SALVAR O ESTADO
A dimensão extrema do descalabro das finanças públicas anunciada pelo governador do Banco de Portugal torna inadiável por mais tempo, não a tarefa de vencer o défice, mas sim a de salvar o Estado e o regime democrático: foi sobre as ruínas financeiras do Estado que Salazar emergiu. Excluindo, pois, a "solução" salazarista salvadora, não há outro caminho que não o de repor no Estado uma noção mínima de responsabilidade e respeito pelo dinheiro dos cidadãos. Mesmo que para isso seja necessário subir impostos e, inevitavelmente, cortar nas regalias adquiridas do sector público. Continuar a defender, como o fazem o PCP e o Bloco de Esquerda, que tudo o que de essencial respeita ao excesso de despesa pública continue na mesma, que os gastos com a educação, a saúde e a segurança social - sem paralelo em termos europeus - continuem imutáveis ou que os funcionários públicos se possam reformar ao fim de 36 anos de trabalho, ao mesmo tempo que aumentam a sua esperança de vida e os gastos públicos com a sua saúde e as suas pensões, não é apenas teimosia ideológica; é também, no contexto actual, inconsciência suicidária. Insistir em que José Sócrates não cumpriu a sua promessa de não subir impostos, como o faz o PP, é defender que é mais importante honrar promessas eleitorais feitas em contexto diverso do que tentar resolver o problema que nos sufoca. Não adianta perder tempo com discursos que não são sérios.
A segunda coisa que nunca será de mais dizer é que o desastre revela a que ponto temos sido governados nos últimos anos por gente incompetente e irresponsável. E é de lamentar que uma das medidas anunciadas pelo primeiro-ministro - o corte das subvenções vitalícias dos primeiros-ministros - não se aplique aos seus antecessores. Imaginar que Santana Lopes e Durão Barroso vão ter direito a um prémio vitalício pelo lindo serviço prestado ao país é simplesmente intolerável.
Enfim, depois de ter seguido atentamente toda a teatralização e o suspense com que Vítor Constâncio encenou a revelação ao país sobre a tragédia deficitária, só me pergunto o que andou a fazer até aqui o governador do Banco de Portugal: só acordou para o verdadeiro estado das contas públicas depois de o primeiro-ministro lhe ter pedido que estudasse o assunto?
Sobre as medidas em si mesmas elas deixam-me, a mim e creio que à generalidade das pessoas, um sentimento misto. Primeiro que tudo, é bom que haja medidas e que elas revelem que Sócrates não se deteve perante a impopularidade inevitável do seu simples enunciado. Mas fica a sensação de que algumas são boas, outras apenas simbólicas, outras perigosas e talvez contraproducentes e, outras ainda, ausentes.
Comecemos por estas últimas: não há uma palavra - e era essencial - sobre a limitação das despesas e a possibilidade de endividamento das autarquias e regiões autónomas. Temo que, em ano de eleições autárquicas, tudo o que se ganha com o aumento do IVA desapareça para pagar a reeleição dos excelentíssimos autarcas.
Também não há nada de importante sobre a persistência injustificável dos benefícios fiscais de que goza a banca e o sector financeiro, nem sobre o congelamento dos grandes e ruinosos disparates como a OTA, com que nos ameaçam ciclicamente. Não se reviu a absurda teimosia socialista com as scut, nem se foi além de uma vaga referência à revisão geral e total dos milhares de subsídios que o Estado mantém em vigor, na maioria dos casos, por simples inércia (há dias, um leitor enviou-me uma listagem dos subsídios concedidos apenas pelo Governo Civil de Lisboa em 2001, envolvendo várias páginas de boletim oficial e incluindo coisas tão necessárias aos gastos públicos como grupos desportivos de bilhar ou de futebol de bairro, associações de pesca desportiva ou de tauromaquia, grupos corais, excursões de amigos, etc. e tal).
