A INDIFERENÇA DO CORTE
Sentado ali, no alcatrão quente do parque, ao lado dele, via a terra subtrair-me o Zé. E eu queria dizer-lhe isso tudo. Pedir-lhe que estendesse mais fundo as raízes e ficasse do lado de cá.
O «Zé já morreu papá? Tá ao pé do Jesus?» – os olhos do Leonardinho empurravam a força das palavras, que não deixavam o homem negro varrer-se anónimo da superfície da Terra. Sugado pela doença que me levou o meu irmão africano.
Durante mais de um ano foi-se sumindo dentro da roupa, num esqueleto feito cabide. Desencaixando-se da existência, como se nela já não coubesse. Inventando outras razões para o fugir da saúde que o subtraía.
Naquelas terras, a SIDA vinga como capim em mato húmido. Com raízes que sufocam até o mais alto dos embondeiros. Quanto mais o Zé. O meu irmão africano.
«É malária, senhor Mateus! A gente trata disso à maneira tradicional», insistira ele, primeiro, recusando a minha oferta de o levar a uma clínica privada. Mas eu ia vendo a doença secar-lhe as esquinas do corpo, o brilho dos olhos e os gestos de ternura que sempre lhe sobravam para os meninos.
Mas nada trata «disso», à maneira tradicional. Porque o «isso», não existia na «tradição». E quando a doença também lhe sugou as últimas escoras de orgulho, lá fomos os dois, confirmar no teste clínico, a suspeita somada.
Durante três meses, drogas e o corpo, do meu irmão africano, travaram uma luta desigual, em território cansado. Até ele já mal conseguir suster-se em pé. Um dia, na África do Sul recém-nascida do «apartheid», transeuntes de um bairro desafogado viram um branco e um negro sentados no chão de um parque de estacionamento. Falando coisas que só eles sabiam. Dos mistérios da vida. Cumplicidades. Enquanto o Zé ganhava forças para mais uns passos.
«O Zé já morreu papá? Tá ao pé do Jesus?» – a pergunta do menino cortava-me alma adentro, uma saudade enorme daquele homem que tanto me ensinou, sem o saber. Sem o querer. Como naquele dia em que, ao regressar a casa, o encontrei rabujento. De sobrancelhas traçadas numa só linha, pelo franzir da testa.
À custa, na insistência, lá desalbardou o seu remoer: «Atão não vê o que falta ali?» – atirou ele, apontando num gesto brusco para o muro do vizinho. Eu fiquei perplexo. Dividido entre a agressividade inesperada e o alvo que me escapava.
«Atão não vê que os novos vizinhos cortaram a árvore da borracha do quintal? Como é que um branco corta assim uma árvore que é mais velha do que ele?» – concretizou o meu irmão africano.
Só então é que dei pelo vazio enorme deixado pela árvore centenária que os novos vizinhos me haviam dito pensar podar pela «lixeira» de folhas que lhes semeava no quintal.
Afinal, o remédio fora bem mais radical. Total. Nem mais uma folha desestabilizaria a limpeza do pátio. Nem o recital de pássaros que ali assomavam. E só aquele negro, com pés de raízes, parecia sentir, na pele, a morte daquele ser irmão, parido da mesma terra que um dia nos há-de a todos abraçar.
Sentado ali, no alcatrão quente do parque, ao lado dele, via a terra subtrair-me o Zé. E eu queria dizer-lhe isso tudo. Pedir-lhe que estendesse mais fundo as raízes e ficasse do lado de cá. Comigo. Para me ensinar a não fechar os olhos ao podar do Mundo.
«O Zé já morreu papá? Tá ao pé do Jesus» – E eu ficava a ver o meu irmão africano sumir-se anónimo entre a multidão dos esvaziados por esta doença, deixando-nos órfãos. De sangue ou coração. Mas reagindo sempre, em silêncio. Como se negando a doença e a dor, as varrêssemos do Mundo. Como se elas fossem sempre alheias. Dos outros, até que vozinhas, como aquela, nos cortassem o óbvio.
«O Zé já morreu papá? Tá ao pé do Jesus?» – Os olhos do menino brilhavam de ternura, como quando o meu irmão negro se despediu de nós para ir, nas suas palavras, «morrer em casa», na terra onde nasceu.
Eu e o Leonardinho abraçámo--lo, antes de ele entrar no carro e sumir-se, pela última vez, do nosso Mundo. Ficámos assim, uns minutos curtos. Demasiado curtos. Eu agarrado a ele, pelos ombros. E o Leo, pequenino. Às pernas de ambos.
Agora, era a vez de a doença destroncar a árvore da borracha por nós formada, evaporando-a, como se nunca tivesse existido. Como se nada tivesse sido, ou importado o seu ir. Até o menino fazer a pergunta que nós, adultos, sepultamos dentro de nós.
Com a indiferença de quem viu o vizinho cortar a borracheira e nada dizer.
