segunda-feira, 30 de maio de 2005

O DILEMA

Incompetentes ou mentirosos. Não há volta a dar. Se José Sócrates e os seus amigos, que se dizem "chocados" com o que descobriram, não sabiam o estado em que se encontravam a economia e as finanças do país; não suspeitavam do défice real do Estado; não conheciam os compromissos assumidos pelos governos anteriores; não tinham feito as contas a partir dos inúmeros dados públicos do Banco de Portugal e do Instituto Nacional de Estatística; nem tinham lido a vasta literatura em jornais e revistas publicados ao longo destes anos; então, são simplesmente incompetentes. Isto é, não souberam desempenhar as suas funções de oposição. Não foram capazes de obrigar os governos a tornar públicos os elementos que possuíam; não conseguiram utilizar os meios legais que tinha à disposição para forçar as instituições a fornecer-lhes a informação indispensável; não levaram a sério o trabalho de deputados, para o que foram razoavelmente bem pagos durante uns anos; não lhes ocorreu fazer breves contas de somar, com todas as parcelas que, de uma ou de outra maneira, iam sendo reveladas; não consultaram as bases de dados do EUROSTAT; e não leram os boletins do Banco de Portugal, nem os relatórios da UE e da OCDE, assim como não perceberam os trabalhos de previsão das instituições especializadas, nem sequer leram ou compreenderam os relatórios da Economist Intelligence Unit. Mais: não quantificaram as suas propostas eleitorais, não estudaram as implicações dos seus projectos, nem calcularam os custos das promessas que fizeram. Pior ainda, não leram o orçamento para 2005 preparado pelo anterior governo e, se o leram, não perceberam. Em conclusão, não cumpriram os seus deveres, não fizeram os trabalhos de casa. Nem sequer leram os trabalhos que Medina Carreira publica há anos nos jornais, nem ouviram o que Silva Lopes lhes diz regularmente. São, simplesmente, incompetentes.

Mas existe outra hipótese. São inteligentes. Cumprem os seus deveres. Seguiram com atenção a evolução económica e financeira do país. Desempenharam dignamente as suas funções de oposição. Perceberam as manhas e as deficiências do governo anterior. Conheciam as dificuldades em que o país se encontrava. Suspeitavam da dimensão efectiva do défice. Estudaram. Leram tudo o que havia para ler. Fizeram contas. Sabiam que os primeiros anos seriam difíceis. Sabiam que, poucas semanas depois de iniciarem funções, teriam de aumentar o IVA, o IRS, os tabacos e os combustíveis, como seriam obrigados a congelar o emprego e as promoções na função pública. Tinham a certeza de que tomariam medidas para aumentar a idade da reforma e reduzir a indemnização paga pelas baixas de saúde. Não tinham dúvidas de que, mais dia, menos dia, teriam de aumentar as portagens e acabar com a fantasia das SCUTS, o que talvez só fosse conveniente depois das autárquicas. Sabiam isso tudo e mais ainda relativamente às reformas e pensões, aos vencimentos da Administração e às contrapartidas do Estado para a Saúde e a educação. Só que... ninguém conquista a maioria e o poder com promessas desse tipo. Para lá chegar, seria necessário o contrário, mostrar que tudo era possível, que os impostos não aumentariam, que se deveria apostar no investimento e no crescimento, que havia recursos para melhorar a protecção social e para alargar os benefícios da educação. Depois, logo se veria. Mostrariam que nada sabiam, que o défice tinha sido escondido pelo governo anterior, que os relatórios internacionais nada tinham previsto. Se foi esta a escolha, são mentirosos.

Os danos causados na população e na reputação da política são, por anos, irrecuperáveis. A discussão sobre a origem do défice, as suas causas e os seus responsáveis, tem uma só consequência: ninguém acredita "neles". "Eles", os partidos. "Eles", os primeiros-ministros e os ministros das Finanças. Os próprios aficionados, despachados para as televisões para "explicar" ou "criticar", mostram total falta de convicção e um indesmentível desconforto. Culpam-se descaradamente uns aos outros. Acusam-se dos piores malefícios. Mostram o pior de si próprios. A fuga de Guterres e a enormidade dos compromissos por si assumidos criaram uma semente de descrédito. O abandono de Barroso, após um exercício de mentira e encenação parecido com o de Sócrates, esteve na origem de uma nova fonte de desconfiança. O despautério de Santana, que garantiu que as dificuldades estavam acabadas, abriu as portas ao desprezo pelos políticos. A actual ficção de Sócrates, apesar de melhor encenada, confirma a tendência exibida nestes últimos anos: a política portuguesa parece-se cada vez mais com uma actividade delinquente.

Apesar de firme adversário do federalismo e da Constituição europeia, sempre fui favorável ao euro e à sua adopção pelo Estado português. Esperava que a adopção da moeda única ajudaria a pôr na ordem os nossos políticos, lhes diminuiria a irresponsabilidade e reduziria a demagogia caseira. Entre outras vantagens, impediria os nossos líderes de continuar a usar as taxas de juro e de câmbio como instrumentos de disfarce das suas políticas. Até hoje, os resultados foram, em parte, positivos. Com efeito, os juros estão baixos e nunca mais a desvalorização veio castigar os cidadãos que vivem do trabalho. Todavia, o euro, por si só, não basta. Contra a demagogia e a irresponsabilidade, outros dispositivos são necessários. Na verdade, é preciso encontrar quem, sem matar a liberdade, meta na ordem os políticos nacionais. Nos tempos que correm, só vejo um meio: a Europa.

Venha a Europa! Chame-se a União! Solicite-se às agências de fiscalização do défice um exame das contas portuguesas. Abra-se um inquérito à delapidação dos dinheiros públicos, à falta de rigor e à demagogia. Instaure-se imediatamente um processo contra o Estado português por abuso e desperdício de recursos públicos. Faça-se com que os tribunais e o Banco Central Europeu executem prontamente o conjunto de sanções previstas, a começar pelas multas e a acabar na suspensão de fundos de coesão. Peça-se à União que lance um embargo sobre fundos em curso de utilização, suspendendo novos pagamentos até que se vejam sinais inequívocos de que Portugal está a entrar no bom caminho. Mostre-se às agências de rating toda a verdade, a fim de que Portugal pague mais caro pelas suas loucuras. Os portugueses só mudarão de costumes se forem postos perante o inevitável e a necessidade. E os políticos só aprenderão se forem castigados, se lhes retirarem os recursos para a sua demagogia e se passarem pela vergonha pública de serem designados como mentirosos e incompetentes. Por vontade própria, não o farão. Já os conhecemos.

António Barreto

1 Comments:

At 30 de maio de 2005 às 12:29, Anonymous Anónimo said...