Entre as medidas boas - ou, pelo menos, lógicas e justas - têm particular importância financeira as que se reportam à revisão das regalias dos funcionários públicos: progressão automática nas carreiras, substancial vantagem sobre o sector privado no que respeita à idade de reforma, pensões de reforma e subsídio de baixa por doença. Digam o que disserem os sindicatos, a situação actual é indefensável: nenhuma empresa privada, que registe todos os anos défice de exploração, pode subsistir com os seus trabalhadores a serem automaticamente promovidos e aumentados todos os anos, independentemente dos resultados, a reformarem-se ao fim de 36 anos de trabalho, a ganharem mais na reforma do que quaisquer outros e a receberem 100 por cento do ordenado quando estão de baixa. Só o pode o Estado português, porque acumula défices que paga com os impostos dos outros: uma parte dos salários dos trabalhadores do sector privado vai directamente para pagar as regalias dos trabalhadores do sector público e de que aqueles não gozam. (Há dias um dirigente sindical da função pública afirmava estar "cientificamente demonstrado" que os professores do ensino básico, por exemplo, só deviam trabalhar até aos 57 anos. Fazendo contas à idade de entrada no mercado de trabalho e à esperança de vida actual, isso significaria em média 32 anos de trabalho e 21 de reforma: quem julga ele que pagaria essa reforma - alguém que trabalhasse até aos cem anos no sector privado? Mas, visivelmente inspirado, o sindicalista dava ainda o exemplo, para justificar a reforma prematura, de que "não se imagina um guarda-florestal a perseguir um caçador furtivo aos 65 anos". Admitindo que os guardas-florestais perseguem os caçadores furtivos a pé e não de jipe, como eu os vejo, seria interessante saber com que idade acha ele que se deveriam reformar os trabalhadores da construção civil, os pescadores, os trabalhadores rurais, os operários metalo-mecânicos, enfim, todos os trabalhadores ligados a profissões de desgaste físico.)
Quanto às medidas perigosas anunciadas por Sócrates, elas são, obviamente, as que implicam aumentos de impostos. A subida do IVA potencia a inflação e, ultrapassando os limites do suportável, é um incentivo à fuga fiscal. A subida para 42 por cento do escalão superior do IRS, tendo pequeníssima relevância nas contas finais, pode vir a ter, como sucedeu no passado, um efeito contraproducente: o de haver cada vez menos gente a declarar rendimentos sujeitos à taxa máxima. Não concordo com a moderna teoria dos que defendem a taxa única em IRS, porque entendo que a progressividade fiscal é uma medida de redistribuição de riqueza, que incumbe ao Estado. Mas daí até ao exagero vai uma diferença. Este aumento atinge sobretudo os quadros qualificados, por conta própria ou por conta de outrem que, juntando ao IRS a segurança social, o IMI, as taxas municipais e os impostos indirectos sobre o dinheiro que lhes resta, fazem contas e chegam à conclusão de que 60 por cento do que ganham com o seu trabalho acaba a financiar a má administração pública. Um Estado competente penaliza, não os bons pagadores, mas sim os maus.
Finalmente, a quebra do sigilo fiscal, medida aparentemente boa, mas que na realidade, além de inútil, pode vir a ser fonte de todos os atropelos. Esclareça-se que isto nada tem que ver com a quebra do sigilo bancário para efeitos fiscais. A quebra do sigilo bancário é uma medida que sempre defendi, para permitir à administração fiscal, mesmo sem intervenção de um juiz, confirmar a veracidade das declarações fiscais que levantem suspeitas. A quebra do sigilo fiscal - que, tanto quanto sei, apenas existe na Suécia - é uma medida radicalmente diferente e que consiste em expor à curiosidade pública todos os elementos constantes da declaração fiscal de um contribuinte, seja ou não suspeito de fazer batota. Julgo, desde logo, que tal medida é inconstitucional, por violar o direito à privacidade, que se aplica à situação patrimonial de cada um, como à sua situação de saúde, de vida íntima, etc. Uma coisa é o Estado ter o direito de conhecer e investigar a situação financeira das pessoas para saber se fogem ou não ao fisco; outra é a imprensa, os mirones e os voyeurs terem o direito de meter o nariz na vida financeira dos outros. Se a ideia é suscitar o sentimento de censura social sobre os batoteiros, está condenado ao fracasso: Portugal não é Suécia, onde uma mentalidade cultural enraizada faz dos que fogem ao fisco párias sociais. Aqui, continuará a haver casas e barcos registados em off-shores, carros de luxo com matrícula espanhola e empregadas domésticas transformadas em trabalhadoras de empresas virtuais. Em lugar de trazer os renitentes ao redil, o que o Governo vai conseguir é entregar todos à matilha de invejosos e bisbilhoteiros. Lá porque o Estado gasta mais do que pode e não consegue cobrar os impostos que devia, não é razão para expor os contribuintes, e particularmente os que cumprem, à devassa pública. O défice é importante, mas o comportamento ético do Estado não o é menos.
