terça-feira, 4 de julho de 2006

OPINIÃO

A idade de ouro da filantropia em Portugal

O homem que morre rico, morre desgraçado.
Andrew Carnegie, 1889


Quando a carrinha itinerante da Gulbenkian chegava à minha aldeia, na longínqua década de sessenta, os miúdos, e alguns raros adultos alfabetizados, corriam para requisitar os livros que deveriam devolver 15 dias depois.
As cerca de duas horas em que a carrinha esperava eram um momento de intenso prazer, algo frustrante apenas para os leitores mais assíduos, que já conheciam a maioria dos livros disponíveis.
Seria interessante conhecer o número médio de leitores por livro, seguramente elevado, a avaliar pelo estado de conservação que ostentavam.

Em Portugal, a Fundação Calouste Gulbenkian é um caso notável de conversão de lucros em apoio social, da cultura à arte, da ciência à criação de emprego.
À semelhança dos grandes filantropos do final do século XIX e início do século XX, os seus fundos provêm da extracção de matérias-primas, neste caso do petróleo. Andrew Carnegie, por exemplo, fez a sua fortuna na produção de aço, também beneficiando da forte expansão da procura oriunda da industrialização da época.

Este exemplo faz-nos pensar que se trata de um facto absolutamente atípico, revelador, quando muito, dos grandes benefícios que os imigrantes podem trazer a um país.
Por outro lado, a filantropia parece mais um fenómeno americano, motivado por uma série de factores que vão dos incentivos fiscais à competição entre multimilionários que procuram deixar o seu nome ligado a um museu, uma sala de ópera, um hospital ou uma universidade.
Os filantropos de hoje são os magnatas da electrónica e da internet, como Gordon Moore (Intel), Bill Gates (Microsoft) ou Jeff Skoll (eBay) mas continuam a ser baseados nos EUA.
No entanto, a notícia da decisão de Warren Buffett, considerado proprietário da segunda maior fortuna do mundo, de doar até 85% da sua riqueza, com destaque para o reforço da «Bill and Melinda Gates Foundation» veio reforçar a dinâmica das doações e favorecer um espírito competitivo no sentido da contribuição para causas de interesse social.

Apesar da abundância de exemplos de grandes filantropos de origem americana, o fenómeno não escapou à tendência de globalização que afecta a actividade económica em geral.
A Alemanha, o Reino Unido, a Itália e a França são apenas alguns exemplos de países com fundações de grande dimensão e intensa actividade de benefício social. A nova elite indiana da informática, com base em Bangalore, tem igualmente uma intensa actividade filantrópica.
O estudo sobre «riqueza e filantropia» do Economist de 25 de Fevereiro (p.4) revela que embora o total de fundos disponibilzados para a filantropia, entre 95 e 2002, em percentagem do PIB, está perto dos 2% nos EUA, logo seguido do Canadá com 1,3%, da Grã Bretanha com 0,8%, da Holanda com 0,5% e da Suécia com 0,4%.

A expansão dos fundos disponíveis, das causas apoiadas e das formas de organização foi acompanhada do interesse de especialistas e das escolas de gestão.
Peter Drucker sempre se preocupou com as organizações sem fins lucrativos, geralmente financiadas por filantropos, grandes e pequenos; Mintzberg escreveu um famoso artigo na harvard Business Review em que considerava o sector não lucrativo como mais eficiente que o estado ou o sector privado para a gestão de actividades como a saúde; Charles Handy está prestes a lançar o livro «Beyond success: the new philantropists» e a Said Business School da Oxford University acaba de lançar o «Skoll Centre for Social Entrepreneurship» fundado pelo ex-presidente da eBay (Economist, p. 14).

Os filantropos têm causas muito diversificadas – pobreza, saúde pública, aquecimento global, extinção de espécies animais. Curiosamente, sendo os maiores contribuintes indivíduos que acumularam imensa riqueza, manifestam uma elevada preocupação com problemas de desigualdade social. George Soros, que fez uma enorme fortuna através da especulação cambial e no mercados de capitais, apoia os segmentos mais pobres da sociedade americana, com destaque para o apoio jurídico de arguidos em processos crime, frequentemente impossibilitados de suportar os custos com advogados, o que não raras vezes levou á condenação de inocentes.