Para quem, na passada quinta-feira, teve o infortúnio de perder a entrevista de Medina Carreira à SIC Notícias, aqui fica a transcrição da mesma:

José Gomes Ferreira, jornalista da SIC: "Negócios da Semana", tema obrigatório a análise dos 6,8% de défice (o número a que a comissão presidida por Vítor Constâncio chegou) e também a análise do impacto das medidas que o primeiro ministro anunciou esta quarta-feira no Parlamento. É mais uma aperto do cinto que é pedido aos portugueses. No entanto, o aumento do IVA e do ISP, a criação de mais um escalão de IRS, tributado a 42% e os cortes de benefícios dos funcionários públicos podem não ser suficientes para ganhar esta batalha do défice. O convidado de hoje é o Dr. Henrique Medina Carreira, ex-ministro das Finanças, economista, fiscalista, um homem que está permanentemente a estudar a evolução das contas públicas. Sr. Doutor, obrigado por ter vindo.

Medina Carreira [MC]: Nada, muito obrigado eu.

SIC: Começo por lhe perguntar qual é a sua primeira impressão deste conjunto de medidas que foram anunciadas no Parlamento? O que se pode dizer, penso eu, é que algumas são medidas duras.

MC: Francamente, a minha impressão é esta: em síntese, de um modo geral são medidas que eu pessoalmente apoio, defendo, estou de acordo com elas, com algumas ressalvas. Mas do ponto de vista quantitativo, do ponto de vista das receitas, penso que estão longe de poder resolver os problemas. Não é neste ano! Dois, a três, a quatro anos, os problemas das contas públicas em Portugal.

SIC: Mas foi anunciado pelo Governo, este conjunto de medidas como tendo algum impacto imediato e, sendo reconhecido que não seria muito, para já, durante o que resta do ano, mas daqui a um, dois, três anos estariam a dar muito retorno.

MC: Sabe que, nós, para além da dificuldade dos problemas, temos uma outra condicionante muito grave. É que não temos dez, quinze anos para resolver estes problemas. Nós temos 5 anos para resolver estes problemas. Se estas questões que agora ocupam muito a nossa sociedade não estiverem resolvidas dentro de uma meia dúzia de anos, o Estado português, dentro de dez anos, entra num colapso financeiro. Isto que se está a passar não é sustentável e toda a gente que estuda isto e que, enfim, com um mínimo de honestidade reflecte sobre estes problemas, sabe perfeitamente que isto é assim. Portanto, não é só a qualidade das medidas - naturalmente que isso é positivo - é também a quantidade dos resultados que são de esperar.

SIC: O que me está a dizer é que o combate a problemas estruturais, com o que foi anunciado, não vai ser conseguido?

MC: Eu quero dizer isto: que o IVA - eu estou inteiramente de acordo; aliás prenunciei publicamente sobre isso, dos 19[%] para os 21[%] - se de facto se quer reduzir alguma coisa ao défice tem de ser com um imposto que renda e que tenha resultados/respostas rápidas...

SIC: É o caso do IVA...

MC: É o IVA. Bom, mas o IVA é... ao contrário do ISP, que [também] tem resultados imediatos... o ISP rende 1/3 do IVA e, portanto, para obter o mesmo resultado financeiro, o ISP tem de agravar três vezes mais que o IVA. O IVA tem a vantagem de ser muito "rendoso" e muito rápido. Tem muitos inconvenientes, mas, neste momento, trata-se de reduzir o défice deste ano. Estou de acordo com isso. Neste ano não é possível esperar muito mais do que isso. No que me parece que são os efeitos mais diferidos das medidas é que eu suponho que são poucas, são insuficientes e não vão ser a solução das nossas grandes dificuldades.

SIC: Muito bem, vamos analisar todos estes temas em três grandes áreas. Uma é o aumento dos impostos, de que já falou, outra é o avanço no combate à evasão fiscal e, outra ainda, o corte de benefícios da Administração Pública que foi anunciado. Em relação ao anúncio das medidas e ao que pode ferir de interesses na sociedade portuguesa, foi dito por alguns analistas que a classe média era mais uma vez prejudicada. Fica com essa impressão ou não?

MC: Bem, eu pergunto se é preciso obter recursos a que classe é que se vai buscar. Em volume mais, porque a classe média é a maior classe. A classe alta é pequena...

SIC: É a que paga mais. Em termos numéricos, a classe baixa é a que tem mais gente. Mas que paga mais é a classe média...

MC: Não se pense que há algum problema desta natureza - ou alguma crise como esta que atravessamos - que vai ser resolvida ou pelos muito ricos ou pelos muito pobres.

SIC: No entanto, o discurso político foi que os cortes tocavam a toda a gente e que os próprios grupos económicos de muito poder económico seriam tocados nos seus interesses, nomeadamente em questões como a limitação de deduções de despesas no offshore da Madeira, limitações às reestruturações e à imputação de resultados de prejuízos entre empresas do mesmo grupo económico. Isso terá algum efeito?

MC: Bem, mais e melhor do que isso é aquilo de que não se fala, que é a única forma de resolver um pouco a tributação das empresas: é regressar ao sistema de [1988], [1987] por grupos, dependendo da dimensão e da natureza da empresa. E andamos a fugir a isto. Enquanto tivermos este sistema vamos ter sempre grandes fugas e grandes dificuldades. Sabe que eu já não perco tempo com isso. Isso agora ficou para os amadores da política fiscal.

SIC: Então diz regressar ao sistema de [1988]? Agrupar as empresas...

MC: Exacto, as grandes empresas, as pequenas e as médias. Não vale a pena perder tempo com as pequenas desde que paguem alguma coisa...

SIC: Colecta mínima?

MC: Bom, chame-lhe "mínima". Fixar, de uma forma fácil, o que cada tipo de contribuinte deve pagar. E paga, pronto! Não tem mais conversas com o Estado. As grandes estão sempre debaixo de fiscalização e com o máximo rigor de pormenores. As médias tem de se arranjar um sistema elástico que se adapte às circunstâncias. Nós pretendemos tributar o rendimento real de TODAS, o que é manifestamente impossível. Entre um banco e uma companhia de seguros, ou a Brisa e a EDP e o vendedor de hortaliças certamente que encontra alguma diferença. O nosso sistema pretende tratar o vendedor de hortaliças como o banco. Isto é uma coisa tola e que não tem solução. Portanto, enquanto andarmos a discutir sigilio bancário, quebra do sigilio fiscal, publicações de contas, etc, nós andamos a fingir que resolvemos. Não vale a pena perder tempo com isso. Isso foi um tipo de temática a que me dediquei e para o qual já perdi a paciência porque não vale a pena....

SIC: De qualquer forma, todos os portugueses vão discutir este tema que é a divulgação dos valores que são postos nas declarações de IRS de cada família.

MC: Sabe que eu acho surpreendente que em Portugal só se dê por estas coisas quando aparece com ar de revolução. Quando eu apresentei isso há uns 15 anos ao Partido Socialista com ar de reforma - de que todos fugiram durante 15 anos (isso é uma ideia que defendo há dez ou quinze anos); bom, isso foi abafado, não sei o que lhe fizeram e nunca mais saiu à luz do dia. Eu não vejo problema nenhum nisso...

