segunda-feira, 23 de maio de 2005

CHECK-LIST

A autoridade do Estado é questionável.
A fiscalidade é relativamente ineficiente.
A corrupção é muita.
A impunidade geral é relevante.
A justiça é morosa ou ausente.
A Constituição é circunstancialmente revista, de acordo com necessidades da conjuntura.
Os grupos de interesses e os corpos profissionais têm mais poder do que o Estado

Há décadas, ou séculos, que pensadores e estudiosos se ocupam da análise dos fenómenos revolucionários, incluindo golpes de Estado, insurreições, motins e outras desordens de grande amplitude. Fizeram-se teorias, construíram-se "grelhas" e estabeleceram-se "leis". O facto de a maior parte das revoluções e revoltas aparentadas ser imprevisível não desanima os investigadores. Hoje é possível, recorrendo aos mais diversos estudos, enumerar as razões e as causas que conduzem a profundas perturbações da vida social e política. É verdade que muitas delas são perfeitamente contraditórias. Uns dirão, por exemplo, que as ameaças que pesam sobre a abundância e o crescimento são evidentes causas de revolução. Enquanto outros garantem que essa é a função da destituição absoluta. Conheço quem afirme que são as classes médias que, ameaçadas, fazem revoluções, como sei quem assevere que estas são o feito de quem "nada tem a perder, a não ser as suas grilhetas". Entres os inúmeros factores genéticos de uma revolução ou golpe, podem contar-se, além de outras, a luta de classes, a crise económica e financeira, a instabilidade política, a luta fratricida entre as classes dirigentes, as guerras de religião, os excessos de nacionalismo, a colaboração com o usurpador, o poder excessivo de um grupo económico, a insatisfação dos militares ou a falta de autoridade.

COM BASE EM MÚLTIPLAS CONTRIBUIÇÕES para a teoria política, construí, para consumo pessoal, uma lista de verificação e referência que apliquei à actualidade portuguesa. Poupando os leitores a uma enumeração fastidiosa de critérios e regras, depressa cheguei à conclusão de que existem hoje, em Portugal, causas suficientes para a eclosão de movimentos revolucionários, crises muito graves, motins, golpes e levantamentos. Se não, vejamos.

A INSTABILIDADE POLÍTICA É UM FACTO. Em menos de seis anos, realizaram-se três eleições gerais, tivemos, além de remodelações, quatro governos e outros tantos Primeiros Ministros. Um fugiu, um abandonou, outro foi demitido e perdeu eleições. Vários políticos foram exonerados, outros afastaram-se e muitos preferem ganhar dinheiro. O PS teve três secretários gerais. O PSD outros tantos. O PP dois. O PCP dois. As zangas dentro das famílias políticas voam alto. No PSD, em particular, a luta entre barões e interesses tomou um carácter fratricida inédito.
A crise económica é flagrante. O país conheceu vários anos de crescimento negativo ou de estagnação. O atraso perante a Europa aumentou. O desemprego atinge níveis elevados. As perspectivas económicas são todas negativas e inferiores tanto aos nossos parceiros mais próximos, como a outros países das Américas e da Ásia. As importações crescem muito mais depressa do que as exportações. Não existe uma só previsão de melhoria, a médio prazo, da nossa balança comercial externa. A produção nacional de subsistências alimentares está no mais baixo nível de sempre na história. O endividamento das famílias, das empresas e do Estado é generalizado.
A crise financeira é fenomenal. O Estado encontra-se em graves dificuldades, seja para respeitar os seus compromissos de financiamento dos serviços sociais, seja para pôr em prática uma qualquer política de investimento. Impotente para manipular a política monetária e cambial, resta-lhe uma alternativa: ou prosseguir a política de irresponsabilidade de quase todos os governos, ou iniciar uma acção severa de imprevisíveis consequências.
A situação social é grave. O desemprego de nacionais atingiu níveis incomportáveis com as disponibilidades financeiras do Estado e a paz social. As perspectivas de investimento novo e relevante são praticamente nulas. A capacidade de investimento do Estado é parecida. As ameaças de mais deslocalização de empresas são reais e a curto prazo. A existência de meio milhão de imigrantes aumenta o problema.
O clima moral e psicológico é mau. Os políticos mentem e contradizem-se com inusitada frequência. Nunca circularam tantos rumores, uns caluniosos, outros fundamentados, muitos a merecer investigação. Depois de uma vaga de boatos sobre a vida pessoal dos governantes, chegou uma nova onda, bem mais poderosa, sobre a corrupção de políticos e capitalistas, incluindo luvas de membros do governo e autarcas, comissões extraordinárias na aquisição de grandes equipamentos, dízimas, gabelas e alcavalas sobre concursos públicos.
A promiscuidade nunca terá sido tão profunda. Desde a mistura entre interesses públicos e privados, até à livre circulação entre cargos de governo e postos de decisão económica, tudo é possível e reconhecido. O cruzamento de fidelidade e favores entre a política, a economia, a autarquia e o desporto constitui uma rede de malha apertada.
A Igreja Católica, depois de longo flirt com o regime em geral, mas com o PSD e o PS em particular, está agora zangada. A permissividade ambiente, os costumes privados de vários políticos nacionais, as dificuldades financeiras do ensino privado e os movimentos contra a criminalização do aborto puseram um termo às boas relações existentes entra a Igreja e o Estado.
A incerteza e a insegurança instalaram-se. Em consequência dos rumores crescentes ou por efeito de medo atávico, a verdade é que os funcionários públicos se sentem ameaçados como nunca e os pensionistas estão convencidos de que as suas pensões vão ser reduzidas.
De repente, as classes médias receiam perder tudo quanto ganharam nestes últimos trinta anos: lugar para os filhos nas universidades, segunda casa nos arredores das cidades, férias no Brasil, carro turbo, televisão de plasma, play-station e computador, subsídio para o apartamento dos filhos, abatimento nos planos de poupança, liberdade de acesso ao off shore, aparelhagem topo de gama, frigorífico do tamanho de uma assoalhada, crédito barato, saúde gratuita, rendas baixas e subsídio para aquisição de jeeps urbanos de alta cilindrada. Todos e os jovens em particular consideram legítimas e razoáveis as suas ilimitadas aspirações, sem perceberem que o país não tem as capacidades necessárias à sua satisfação.
A autoridade do Estado é questionável. A fiscalidade é relativamente ineficiente. A corrupção é muita. A impunidade geral é relevante. A justiça é morosa ou ausente. A Constituição é circunstancialmente revista, de acordo com necessidades da conjuntura. Os grupos de interesses e os corpos profissionais têm mais poder do que o Estado.
Um grupo privado domina, sem moderação nem controlo, mas com cumplicidades, grande parte da vida económica e financeira do país, para o que utiliza instrumentos legais e meios menos ortodoxos.

A VERDADE, TODAVIA, É QUE PARECE NÃO haver revolução nem revolta. Não existem forças militares à altura, isto é, com força, dimensão, interesses e opiniões políticas. A Igreja não tem poder social suficiente para abrir uma crise irremediável. A União Europeia constitui uma "almofada" social, económica e política e um estranho referendo constitucional aprovará certamente a manutenção deste aconchego. O Euro evita a total desordem financeira e económica, nomeadamente a desvalorização galopante e a perda de valor da moeda. E é possível que os efeitos da vacina de 1975 ainda se façam sentir.
Não teremos, pois, de acordo com as tradições académicas, revolução, revolta ou insurreição. O pior é que elas são sempre imprevisíveis.


António Barreto