórios, reforçados pela escolha de Santos Silva, um partidário do intervencionismo estatal, para responsável socialista do sector. Um é a ofensiva contra Marcelo Rebelo de Sousa, não contra aquilo que ele diz, porque ainda disse pouco, mas pelo próprio facto de ele ter um espaço privilegiado na televisão pública. É verdade que o lugar ideal para um espaço como aquele é numa televisão privada, porque isto de o Estado manter órgãos de comunicação social estatizados e governamentalizados (tem de se explicar mais uma vez que não há uma coisa sem a outra?) presta-se à maior das confusões sobre os critérios editoriais. Seja como for, ele está lá, numa afirmação de independência da direcção editorial da RTP, e tudo o que hoje for feito para lhe retirar ou condicionar a sua "coluna" televisiva não pode ser entendido de outra maneira do que como uma sanção política.
Outro dois "sinais" foi o modo como foi interpretado o estudo de Rita Figueiras sobre Os Comentadores e os Media - os autores das colunas de opinião. Muito significativamente, de tudo o que está lá escrito e que implicaria conclusões que apontavam para muitos lados e direcções, acabou por se extrair apenas um apelo para a "renovação" - o título do Diário de Notícias era Rostos do comentário não mudam há 20 anos, que por singular coincidência era ilustrado por fotos de Marcelo, Barreto, eu próprio e Miguel Sousa Tavares - quando o exemplo dado pela autora na sua intervenção era... Guilherme de Oliveira Martins. Não tenho dúvidas que ninguém mais deseja a "renovação" do que o Governo, até porque não custa perceber por que critério se fará.
Uma esquerda, habituada ao controlo estatal, com uma velha tradição de interferência nos órgãos de comunicação públicos - e não só, veja-se o à-vontade como discute de forma quase normativa e regulamentadora as decisões editoriais privadas, pretendendo impor regras de representação parlamentar à Quadratura do Círculo... - pensa que quer, pode e manda. O silêncio e a placidez com que são recebidos "sinais" que, vindos de outro lado, gerariam enorme alarido mostra como podem ser bem sucedidos.
O que é interessante é ver como estas críticas reproduzem substancialmente o mesmo tipo de objecções que Santana Lopes-Gomes da Silva faziam aos "comentadores". Os "argumentos" são os mesmos: onde Santana Lopes e o seu grupo viam a dominação de comentadores de esquerda, agora afirma-se que os melhores espaços são para comentadores de "direita", o que não corresponde ao novo ciclo político. É preciso "contraditório". Ouvem-se recicladas as vozes de que agora há que dar um estado de graça ao Governo, deixá-los trabalhar, ver o que valem, o que era exactamente o que Lopes pedia. Quem não o fizer só pode ser um empedernido e faccioso partidário, impulsionando a sua agenda ou a do seu partido, que deverá ser substituído por um académico, ponderado e equilibrado, independente e isento, por coincidência da área do moderno "bloco central".
O problema é aquilo que nunca é enunciado e é sempre ocultado, e que, mais do que qualquer coisa, preocupa os novos detentores do poder: as audiências, a popularidade, a influência. O que os preocupa nos "velhos" comentadores e que lhes faz tanto afã a favor da "renovação", com certeza pelos melhores e mais sólidos dos critérios pluralistas, institucionais e jornalísticos, é no fundo a influência, a popularidade e o interesse que lhes são reconhecidos pelo público em geral, em proporção inversa dos governantes de ontem e de hoje.
O que têm de comum estas críticas é que elas vêm do lugar do poder e representam o discurso do poder. O que mais espanta é que elas possam ser acriticamente aceites como inocentes. Os colocadores de feltro estão já a trabalhar afanosamente com o objectivo de encher tudo de almofadas protectoras para os socialistas. Uns fazem-no conscientemente, outros fazem de "inocentes úteis", mas o sentido do seu trabalho é o mesmo. Comigo não contam.

José Pacheco Pereira