Miguel Sousa Tavares
A segunda coisa que nunca será de mais dizer é que o desastre revela a que ponto temos sido governados nos últimos anos por gente incompetente e irresponsável. E é de lamentar que uma das medidas anunciadas pelo primeiro-ministro - o corte das subvenções vitalícias dos primeiros-ministros - não se aplique aos seus antecessores. Imaginar que Santana Lopes e Durão Barroso vão ter direito a um prémio vitalício pelo lindo serviço prestado ao país é simplesmente intolerável.
Enfim, depois de ter seguido atentamente toda a teatralização e o suspense com que Vítor Constâncio encenou a revelação ao país sobre a tragédia deficitária, só me pergunto o que andou a fazer até aqui o governador do Banco de Portugal: só acordou para o verdadeiro estado das contas públicas depois de o primeiro-ministro lhe ter pedido que estudasse o assunto?
Sobre as medidas em si mesmas elas deixam-me, a mim e creio que à generalidade das pessoas, um sentimento misto. Primeiro que tudo, é bom que haja medidas e que elas revelem que Sócrates não se deteve perante a impopularidade inevitável do seu simples enunciado. Mas fica a sensação de que algumas são boas, outras apenas simbólicas, outras perigosas e talvez contraproducentes e, outras ainda, ausentes.
Comecemos por estas últimas: não há uma palavra - e era essencial - sobre a limitação das despesas e a possibilidade de endividamento das autarquias e regiões autónomas. Temo que, em ano de eleições autárquicas, tudo o que se ganha com o aumento do IVA desapareça para pagar a reeleição dos excelentíssimos autarcas.
Também não há nada de importante sobre a persistência injustificável dos benefícios fiscais de que goza a banca e o sector financeiro, nem sobre o congelamento dos grandes e ruinosos disparates como a OTA, com que nos ameaçam ciclicamente. Não se reviu a absurda teimosia socialista com as scut, nem se foi além de uma vaga referência à revisão geral e total dos milhares de subsídios que o Estado mantém em vigor, na maioria dos casos, por simples inércia (há dias, um leitor enviou-me uma listagem dos subsídios concedidos apenas pelo Governo Civil de Lisboa em 2001, envolvendo várias páginas de boletim oficial e incluindo coisas tão necessárias aos gastos públicos como grupos desportivos de bilhar ou de futebol de bairro, associações de pesca desportiva ou de tauromaquia, grupos corais, excursões de amigos, etc. e tal).
Entre as medidas boas - ou, pelo menos, lógicas e justas - têm particular importância financeira as que se reportam à revisão das regalias dos funcionários públicos: progressão automática nas carreiras, substancial vantagem sobre o sector privado no que respeita à idade de reforma, pensões de reforma e subsídio de baixa por doença. Digam o que disserem os sindicatos, a situação actual é indefensável: nenhuma empresa privada, que registe todos os anos défice de exploração, pode subsistir com os seus trabalhadores a serem automaticamente promovidos e aumentados todos os anos, independentemente dos resultados, a reformarem-se ao fim de 36 anos de trabalho, a ganharem mais na reforma do que quaisquer outros e a receberem 100 por cento do ordenado quando estão de baixa. Só o pode o Estado português, porque acumula défices que paga com os impostos dos outros: uma parte dos salários dos trabalhadores do sector privado vai directamente para pagar as regalias dos trabalhadores do sector público e de que aqueles não gozam. (Há dias um dirigente sindical da função pública afirmava estar "cientificamente demonstrado" que os professores do ensino básico, por exemplo, só deviam trabalhar até aos 57 anos. Fazendo contas à idade de entrada no mercado de trabalho e à esperança de vida actual, isso significaria em média 32 anos de trabalho e 21 de reforma: quem julga ele que pagaria essa reforma - alguém que trabalhasse até aos cem anos no sector privado? Mas, visivelmente inspirado, o sindicalista dava ainda o exemplo, para justificar a reforma prematura, de que "não se imagina um guarda-florestal a perseguir um caçador furtivo aos 65 anos". Admitindo que os guardas-florestais perseguem os caçadores furtivos a pé e não de jipe, como eu os vejo, seria interessante saber com que idade acha ele que se deveriam reformar os trabalhadores da construção civil, os pescadores, os trabalhadores rurais, os operários metalo-mecânicos, enfim, todos os trabalhadores ligados a profissões de desgaste físico.)