SIC: E vê convenientes?

MC: Ah, vejo convenientes concerteza! Nós todos... se o meu amigo pagar menos do que deve, provavelmente eu vou pagar mais do que aquilo que devo. Portanto, eu tenho legitimidade para saber o que é todos pagam e todos têm legitimidade para saber o que eu pago. Não vejo nenhum problema nisso. Como lhe digo, há dez ou quinze anos...

SIC: Mas não acha que isto conjugado com uma taxa marginal de 42% - criação do novo escalão com uma nova taxa - pode potenciar a fuga ao fisco ainda mais?

MC: Repare, o que potencia mais a fuga ao fisco é vivermos numa sociedade em que já ninguém acredita no Estado. Nem no futuro. Isso é que estimula a fuga. Nós temos de ser uma sociedade rigorosa, disciplinada, responsável para haver confiança. Se nós passarmos o tempo na conversa da classe política e da classe da comunicação social este país nunca terá confiança em nada. Nós temos é de ter rigor, arrumação e regras de vida!

SIC: Dr. Medina Carreira, a classe da comunicação social é constituída por mediadores de informação. Fazem a conta do que os decisores...

MC: Os senhores são os veículos, eu nem estou a dizer mal de uns nem de outros...

SIC: Eu compreendo.

MC: É a constatação de qualquer pessoa que anda no meio da rua como eu. Há uns que produzem ideias que não servem para nada. A maior parte das vezes sem fundamento...

SIC: E outros que a veiculam. É o trabalho deles.

MC: E os outros, coitados, têm de vender a mercadoria que existe (que é esse lixo), que são os senhores. Bom, tudo bem. Mas quem tenha a veleidade de procurar ajudar a pensar um pouco o país não entra nesse jogo. Não anda todos os dias a comunicar...

SIC: Portanto, é preciso ver mais além.

MC: Mais além, mais alto e com muito mais independência. Os senhores...

SIC: Muito bem.

MC: Os senhores só ouvem os partidos políticos, quase. Que é aqueles que não interessa nada ouvir porque esses têm o lugar próprio que é o Parlamento...

SIC: Não necessariamente. Pelo menos neste grupo de comunicação ouvimos muitos técnicos e muitas pessoas que conhecem...

MC: Não...

SIC: Daí o convite para o senhor estar aqui...

MC: Os senhores até lhes chamam "a esquerda" e "a direita". Já vêm conotados, quando há gente capaz...

SIC: Não necessariamente. Temos homens competentes e conhecedores. Por isso o senhor está aqui...

MC: Escolham gente capaz e independente e larguem a esquerda e a direita. Gente que saiba...

SIC: É o que estamos a fazer ouvindo o Dr. Medina Carreira...

MC: E eu agradeço.

SIC: Vamos em frente. Eu gostava de recordar o que foi o debate no Parlamento. IVA, IRS, imposto sobre os produtos petrolíferos [ISP] e imposto sobre o tabaco vão aumentar, a Administração Pública vai perder privilégios frente ao sector privado. As críticas às medidas anunciadas pelo Governo para controlar as contas públicas seguiram-se imediatamente ao debate no Parlamento.


[Imagens do debate]

Sócrates: Vamos aumentar a taxa normal do IVA em dois pontos percentuais (de 19 para 21%). Introduziremos um novo escalão de 42% - destinado às pessoas com rendimentos mais altos - a partir de 60 mil euros por ano. O Governo, seguindo as melhores práticas europeias, vai propor nesta assembleia legislação que defina as condições de limitação do sigilio fiscal por forma a tornar público os rendimentos declarados ao "fisco" por cada contribuinte. Procederemos também ao aumento dos impostos sobre o tabaco e sobre os produtos petrolíferos. Vamos iniciar em 2006 um processo de aproximação gradual da idade legal da reforma na Função Pública com a idade legal da reforma dos trabalhadores em geral. Não há hoje nenhuma uma razão válida para que os trabalhadores da Função Pública se possam reformar aos 60 anos enquanto os demais trabalhadores só se podem reformar aos 65. O Governo vê-se forçado a decretar, temporariamente e a título excepcional, a suspensão das progressões automáticas e das actualizações de suplementos remuneratórios na Função Pública, sem prejuízo da continuação dos mecanismos de progressão baseada no mérito.

[de volta à entrevista]

SIC: Dr. Medina Carreira, já vimos aqui o aumento do IVA, do ISP e do imposto sobre o tabaco. Gostava de saber a sua opinião sobre o que será a baixa, em 2005, do défice público que, estando nos 6,8%...

MC: A partir daí? Meio, meio ponto...

SIC: Passará para 6,2[%] segundo aquilo que o primeiro ministro disse que vai levar ao Programa de Estabilidade e Crescimento...

MC: Pois, eu não sei o que o primeiro ministro vai fazer. Essa parte dos impostos dá, nestes seis meses, meio ponto do [Produto Interno Bruto], mais coisa menos coisa.

SIC: Apenas?

MC: Sim, são 6 meses...

SIC: Certo...

MC: E, de qualquer maneira, embora dê uma arrecadação razoável, não é nenhuma enormidade. E é por isso que eu digo que, sendo este um efeito limitado do aumento dos impostos, ele não vai resolver os grandes problemas das contas públicas portuguesas se não houver uma acção muito firme e muito forte sobre as despesas públicas. Portanto, estou de acordo que a Caixa Geral de Aposentações se integre no sistema da Segurança Social, estou de acordo que os gestores ganhem menos, estou de acordo que se acabe - aliás há muitos anos - com esta imoralidade de um sistema de reforma especial para os políticos, sobretudo porque a maior parte deles não faz nada que preste. Sobretudo, porque se fizessem alguma coisa que prestasse talvez ainda se justificasse. Estou de acordo com tudo isso, são é pequenas medidas em que há preocupação do Governo - que, aliás, é patente em tudo isto que se tem feito nestes [últimos] dois meses - que é pôr uma grande parte da população interessada porque se atinge os alvos, que são aqueles alvos sociais: os ricos, os advogados, os tribunais, os juízes, não sei quem. Bom, tudo isso está bem mas não é isso não é muito importante para a sociedade portuguesa. Qualitativamente, concordo com isso. Agora, isso não resolve os problemas da despesa pública. Isto é que é o problema.

SIC: Quais são as áreas onde não se cortou e se devia ter cortado?

MC: Olhe, a primeira coisa... sabe que o grande problema de Portugal, mas não só de Portugal, suponho que é o problema da Europa, é que nós temos um modelo de vida que não é compatível com o novo mundo. Quero dizer, nós, em mercado aberto e com salários - com vida sindical, felizmente com direitos - nós não podemos competir com países que são a Europa do século XIX, como a China ou a Índia...

SIC: Mas isso não é um problema só de Portugal...

MC: Ah, não! E nem é um problema económico porque...

SIC: É um problema da Europa e dos Estados Unidos....