Uma questão conceptual importante diz respeito à distinção entre filantropia e caridade – afinal uma prática corrente das classes altas em Portugal, por vezes objecto de ironia.
Para Claire Gaudiane, autora de «The Great good: How Philantropy Drives the American Economy and Can Save Capitalism», caridade diz respeito ao alívio dos sintomas de mal-estar; filantropia é o investimento em soluções dos problemas de base (»The Economist», p. 4).

Apesar dos inegáveis méritos da filantropia, as organizações que origina sofrem de problemas de organização e governação tão ou mais significativos que as empresas com fins lucrativos.

Um primeiro problema resulta da maior dificuldade em medir o desempenho destas organizações, por falta de um indicador financeiro consensual. Isso pode ser uma vantagem, na perspectiva social, porque podem incorporar mais correctamente os efeitos das externalidades, positivas ou negativas, que podem criar divergências entre o valor privado e social das empresas com fins lucrativos. No entanto, a falta de um indicador claro pode levar à ineficiência e desperdício de recursos.

O segundo problema resulta da dificuldade em garantir que os gestores evitam o clássico problema de agência em que podem sobrepor objectivos pessoais, incluindo remuneração elevada, directa ou em espécie, aos objectivos da organização. A eficiência das organizações sem fins lucrativos, tantas vezes caracterizadas por elevados custos administrativos, era uma das preocupações expressas por Peter Drucker.

Uma terceira consiste em optimizar a entrada de dois tipos de contributos complementares mas de natureza distinta: financeiros, oriundos de contribuintes com elevados recursos e humanos, com base em trabalho voluntário que pode ser altamente qualificado. Mesmo entre os filantropos, existem problemas de conflitos entre os grandes, que podem influenciar as decisões de organizações que dependem da sua contribuição e podem ostentar o seu nome e os pequenos, dispersos, e com reduzida capacidade de influenciar o processo de decisão.
Este problema é idêntico ao «benefício do controlo», um tema amplamente estudado no quadro das empresas privadas e que as recentes OPAs sobre a PT e o BPI permitem ilustrar.

A investigação sobre a filantropia e as empresas sem fins lucrativos é um dos desafios mais interessantes com que os estudiosos da gestão se podem defrontar.
A diversidade de perspectivas inclui a vertente económica (criação de valor), estratégica (definição de objectivos), do controlo de gestão (definição de indicadores e contabilização), financeira (risco, performance e financiamento), recursos humanos (retribuição, motivação e gestão de carreiras) entre outros.
Estamos atrasados?
Sem dúvida, mas os grandes fenómenos da actividade económica são sempre objecto de estudo anos ou décadas após a sua emergência.

Quanto à percepção pública da importância e do potencial da filantropia em Portugal, a comunicação social tem vindo a dedicar-lhe elevada atenção.
A questão da Colecção Berardo e da busca de instalações para a sua exibição pública é apenas um exemplo.
Outro exemplo recente é a criação da Fundação Champallimaud, com preocupação específica na área da saúde.
Outros portugueses de sucesso, como o futebolista Luís Figo, têm manifestado uma atenção e imaginações crescentes neste tema.

Portugal muito beneficiaria se estes exemplos se multiplicassem.
A economia portuguesa, com níveis de desigualdade mais elevados que a média europeia, representa um desafio e uma oportunidade para o fomento da filantropia. Os sectores da saúde, da educação e da cultura para alem do empreendedorismo e da criação de auto-emprego melhorariam significativamente se os portugueses com maior sucesso económico apoiassem estes sectores de actividade.

Apesar do crescimento económico das últimas décadas e dos esforços da Fundação Gulbenkian e outras, os níveis de literacia e educativos dos portugueses continuam claramente insuficientes para a afirmação, económica e social de Portugal no Mundo.
A filantropia é fundamental para ajudar a corrigir esse desequilíbrio.


José Paulo E.