Quanto às medidas perigosas anunciadas por Sócrates, elas são, obviamente, as que implicam aumentos de impostos. A subida do IVA potencia a inflação e, ultrapassando os limites do suportável, é um incentivo à fuga fiscal. A subida para 42 por cento do escalão superior do IRS, tendo pequeníssima relevância nas contas finais, pode vir a ter, como sucedeu no passado, um efeito contraproducente: o de haver cada vez menos gente a declarar rendimentos sujeitos à taxa máxima. Não concordo com a moderna teoria dos que defendem a taxa única em IRS, porque entendo que a progressividade fiscal é uma medida de redistribuição de riqueza, que incumbe ao Estado. Mas daí até ao exagero vai uma diferença. Este aumento atinge sobretudo os quadros qualificados, por conta própria ou por conta de outrem que, juntando ao IRS a segurança social, o IMI, as taxas municipais e os impostos indirectos sobre o dinheiro que lhes resta, fazem contas e chegam à conclusão de que 60 por cento do que ganham com o seu trabalho acaba a financiar a má administração pública. Um Estado competente penaliza, não os bons pagadores, mas sim os maus.
Finalmente, a quebra do sigilo fiscal, medida aparentemente boa, mas que na realidade, além de inútil, pode vir a ser fonte de todos os atropelos. Esclareça-se que isto nada tem que ver com a quebra do sigilo bancário para efeitos fiscais. A quebra do sigilo bancário é uma medida que sempre defendi, para permitir à administração fiscal, mesmo sem intervenção de um juiz, confirmar a veracidade das declarações fiscais que levantem suspeitas. A quebra do sigilo fiscal - que, tanto quanto sei, apenas existe na Suécia - é uma medida radicalmente diferente e que consiste em expor à curiosidade pública todos os elementos constantes da declaração fiscal de um contribuinte, seja ou não suspeito de fazer batota. Julgo, desde logo, que tal medida é inconstitucional, por violar o direito à privacidade, que se aplica à situação patrimonial de cada um, como à sua situação de saúde, de vida íntima, etc. Uma coisa é o Estado ter o direito de conhecer e investigar a situação financeira das pessoas para saber se fogem ou não ao fisco; outra é a imprensa, os mirones e os voyeurs terem o direito de meter o nariz na vida financeira dos outros. Se a ideia é suscitar o sentimento de censura social sobre os batoteiros, está condenado ao fracasso: Portugal não é Suécia, onde uma mentalidade cultural enraizada faz dos que fogem ao fisco párias sociais. Aqui, continuará a haver casas e barcos registados em off-shores, carros de luxo com matrícula espanhola e empregadas domésticas transformadas em trabalhadoras de empresas virtuais. Em lugar de trazer os renitentes ao redil, o que o Governo vai conseguir é entregar todos à matilha de invejosos e bisbilhoteiros. Lá porque o Estado gasta mais do que pode e não consegue cobrar os impostos que devia, não é razão para expor os contribuintes, e particularmente os que cumprem, à devassa pública. O défice é importante, mas o comportamento ético do Estado não o é menos.
Miguel Sousa Tavares
1 Comments:
Seria bom que alguém decidisse fazer um estudo comparativo dos níveis de vida nas grandes cidades do litoral e do interior; um estudo que não se limitasse a fazer o que é habitual, comparar médias estatísticas, que fosse mais longe na análise da distribuição dos rendimentos em todas as regiões
Se comparar a minha situação económica com a de alguém que viva na província e que tenha a mesma categoria profissional não tenho dúvidas de que com o mesmo nível de rendimentos usufrui de uma melhor situação económica. Todavia o que vive em Lisboa e é vizinho do Ricardo Salgado é estatisticamente rico, o outro é estatisticamente pobre.
Um dos factos mais importantes da democracia tem sido o desenvolvimento das regiões periféricas, pondo fim a um abandono de décadas a que estas regiões foram votadas; mas receio que da mesma forma que no litoral crescem as assimetrias regionais, também no interior hajam grandes distorções na distribuição do rendimento.
Tenho sérias dúvidas de que o bem-estar económico esteja a chegar a todos os que vivem na província, e estou mesmo convencido de que as políticas de desenvolvimento regional esqueceram esta questão gerando maiores desequilíbrios na distribuição dos rendimentos.
Receio que os pobres do litoral por serem estatisticamente ricos estejam a suportar o pagamento de infra-estruturas usadas gratuitamente pelos ricos da província por estes serem considerados estatisticamente pobres. Por isso acho que se deveria abandonar as políticas de condescendência por políticas activas de sustentação do rendimento dos mais carenciados. Ficaria mais feliz por saber que uma parte dos meus impostos vai para ajudar alguém que vive da agricultura de subsistência numa aldeia da serra, do que para pagar a auto-estrada onde o bem sucedido comerciante de móveis vai passear o seu Mercedes.
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