MC: Os Estados Unidos, isso é lá com eles. Nós somos europeus, preocupemo-nos. Nós temos muito a mania de nos preocuparmos com os americanos, com os défices americanos e preocupamo-nos pouco com os nossos. Preocupemo-nos com os nossos que já são bastante difíceis. Portanto, a Europa é um espaço que tem um modelo que confronta com um modelo sem regras. Quero dizer, os trabalhadores da China não têm protecção sindical, nem protecção social, nem direitos de qualquer espécie. Ora, isto não se resolve em competição económica porque, se agora eles fazem têxteis que arrasam os têxteis europeus, amanhã eles estão a fazer automóveis, televisores, satélites, comboios, estão a fazer tudo. Como é evidente, hão-de ser os próprios empresários europeus e americanos que vão para lá aproveitar as boas condições que lá têm...

SIC: E já lá estão...

MC: Portanto, a Europa que não tenha ilusões. E, por mim, acho que não vale a pena perder muito tempo com...

SIC: Isso é uma tendência histórica. Portanto...

MC: Para mim é muito claro. Se a Europa quer continuar com o seu modelo social, de que eu gosto, sempre o defendi e defendo. Mas não é defender com palavras, é defender com ideias e com consistência. Se a Europa quer manter o modelo tem de regressar ao proteccionismo. A Europa tem de ser um espaço económico com 500 milhões de habitantes (que já é muita gente), com muito técnica muitos capitais, muita organização e muitas empresas. Pronto, e aí é possível um keynesianismo europeu. Não vamos discutir isso agora...

SIC: Tem a consciência de que está a dizer aquilo o que poderá ser considerado um retrocesso histórico?

MC: Sabe, eu nunca me preocupei porque... sabe, quando se chega a esta fase da vida em que eu já estou, eu já vi revolucionários que agora são os pais do estado-providência, os socialistas extremos que agora já são capitalistas...

SIC: Liberais...

MC: Não, capitalistas bem instalados. Portanto, nesta fase da vida, a gente não tem de se preocupar com os rótulos. Temos que nos preocupar é com o rigor e com a seriedade. Eu só me preocupo com gente séria e rigorosa. Portanto, o que pensam...

SIC: Muito bem. E, preocupado com isso, fez contas e tem números concretos para apresentar sobre aquilo que tem sido a evolução das nossas despesas e a evolução das nossas receitas.

MC: Eu não sei, nem lhe vou apresentar contas. Senão passavamos aqui a noite a tratar de contas. Não, eu podia dar-lhe dez explicações, pelo menos - mas se fosse preciso chegar às quinze também lhe dava -, para dizer que o Estado português não deveria, neste momento, com este Governo, estar confrontado com grandes surpresas nas contas públicas porque isto tudo que se está a passar... Não é que eu soubesse se era 5, se era 6, se era 7, se era 8[%]. Era, seguramente, uma coisa insustentável. E, por isso, o problema tem uma grande seriedade e decorre deste facto: nós contruímos um Estado que era viável - felizmente viável - com a economia dos anos 60 que crescia, em Portugal, 7% ou coisa que equivalha. Isso desapareceu e temos hoje uma economia que cresce 1[%]. Não é, mesmo para aqueles que não gostam de números... sabem perfeitamente que uma economia que cresce um não sustenta um Estado que cresce quatro. É uma questão de tempo. E esse tempo não chega a 2015. E a nossa economia não vai poder crescer muito mais nos tempos mais próximos. O choque tecnológico (ainda não sei bem o que é), se der resultados, é daqui a dez anos. Daqui a dez anos, Portugal não pode estar nestas condições. E, portanto, nós temos um problema de tempo e temos um problema de soluções. Simplesmente, as soluções que são necessárias, na minha óptica, são soluções que têm de encontrar uma sociedade informada, não é uma sociedade enganada como tem estado a ser enganada a nossa. Não vou dizer que o problema se resolve com receitas. Não é verdade. Nós estávamos nos 70% da média europeia dos impostos, estamos nos 90[%]. Isto significa que nós temos...

SIC: Sem ter acrescido à riqueza na proporção?

MC: Bom, porque vamos tirar à riqueza cada vez mais e, portanto, isto está quase a bater no tecto. Quando ouve falar do sigilio e da evasão e da fraude, não acredite. É uma fraude. Nós conseguimos mais um ou dois pontos do Produto por essa via. Mas com um ou dois pontos nós não fazemos coisa nenhuma para resolver o problema português. Portanto, o problema não vai resolver-se pela economia porque ela não vai crescer mais do que um, um e meio [1,5%]. Aliás, nos últimos 25 anos, se puser de parte dois períodos de grande crescimento económico (1985-1990, grosso modo [e] 1995-2000, em que a economia cresceu quatro, cinco porcento) sabe qual foi a média de todos os outros 17 anos? Faz alguma ideia?

SIC: Gostaria que dissesse.

MC: Menos de 1%. Menos de 1%. E porque é que a economia fundamentalmente cresceu muito em oitenta e tal e noventa e tal? Em oitenta e tal, por causa do petróleo; em noventa e tal, por causa dos juros. Nunca foi por virtude interna. Portanto, Portugal vale muito pouco do ponto de vista económico. Não vamos crescer, a menos que haja uma catástrofe qualquer ou que se descubra petróleo nas Berlengas, qualquer coisa do estilo. Portanto, nós vamos contar com um ou dois porcento de crescimento.

SIC: E remédio para reequilibriar o Estado?

MC: Pela economia não se reequilibra, pelos impostos não se reequilibra. Pode melhorar um pouco, pode piorar um pouco, mas não resolve o problema. Um Estado que cresce quatro não pode ter uma economia que cresce um. É tão simples como isto.

SIC: Muito bem. Então há que reequilibrar pela despesa. Advoga cortes, por exemplo, de pensões?

MC: Eu não advogo cortes, eu advogo a... como sabe, aliás, é uma tarefa a que me tenho dedicado nos últimos anos... é tentar fazer passar a ideia de temos perceber o que é que se passa na sociedade portuguesa. Não interessa a europeia. Tem problemas parecidos mas o problema dos outros é dos outros. Problema nosso, nós não temos riqueza para sustentar o Estado que temos e, portanto, a opção é esta: ou continuamos desregradamente a deixar... sabe que em protecção social, ao contrário que as pessoas pensam e dizem, [Portugal] foi o país da Europa que a protecção social cresceu mais em termos financeiros, nos últimos dez anos (1992 a 2001). Mais do que qualquer outro país na Europa.

SIC: Há muita gente a viver à conta do Estado.

MC: Eu não ponho o problema em termos de "viver à conta do Estado". Enfim, isto já são juízos um pouco morais. Não é isso. O Estado não tem dinheiro para tanta gente. Ou, para manter tanta gente, toda a gente tem de receber menos!

SIC: Então, baixar pensões, baixar subsídios de desemprego?