António Mateus
O «Zé já morreu papá? Tá ao pé do Jesus?» – os olhos do Leonardinho empurravam a força das palavras, que não deixavam o homem negro varrer-se anónimo da superfície da Terra. Sugado pela doença que me levou o meu irmão africano.
Durante mais de um ano foi-se sumindo dentro da roupa, num esqueleto feito cabide. Desencaixando-se da existência, como se nela já não coubesse. Inventando outras razões para o fugir da saúde que o subtraía.
Naquelas terras, a SIDA vinga como capim em mato húmido. Com raízes que sufocam até o mais alto dos embondeiros. Quanto mais o Zé. O meu irmão africano.
«É malária, senhor Mateus! A gente trata disso à maneira tradicional», insistira ele, primeiro, recusando a minha oferta de o levar a uma clínica privada. Mas eu ia vendo a doença secar-lhe as esquinas do corpo, o brilho dos olhos e os gestos de ternura que sempre lhe sobravam para os meninos.
Mas nada trata «disso», à maneira tradicional. Porque o «isso», não existia na «tradição». E quando a doença também lhe sugou as últimas escoras de orgulho, lá fomos os dois, confirmar no teste clínico, a suspeita somada.
Durante três meses, drogas e o corpo, do meu irmão africano, travaram uma luta desigual, em território cansado. Até ele já mal conseguir suster-se em pé. Um dia, na África do Sul recém-nascida do «apartheid», transeuntes de um bairro desafogado viram um branco e um negro sentados no chão de um parque de estacionamento. Falando coisas que só eles sabiam. Dos mistérios da vida. Cumplicidades. Enquanto o Zé ganhava forças para mais uns passos.
«O Zé já morreu papá? Tá ao pé do Jesus?» – a pergunta do menino cortava-me alma adentro, uma saudade enorme daquele homem que tanto me ensinou, sem o saber. Sem o querer. Como naquele dia em que, ao regressar a casa, o encontrei rabujento. De sobrancelhas traçadas numa só linha, pelo franzir da testa.
À custa, na insistência, lá desalbardou o seu remoer: «Atão não vê o que falta ali?» – atirou ele, apontando num gesto brusco para o muro do vizinho. Eu fiquei perplexo. Dividido entre a agressividade inesperada e o alvo que me escapava.
«Atão não vê que os novos vizinhos cortaram a árvore da borracha do quintal? Como é que um branco corta assim uma árvore que é mais velha do que ele?» – concretizou o meu irmão africano.
Só então é que dei pelo vazio enorme deixado pela árvore centenária que os novos vizinhos me haviam dito pensar podar pela «lixeira» de folhas que lhes semeava no quintal.
Afinal, o remédio fora bem mais radical. Total. Nem mais uma folha desestabilizaria a limpeza do pátio. Nem o recital de pássaros que ali assomavam. E só aquele negro, com pés de raízes, parecia sentir, na pele, a morte daquele ser irmão, parido da mesma terra que um dia nos há-de a todos abraçar.
Sentado ali, no alcatrão quente do parque, ao lado dele, via a terra subtrair-me o Zé. E eu queria dizer-lhe isso tudo. Pedir-lhe que estendesse mais fundo as raízes e ficasse do lado de cá. Comigo. Para me ensinar a não fechar os olhos ao podar do Mundo.
«O Zé já morreu papá? Tá ao pé do Jesus» – E eu ficava a ver o meu irmão africano sumir-se anónimo entre a multidão dos esvaziados por esta doença, deixando-nos órfãos. De sangue ou coração. Mas reagindo sempre, em silêncio. Como se negando a doença e a dor, as varrêssemos do Mundo. Como se elas fossem sempre alheias. Dos outros, até que vozinhas, como aquela, nos cortassem o óbvio.
«O Zé já morreu papá? Tá ao pé do Jesus?» – Os olhos do menino brilhavam de ternura, como quando o meu irmão negro se despediu de nós para ir, nas suas palavras, «morrer em casa», na terra onde nasceu.
Eu e o Leonardinho abraçámo--lo, antes de ele entrar no carro e sumir-se, pela última vez, do nosso Mundo. Ficámos assim, uns minutos curtos. Demasiado curtos. Eu agarrado a ele, pelos ombros. E o Leo, pequenino. Às pernas de ambos.
Agora, era a vez de a doença destroncar a árvore da borracha por nós formada, evaporando-a, como se nunca tivesse existido. Como se nada tivesse sido, ou importado o seu ir. Até o menino fazer a pergunta que nós, adultos, sepultamos dentro de nós.
Com a indiferença de quem viu o vizinho cortar a borracheira e nada dizer.
António Mateus
1 Comments:
Para já não dizer que não devíamos ter ocupado, se é que ocupamos, as antigamente chamadas colónias, é hoje quase unânime a opinião de que Portugal lhes devia ter dado a independência em devido tempo. Possivelmente já há muito não teriam o problema da fome. Mas, a verdade é que também há quem, por óbvio engano, podendo talvez ter mais independência, não a queira ter...
Enviar um comentário
<< Home