sexta-feira, 2 de setembro de 2005

JARDIM E O RESTO

Lá tivemos o incomparável gosto de ver na televisão o dr. Alberto João, desta vez espumando de patriotismo, a anunciar que rejeitava a suposta rendição perante Espanha, ou talvez antes perante Castela, não estou bem certo acerca deste ponto. A questão, como decerto se lembram todos os que viram e ouviram o doutor, é a de um eventual favorecimento pelo governo PS da possível compra da TVI pelo grupo espanhol Prisa, conhecido sobretudo por controlar o diário espanhol «El País». A avaliar pelo que diz o eminente político madeirense, e bem se sabe que daquela boca só saem grandes verdades, a gente do grupo Prisa é de facto um bando de perigosíssimos esquerdistas e a sua compra da TVI, cuja extrema lusitanidade é tão marcada que não poucas vezes dá vontade de chorar, é uma ameaça para a independência nacional. Pelo que, compreensivelmente, o dr. Alberto João trovejava o seu protesto e garantia a resistência madeirense ao invasor. Por mim, pressinto, com razão ou sem ela, que o dr. Jardim é consumidor imoderado das piadas de «Os Batanetes», que talvez até se inspire neles para as suas próprias intervenções que, como bem se sabe, também põem o Contenente a rir e entretêm muito. Ainda assim, porém, não deixei de estranhar um pouco que só agora, a propósito da TVI e naturalmente que da sua inestimável programação, o portuguesismo tenha fervido nas veias talvez um poucochinho obstruídas do presidente madeirense. É que a venda a espanhóis de peças importantíssimas do património português na área financeira e económica tem decorrido animadíssima nos últimos anos, e sempre ou quase sempre por decisão última de figuras destacadas da direita portuguesa de que o dr. Alberto João Jardim é figura tão relevante quanto decorativa. Admito, naturalmente, que o eminente estadista não tenha dado pelos acontecimentos anteriores e só agora tenha sido sobressaltado pelo que se diz do Prisa e da TVI. Ou que tenha um especial apreço pelos programas no género da «Quinta das Celebridades» onde, de resto, o próprio Alberto João seria um residente perfeitamente enquadrado. Ou ainda que se tenha lembrado, de súbito, que no caso de uma decisiva deslocação para Madrid dos poderes políticos, a Espanha poderia não ser tão compreensiva e pronta quanto é o Contenente no momento de pagar-lhe, a ele e à sua custosíssima gestão, as fabulosas facturas.

Já agora...

Porém, para lá da vantagem lúdica que esta intervenção do dr. Alberto João teve, como de resto é seu timbre, e também do aspecto eventualmente didáctico que decorra do seu cuidado pelo destino da TVI, as suas empolgantes palavras contra a penetração espanhola, supostamente protegida pelo poder PS, podem acordar uma reflexão talvez interessante. É que andam a soar por aí muitos clamores de direita, algumas vezes individualizados em figuras do topo ou meio-topo, noutras vezes diluídos no relativo anonimato ou na assegurada discrição de meios de comunicação social pela direita dominados, que são muito capazes de consubstanciar uma espécie de armadilha em que será bom não cair. A coisa decorre em dois tempos. No primeiro tempo, um sujeito como o dr. Jardim ou mesmo alguém menos tosco (também pode dizer-se «menos primário» se se quiser ser gentil) tenta convencer-nos de que um poder PS é, genuína e inevitavelmente, de Esquerda, daquela mítica Esquerda que andará por aí, de faca entre os dentes e sedenta das mais terríveis subversões, à espera de que o País se distraia. No segundo tempo, trata-se de imputar ao governo PS, que por sinal ainda não tem tanto tempo de governação como isso, todas ou pelo menos algumas das malfeitorias ou das ineficácias que de facto são da responsabilidade dos anteriores governos de direita, designadamente dos dois governos PSD/CDS-PP. Note-se: não é que um governo PS não seja perfeitamente capaz de fazer as mais variadas coisas péssimas, e aliás o actual governo já deu algumas provas dessa capacidade. A questão é que, por um lado, ainda não teve tempo para tudo, e, por outro, ao responsabilizarem o actual governo, as tais vozes visam um duplo objectivo: branquear as décadas da direita no poder e instilar nas gentes menos atentas um reflexo de rejeição da Esquerda. Dir-se-á, e com verdade, que só cai nessa confusão quem já anda muito confuso. Mas o caso é que, depois de tantos anos de produção por grosso de mentiras e equívocos, o que não falta por aí é gente de boa-fé madura para ser docemente impelida para os terrenos onde a aldrabice floresce e dá frutos. Já agora, não será mau que reparemos nestas coisas. Para podermos fazer o que o poeta aconselhou: avisar toda a gente, informar, prevenir.

Correia da Fonseca