MC: Bem, a primeira coisa, Gomes Ferreira, é a sociedade perceber isto. Mas para isso é preciso que o primeiro ministro, o presidente da república, os deputados, os ministros, os comentadores, os senhores que fazem actividade de media, insistam e esclareçam e não venham com essas divagações e partes gagas da evasão fiscal e outras coisas que não são coisa nenhuma. Bom, e quando a sociedade tiver minimamente preparada, daqui a três ou seis meses, para perceber é que se tem de dizer: "meu caro, querem 5 milhões a viver à custa do Estado ou na dependência do Orçamento de Estado, nós para esses 5 milhões temos 1.000 para cada um; e isto para garantir 5 milhões daqui a um, daqui a cinco e daqui a dez [anos]; se os senhores querem 2.000 então vamos gastar 2.000 e daqui a quatro anos fechamos a porta. Não há para ninguém." E isto tem que se explicar. Ainda há dias eu lia um jornal estrangeiro em que um alto dirigente sindical alemão dizia: "eu não sei se a minha filha...", isto é na Alemanha, não é Portugal...

SIC: Certo.

MC: "...vai ter pensão, vai receber uma pensão", dizia ele.

SIC: Mas o que está a dizer é que os portugueses vão ter de receber menos pensões?

MC: Concerteza. A política é depois graduar, fazer contas, por muito que...

SIC: E menos subsídios de desemprego e de doença?

MC: Não sei. Repare, isso são pormenores, isso são trocos. Eu sei que isso é o que o pessoal [da comunicação social] quer ouvir mas eu não entro nesse tipo de conversa. Temos de saber que, para manter ao máximo como estamos agora, não há dinheiro para prolongar isto muito tempo. E, portanto, para mantermos para todos, com garantias, tem que ser num nível mais baixo.

SIC: Muito bem. Então proponho que mostremos os números que o senhor nos forneceu.

[jornalista virado para a câmara] SIC: Nos últimos dez anos a despesa pública cresceu acima dos 3 mil milhões de euros por ano; as receitas aumentaram apenas 2,5 mil milhões. Vamos ver estes indicadores mais em pormenor: entre 1995 e 2000 a cobrança de impostos aumentou 3.060 milhões de euros por ano; nos quatro anos seguintes [2000-2004] aumentou ao ritmo anual de apenas 1.850 milhões de euros. Quanto às despesas totais do Estado, entre 1995 e 2000 aumentaram 3.100 milhões de euros; de 2000 a 2004 o aumento foi quase idêntico, 3.075 milhões de euros isto é, ficou muito acima do crescimento das receitas no mesmo período. Dentro da despesa pública, os gastos com pessoal aumentaram por ano 1.260 milhões de euros entre 1995 e 2000; na média dos quatro anos seguintes [2000-2004] a subida foi de 675 milhões de euros, o que reflecte duas medidas de Manuela Ferreira Leite, o congelamento dos salários e da progressão das carreiras dos funcionários públicos. As prestações sociais aumentaram 1.100 milhões de euros entre 1995 e 2000; a partir daí, e até 2004, o aumento foi superior, 1.925 milhões de euros (a subida do desemprego foi um dos principais factores). As outras despesas do Estado cresceram 740 milhões de euros no primeiro período [1995-2000] e depois a evolução foi mais modesta, 475 milhões de euros, em resultado de outros cortes decididos pelo Governo de Durão Barroso. Mas ao todo a evolução dos gastos, como vimos, acabou por ser praticamente idêntica enquanto que as receitas cresceram a um ritmo bastante inferior. Está traçado o quadro.

MC: Isto é a realidade vista à escala de um ano, em média.

SIC: Certo. E se for visto à escala de um mês tem outros indicadores.

MC: Bom, é dividir isto por 12. As prestações sociais em 1995-2000 cresceram ao ritmo de 100 milhões de euros por mês. Entre 2000 e 2004, para surpresa das pessoas que dizem que não houve consciência social, cresceram 150 milhões de euros por mês. E estes números da coluna 2000-2004 são curiosas porque isto é que explica o inêxito orçamental dos Governos Barroso e Santana Lopes, porque a Dra. Manuela Ferreira Leite foi das poucas pessoas que passaram pelo poder recentemente e que perceberam alguma coisa do que se está a passar. Ela conteve tudo aquilo que se podia conter. O pessoal baixou, em média anual, de 1.260 milhões para 675 milhões, em média.

SIC: Baixou o crescimento, o acréscimo da despesa?

MC: O crescimento, sim. As sociais subiram de 1.100 [milhões] para 1.900 [milhões]. Aqui porquê? Bom, porque são sociais e porque não se pode impedir. São pensões de reforma, são subsídios de doença, de desemprego, etc. Outra área em que era possível conter baixou de 740 [milhões] para 475 [milhões]. Quero dizer, porque é que as contas públicas não melhoraram de 2000 a 2004? Porque os gastos sociais nunca permitiriam que melhorassem. São gastos automáticos, são gastos que crescem sem se fazer coisa nenhuma. E isto, meu caro, aumentar as despesas de pessoal e as despesas sociais em 200 milhões de euros por mês não é coisa que se mantenha por muito tempo, como é evidente. Portanto, ou há medidas que correspondam, que dêem resposta a isto ou não há. Para que haja resposta a isto tem de haver uma política de remunerações de pessoal diferente e tem de haver políticas sociais...

SIC: Diferente como?

MC: Bom, tem de acabar com as promoções automáticas, não é suspendê-las.

SIC: Já foi anunciado.

MC: Não, anunciou-se a suspensão. Eu acho que se deve acabar até termos uma vida diferente.

SIC: Certo.

MC: Nós temos de alinhar o mais depressa possível o custo do pessoal público pela média europeia. Como sabe são 11[%].

SIC: A média europeia em percentagem do PIB.

MC: Sim, nós temos 15[%]...

SIC [sorriso]: Se for em valor absoluto ainda estamos muito longe. E aí era a desgraça!

MC: Mas concerteza. Mas isso é a nossa limitação.

SIC: Claro.

MC: [Somos] um país atrasado e isso não se vence por decreto. Portanto, nós temos de ter uma outra política de gastos com pessoal e uma outra política de gastos sociais...

SIC: Mas isso levará necessariamente a despedimentos e a encerramento de serviços.

MC: Eu não sei se leva, pode não levar.

SIC: Então como, se não se pode baixar salários?

MC: Alguma coisa se vai ter de fazer! Ouça, ó Gomes Ferreira, o que é preciso nós percebermos é que daqui a 5 ou 10 anos - se continuarmos assim - não temos solução. As pessoas depois não discutem se é muito ou pouco. Não discutem nada, porque não recebem. Não tenha ilusões sobre isso. O Dr. João Ferreira do Amaral, que é insuspeito, porque é de esquerda, porque é todo anti-neoliberal, ele há dias publicou um artigo, um estudo na revista dos economistas, ele dizia que o Estado português não só é possível que entre em bancarrota como é provável.

SIC: E essa também é a sua opinião?

MC: Concerteza. Eu só não a digo porque, enfim, as pessoas não acreditam. Porque eu sou um "pessimista", como sabe. O meu pessimismo resulta de não sermos governados capazmente, não é.

SIC: Mas, em bom rigor, acha que estamos a caminho da bancarrota?

MC: Ó Gomes Ferreira, nós não estamos naquele tempo em que podiamos fazer dinheiro. Eu quando estive no Governo, a gente mandava fazer dinheiro. Agora não se faz dinheiro.

SIC: Mandava o Banco de Portugal emitir moeda.

MC: Mandava, não se mandava. Mas pedia-se! Agora não se emite dinheiro. E, portanto, se não houver, dinheiro não se paga. É preciso que os portugueses percebam isto. Nós não somos o Portugal do Dr. Salazar e do Dr. Caetano.

SIC: Então o que é percepcionado pela opinião pública como um aperto de cinto - mais um, anunciado pelo engenheiro Sócrates - não chega. É preciso mais ainda. Em linguagem clara.

MC: Ah! Não, não. Ele dirigiu-se às receitas. As receitas, como lhe digo, não vão responder ilimitadamente. Nós estamos a 90% da média europeia. Já estamos muito alto em matéria de nível de fiscalidade.

SIC: Certo.

MC: Portanto, ela está a caminhar para o seu limite. Portanto, nós temos de agir sobre as despesas. Agora, agir sobre as despesas aí é que entram as ideologias. Agora, têm de ser ideologias que façam contas. Quero dizer, não podem os partidos de esquerda, em nome de serem de esquerda, terem horror aos números e insultarem os que fazem contas, como é habitual na comunicação social. Não, façam contas e depois venham ao público defender os seus pontos de vista. Aí, depois há neoliberais e há comunistas, há aquilo que houver.

SIC: Falou de prestações sociais mas na área da saúde, por exemplo, o que vimos é que este programa anunciado, este programa de cortes, não ataca a fundo o desiquilíbrio...

MC: Não vi que atacasse nada. Não sei, Mas vamos esperar pelo ministro das Finanças que para a semana vai dizer. É na saúde... na educação é pessoal. Sabe quantos porcento na educação é que é gastos com pessoal? 82% do gasto com educação são com pessoal. Portanto, aí é a questão do pessoal. Ou há menos funcionários, professores ou ganham menos...

SIC: O primeiro ministro anunciou a necessidade de se acabar com o problema dos professores com horário-zero, a receber ser dar aulas.

MC: Está bem. Mas, quero dizer, tudo isso em termos de equilíbrio social é um disparate. Quero dizer, não há professores com horário-zero. Há professores que trabalham ou não há trabalho para os professores e têm que ir para outro sítio procurar vida. Isso é um aspecto. Mas do ponto de vista financeiro, nós não podemos mexer na educação em termos de dinheiros sem saber que 82% do Ministério da Educação é para pessoal. Portanto, é um problema de pessoal, não é outro. Para o resto quase não há dinheiro. Isto depois...

SIC: Em bom rigor, o que está a dizer conduz a dispensar-se professores.

MC: Provavelmente. Se eles tiverem a mais, concerteza. Mas, ouça, numa empresa onde não há trabalho as pessoas podem ser dispensadas. Porquê que no Estado as pessoas que não têm nada que fazer hão-de lá estar? Porque não vão receber subsídio de desemprego?

SIC: Já calculou quantos é que, em princípio, não terão nada que fazer? Quantos é que seriam dispensáveis?

MC: Ó Dr. Gomes Ferreira, se nós fizermos esse raciocínio a anteceder as decisões políticas, não vamos tomar nenhuma decisão que sirva o país. Os políticos têm de perceber e de optar e de esclarecer a população. Mas de esclarecer bem, não é como nas eleições que fica tudo baralhado porque são baralhados propositadamente. Temos de trabalhar pós-eleições com muito sossego e com muito rigor. E com contas, por muito que isto incomode os críticos dos números. E depois fazem-se opções. Aí depois é que entram as esquerdas, os centros e as direitas. Portanto eu não lhe digo se é nos salários, se é nas prestações. Digo que TÊM que baixar. Agora, vamos discutir em quê. Mas se a gente ainda não percebeu o essencia,. se ainda andamos a pensar que o défice é que é o problema. O défice é a temperatura do corpo. Agora, o vírus, ou o micróbio ou que seja que está dentro do corpo é que nós temos que perceber. O défice é uma febre. Nós andamos todos a olhar para o dedo a pensar que olhamos para a Lua, percebe. Este é o grande problema da nossa sociedade.

SIC: É o caso do Governo actual?

MC: Do Governo e da sociedade. O Governo com isto... eu se fosse o ministro das Finanças estaria extremamente incomodado com o futuro financeiro do Estado. Com estas medidas... por isso é que eu penso que há outras. Porque se não se mexer nas prestações sociais... não é daqui a dez anos, é JÁ. Nós não temos...

SIC: Estas [medidas] que foram anunciadas, então, no seu entender, não foram suficientes? Terá de haver outras?

MC: O ministro das Finanças dirá para a semana. Eu vou reservar-me para escutar os seus números.

SIC: Dirá aquilo que virá no Programa de Estabilidade e Crescimento. E depois o que virá no Orçamento Rectificativo.

MC: Ele irá quantificar. E vai dizer-nos "daqui a três anos o Estado português é insolvente por isto, por aquilo e por aquel'outro". E é isso que eu tenho esperar para depois tomar opinião. Eu digo que não é possível com isto. Com isto, nós estamos novamente a tomar uma aspirina. Sem embargo de qualitivamente serem justas, serem defensáveis, serem tudo. Quantitativamente, aguardemos o ministro, mas acho que não vamos longe.

SIC: E os portugueses, ao ouvirem este discurso, o que é poderão pensar?

MC [sorriso]: Se os senhores não querem que eles ouçam, não transmitam!

SIC: Claro que transmitiremos e claro que eles ouvirão com atenção. Mas a expectativa colectiva cai ainda mais e a economia é feita de confiança e de expectativas positivas...

MC: Ouça, a confiança só vale a pena se se fundar na verdade. A confiança de conversa é um novo lema para esta futebolização da política.

SIC: Mas, repare que o primeiro ministro disse que não cria isso do discurso da tanga novamente.

MC: Mas eu não quero saber do que o primeiro ministro diz. Eu não quero saber o que o primeiro ministro diz. Eu quero saber daquilo que eu entendo a sociedade portuguesa precisa. A sociedade portuguesa precisa de verdade. A confiança vem da verdade. Quando os portugueses perceberem, claramanente, que estão a caminho de um precipício, se disser: "se vocês não mudarem vão para o fundo", os portugueses vão por-se de pé.

SIC: Então aquilo que foi o relatório da comissão presidida por Vítor Constâncio foi apenas uma parte da verdade.

MC: À comissão de Vítor Constâncio acho que pediram "se tudo estiver como está, que défice vamos ter no fim do ano"? Pronto, fizeram contas... 6,83[%]. Não é um défice verificado, é um défice eventual no fim do ano. É só isso. Não é mais do que isso.

SIC: Não é a análise das tendências da sociedade no sentido em que... [[imperceptível]]

MC: O Dr. Vítor Constâncio - que é uma pessoa competentíssima - não foi incumbido de dizer "tomando em conta o que se passou nos últimos dez, quinze anos e aquilo que, provavelmente, se vai passar nos próximos dez, diga-nos lá se o Estado será solvente".

SIC: E esse trabalho devia ser feito por uma instituição como o Banco de Portugal ou por uma comissão presidida por conhecedores do Estado?

MC: Eu sempre que tenho contacto com ministros das Finanças sugiro-lhes isso. Convidem o Dr. Silva Lopes, o professor Ferreira do Amaral, o Dr. Ernani [Lopes]. Enfim, pessoas...

SIC: E o senhor próprio?

MC: Eu não. Eu sou um amador nisto, como sabe...

SIC [sorriso]: Concerteza que não é.

MC: Bom, e "agora digam-me daqui a quinze anos se este Estado, a continuar assim, é solvente?". E vai ver o que é que eles dizem. O senhor Dr. Vítor Constâncio não foi incumbido de prognosticar o futuro de Portugal se continuar como está. Ele foi incumbido de, com fundamento no Orçamento que foi aprovado, e com as condições em causa, dizer o que poderá ser o défice no fim do ano. Foi só isso. E ele diz "a febre é alta, a situação é delicada". Enfim, isto é o que pode o governador do Banco de Portugal dizer. Não mais, nem menos. Pronto, e agora nós temos de nos entender. O que eu digo é que aquilo é a febre medida neste período de um ano. Mas isto mergulha as suas raízes em dez, quinze, vinte anos de actos de políticas públicas. Portanto, vamos consertar ou não vamos consertar? Conseguimos consertar consertar, temos soluções. Não conseguimos consertar... bom, temos de dar os braços uns aos outros e esperar que chova.

SIC: Mas não vamos deixar de nos governar a nós próprios. Algo terá de ser que ser feito.

MC: Exactamente. Mas quando toda a gente estiver convicta da verdade, as pessoas vão apoiar. As pessoas só não apoiam quando pensam que estão a ser enganadas, que é as mais das vezes que acontece.

SIC: E acha que isso é o que acontece, agora quando na campanha eleitoral foi prometido que não seriam aumentados os impostos?

MC: Concerteza. Ouça, eu vou recordar-lhe a gentileza do seu convite. À quatro meses eu estive aqui a falar por causa de um artigo, acho que intitulado "A verdade não mora aqui".

SIC: Exactamente.

MC: Bom, não se passou um ano. Passaram-se quatro meses. O meu amigo está-me agora a perguntar "mas afinal tinha razão sobre a verdade"? É evidente que a verdade não estava em cima da mesa. Eu não digo que era a mentira. Ocultam-se os factos mais graves e mais preocupantes. A classe política não quer que a sociedade sinta dores. Quer que toda a gente esteja descansadinha na praia...

SIC: Isso é também porque a democracia que temos, o sistema que temos é esse. Leva a isso.

MC: Se nós quisermos a democracia do obscurantismo temos uma alternativa: ficarmos pobrezinhos. A democracia serve para nos esclarecermos, para defendermos os pontos de vista com seriedade e com rigor. Porque se a democracia é para nos enganarmos uns aos outros, então não vamos lá.

SIC: Então faço-lhe a pergunta ao contrário. Se seguirmos a via que seguiram outros países, como a Finlândia, a Suécia, que reduziram, percentualmente, em muito, as despesas sociais, eles conseguiram libertar dinheiro, energias para a economia. Com este país que temos, com pouca iniciativa privada, com pouco controlo, com pouca regulação de mercados, com pouco investimento - tanto nosso no exterior como do exterior cá - é suficiente, é suficiente cortarmos só despesa?

MC: Ouça, eu quando ouço comparar Portugal com a Suécia pergunto porque não comparam Portugal com o Senegal. Quero dizer, é de um disparate tão grande comparar com a Suécia como com o Senegal. Comparar não tem interesse, nem do ponto de vista da preparação técnica dos povos, nem da força do tecido empresarial, nem pela capacidade de realização nem de organização do Estado. Portanto, não comparemos o que é incomparável. Nós somos o que somos e há certezas: nós com este Estado, com esta dimensão financeira, não temos economia que o aguente. É tão simples como isto. O Dr. Miguel Cadilhe tem feito propostas que me parecem que valem a pena a ser discutidas. Não é lá a venda do ouro que isso...

SIC: Sim, mas criar um fundo que tenha dinheiro para reestruturar o Estado e despedir gente?

MC: Exacto. Na Suécia fizeram isso. Na Suécia foi o que fizeram.

SIC: Volto à questão, constituir um fundo para reestruturar o Estado, fechar serviços...

MC: Sim, com uma dívida pública especial, contraída para isso.

SIC: E despedir gente?

MC: Eu não sei se é despedir, se é passarem a ganhar qualquer coisa, se é serem reformados mais cedo. Enfim, qualquer coisa que diminua os custos dos Estado. Isso vale a pena discutir. Agora, se saem dois que não se sabe bem quem são, para entrar um que também não se sabe bem quem é, numa máquina com 770 mil pessoas, só os circuitos informáticos necessários para substituir dois por um, ficando três a gastar dinheiro do Estado...

SIC: Porque os outros dois ficam na reforma à conta do Estado...

MC: E o outro entra para o lugar dos outros dois. Portanto, isto não é solução nenhuma. Nós, a solução é: onde temos 770 [mil], ficarmos com 700 ou 650, aqueles que forem indispensáveis. E negociar com os outros. Isto é que se tem de fazer. Aos reformados temos de dizer: os que estão com reformas muito altas (superiores ao presidente da república), ninguém pode ter mais pensão que o presidente da república e já está bem instalado se se comparar com o presidente da república. E pronto, dá-nos mais dinheiro para aqueles que têm menos. Agora, se temos uma subvenção mensal vitalícia para os políticos que depois não querem saber disto...

SIC: Também foi outra das medidas anunciadas...

MC: Muito bem, há muitos anos que eu critico aquela solução, não sei quem foi o autor dela. Se temos autarcas aos montes com pensões vitalícias e a ganhar dinheiro... para quê que nós precisamos de 308 municípios? Para quê que a gente precisa de um Tribunal Constitucional? Para quê que precisamos de 18 ministérios e não temos 12? Para quê que temos 250 deputados e não temos 120? Tudo isto merece ser discutido. Agora, se é de afogadilho que, a partir de um relatório do Dr. Vítor Constâncio, andamos todos a correr durante quatro dias...

SIC: A discussão durante a campanha eleitoral não serviu para isso?

MC: Mas normalmente não serve. Isto tem de ser antes das campanhas eleitorais... ou depois das campanhas eleitorais.

SIC: Mas agora o Governo com maioria absoluta pode "cortar a direito"?

MC: Não, não. Não é "cortar a direito". A primeira coisa que eu acho... se... se eu tenho razão; o senhor ministro das Finanças dirá sim ou não... se isto não chega do ponto de vista de quebra de despesas, eu o que acho é que o Governo deve encetar uma campanha de esclarecimento... não é ele mesmo Governo, são pessoas capazes, que sabem o que dizem... esclarecer a opinão pública porquê que é assim e porquê que não é de outra maneira. E depois os partidos fazerem opções ideológicas. Agora, se os partidos passam... primeiro, não gostam de números; eu nunca vi fazer finanças públicas sem trabalhar com números, mas em Portugal há uns sábios que conseguem fazer isso. Se os partidos políticos, detentores dos números verdadeiros obtidos por quem sabe, explicarem à população "isto se continuar assim, vai provavelmente acontecer provavelmente aquilo; para evitármos que acontece aquilo - porque ninguém deseja - vamos ver como é que vamos evitar". E depois aí aparecem propostas variadas. Agora, sem o povo estar esclarecido... quando nós ouvimos nesses fóruns que os senhores organizam aqui e nas rádios, etc e as pessoas passam o tempo irritadíssimas umas com as outras sem saberem o que estão a dizer em raiva, não vale a pena porque a democracia funda-se na obscuridade. A democracia tem de se fundar no esclarecimento e na informação. É isso que em Portugal ainda não aconteceu. Portugal não foi informado. O senhor ouve discursos do presidente da república, dos primeiros ministros, dessa gente toda, mas ninguém percebeu ainda nada, nem porquê isto está mal nem porquê que tem de ser de outra maneira. Portanto, é uma democracia que não funciona, que é ineficiente.

SIC: E em relação aquilo que foi a aprovação do Orçamento de Estado de 2005 que, pouco tempo depois, veio a verificar-se que os pressupostos estavam errados. Podia ter sido evitado isto? Estamos a falar da atitude do presidente da república que dissolveu o Parlamento mas permitiu que se aprovasse o Orçamento.

MC: Eu acho profundamente caricato e desprestigiante que o Governo PS, que tenha caído em 2001, tenha falado de um défice de 1,7[%] e fosse 4,4[%]. Como acho mal que saia um Governo que falou de 4[%] e são 6[%]. Bom, mas isso são incidentes que estão ultrapassados. Cada um julga os autores à sua maneira. Eu julgo mal. Uns e outros.

SIC: [O Governo] falou de 4[%], são 6[%]. E o Orçamento que preparou foi aprovado...

MC: Foi aprovado, mas não foi aprovado por toda a gente. Houve partidos que não aprovaram.

SIC: Mas o presidente da república promulgou...

MC: Mas o presidente da república não tem de entrar em detalhes. Entendeu que era preciso um Orçamento e aprovou, tudo bem. Mas isso já está, não interessa... É mau este sistema de burla democrática que se pratica em Portugal. Mas está praticada por dois partidos que se criticam veementemente um ao outro. PS antes, PSD depois. Arrumemos essas coisas. Agora, é preciso tomar medidas muito rápidas. Aumentar o IVA e tal... tome-se! As outras, vamos discutir e vamos esclarecer. Abra-se um período de 90 dias, 100 dias, 6 meses e vamos falar destes assuntos. Mas não é toda a gente, é gente que saiba e que estude. Quero dizer, porque quem fala do Iraque e do salário mínimo garantido e do tráfego rodoviário e da OTA, não vale a pena assim porque as pessoas não sabem o que estão a dizer.

SIC: Em Portugal há muitos treinadores de bancada?

MC: Nós somos todos amadores, mais ou menos. Portanto, o meu amigo, por exemplo, acha tem alguma justificação nós fazermos o TGV e a OTA - são dois disparates - quando não resolvemos o problema do IC19 e...

SIC: E o fecho da CRIL?

MC: CRIL e a VCI. Mas acha que isto tem sentido?

SIC: Não, não acho. Tenho referido isso insistentemente.

MC: Para ganhar meia-hora daqui [Lisboa] a Elvas...

SIC: A compra de submarinos também é esse...

MC: Juros... Eu tenho aqui números. O meu amigo sabe quanto é que se gasta em coisas disparatadas neste país? A meu ver, claro. Há quem considere isto uma maravilha de decisão política. Juros bonificados, este ano sabe quanto é que são? 420 milhões de euros. Para casas da burguesia.

SIC: Sim, mas atenção que isso, felizmente a Dra. Manuela Ferreira Leite acabou com isso...

MC: Eu só olho para os números. É para ver que...

SIC: Ainda se paga isso!

MC: Ainda se paga e ela travou isto. As SCUT este ano são 520 [milhões de euros]...

SIC: Vai chegar aos 800 [milhões de euros]...

MC: Nós não podiamos ir por uma boa estrada? Tem de ser autoestrada? Nós para irmos da Maia até não sei aonde é preciso ser por autoestrada... A lei da programação militar 220 [milhões de euros]. Bom, eu não sei se estão aqui os submarinos, mas se calhar não estão. Nós gastamos em formação profissional sabe quanto? Está orçamentado na Segurança Social. 900 MILHÕES DE EUROS por ano, em média. Nos últimos três anos. Para formar quem e como? O senhor já deu por alguém que tivesse aprendido alguma coisa na formação? O senhor já viu que são 180 milhões de contos...

SIC: O que eu vejo é os empresários a dizer que precisam de operários especializados e não os têm. Apesar do alto nível de desemprego.

MC: Nós precisávamos de um ensino técnico profissional adaptado às circunstâncias modernas e andamos a fingir que fazemos formação. Porquê? Porque uma parte deste dinheiro vem da Europa. Nós não temos pejo em estragar este dinheiro que vem da Europa. Se o meu amigo me disser 10 pessoas que se formaram em alguma coisa nestes cursos eu digo que foi bem empregue. Bom, não sei! 900 milhões, tem aqui 1.100, 1.600... tem aqui 2.100 [milhões euros] de coisas mais do que discutíveis. Temos Alqueva, temos o Euro2004... agora há dois estádios que já não vão ter jogos porque o Beira-Mar acho que foi para a segunda divisão e o Farense faliu (já foi à mais tempo). Mas acha que isto é um país que tem tino? Fazemos uma obra, custa o dobro, custa o triplo. Quem são os responsáveis? Ninguém!

SIC: É o sistema, é o regime.

MC: Não, não. Isto é um regime de democracia irresponsável.

SIC: E, portanto, o que propoe é que se discuta rapidamente tudo isto...

MC: Porque se não se discutir, a sociedade não percebe porque tem de mudar de vida. E a sociedade vai ter de mudar de vida, quer goste, quer não goste.

SIC: Senhor Dr. Medina Carreira, fica registada a lucidez da sua mensagem. Muito obrigado.

MC: Muito obrigado.

 

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