quarta-feira, 25 de abril de 2007

PORTUGAL "PORTUGALIZADO"

Na cartografia das nossas revoluções comemora-se, hoje, uma vitória imprescindível: a da liberdade; e uma derrota vital: a da esperança. A ambivalência deste círculo revela muito das históricas frustrações que nos perseguem. Tropeçamos, desde 1383, no paradoxo de iniciar processos excepcionais de alteração social, criamos um pouco de desassossego e, depois, estatelamo-nos nos escombros dos desaires.

Há trinta e três anos fomos movidos pela fé. Tudo estava ao nosso alcance e íamos subir, esfuziantes, a escada de Jacob porque o céu era ali mesmo. As religiões criam uma espécie de promessa eloquente de bem-aventurança. Como se pedaços do paraíso tombassem brandamente na terra. O espectáculo, iluminado pelo fervor da candura, alvoroçou-nos e sacudiu a mansuetude dos nossos hábitos. Vivemos, então, a miopia de dominar os destinos colectivos, qualquer que seja o turvo significado da entusiasmada expressão. As coisas iam pertencer-nos, a pátria seria feliz e confiada; haviam sido removidos o abandono, a indecisão, a dúvida; as ruas e os seus clamores líricos constituíam autobiografias transpostas.

O festim durou pouco. A singularidade da via portuguesa para o socialismo representava-se na modesta circunstância de ninguém saber, verdadeiramente, o que era o socialismo - em especial os socialistas. Todos os partidos inscreveram nos seus textos sacrossantos a extraordinária palavra. A qual, inesperadamente também, desapareceu dos teores, das doutrinas, dos projectos e das convicções de quase todos os partidos. A pátria voltou a ser o revés de si própria. Refém de um passado engravatado, cabisbaixo e deprimido, Portugal portugalizou-se, e os portugueses deixaram de significar para tornarem a ser insignificantes. Roger Vailland, grande escritor francês, carimbou a expressão num romance, La Loi, no qual a personagem principal, um patriarca italiano, Don Cesare, viajado e culto, discreteia acerca de um país cujo povo se desinteressara.
Um país onde os escritores não escreviam, os jornalistas não faziam jornalismo, os homens de negócios viviam dos lucros, os políticos governavam para o estrangeiro. Lia-se: Ele pensara que a pior das desgraças era a de nascer português. A frase será exagerada; mas contém muito daquilo que muitos de nós pensamos.

Portugalizar é uma metáfora feroz e irónica. Todavia, caracteriza a nossa taciturna aceitação ao que consideramos fatalidade. Há trinta e três anos alimentámos um sonho buliçoso, sentimental, ocasional e frágil. O despertar desfez a fábula de que as coisas devem pertencer a quem as ama. Talvez sejamos culpados, porque não soubemos defender com paixão o que, apaixonadamente, desejávamos nos pertencesse.


B.B.

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1 Comments:

At 25 de abril de 2007 às 14:48, Anonymous Anónimo said...

Neste 25 de Abril em vez de celebrar o que mudou em ou desde 1974 proponho como reflexão o que não mudou desde 24 Abril daquele ano, as herança da ditadura que persistem na sociedade portuguesa. São muitas e eu sugiro cinco:

Uma direita que ainda fez a rotura com o passado

Enquanto a direita europeia é a direita do pós guerra da luta contra Hitler e o fascismo que dominou a Europa a direita portuguesa resultou da formação de formações partidárias que herdaram uma boa parte dos políticos da ditadura. O PPD herdou a ala liberal do regime em Lisboa e os membros mais discretos da ANP e da Legião Portuguesa fora de Lisboa; no CDS ficaram os que não quiseram aderir ao PPD. A direita portuguesa tem ainda hoje uma grande dificuldade em conviver com o passado, uma parte dela ainda hoje é democrata mais por opção do que por convicção.

O autoritarismo

Como se tem visto recentemente há uma percentagem significativa de portugueses para quem a solução de todas as crises da sociedade é o autoritarismo, o bom primeiro-ministro é o “chefe”. É um tique que encontramos tanto à direita como à esquerda, basta ver como o PS de hoje compara Guterres com Sócrates para se perceber isso, a grande qualidade de Sócrates não é a competência, a capacidade política, a sua visão para o país, é o seu lado autoritário que é sistematicamente louvado como a sua grande qualidade. O próprio Sócrates cultiva alguns tiques há muito conhecidos, o líder discreto, autoritário e austero são qualidades muito apreciadas num país onde o ruralismo tem raízes profundas.

O Estado paternalista

Os portugueses continuam a ver no Estado a solução de todos os seus problemas, da competitividade das empresas à qualidade do ensino tudo tem que ser resolvido pelo Estado, mesmo em democracia limitam o exercício da cidadania ao mínimo bastando-lhes o voto para transferirem para os governos a responsabilidade por todos os males do país.

As boas maneiras

Apesar de a corrupção e outros males dominarem a sociedade portuguesa os portugueses são apegados às boas maneiras, tratamos o Valentim Loureiro por “senhor Major”, o Público foi condenado porque prejudicou a imagem de um clube desportivo ao divulgar que este tinha dívidas ao fisco. Muitos dos valores do salazarismo subsistiram desde o respeitinho pelos “senhores” até às virtudes da pancada como método educativo, ainda recentemente defendido num acórdão do Supremo. Basta comparar a linguagem do debate político em democracias como a americana ou a britânica para percebermos que por cá ainda há quem defenda as boas maneiras do tempo da ANP e um bom exemplo disso são as referências de Sócrates ou do Procurador-Geral da República aos blogues.

Uma sociedade não competitiva

A ditadura dispensou os portugueses de serem ambiciosos e a democracia não lhes ensinou o contrário, valoriza-se mais o resultado do sucesso do que a forma como este foi alcançado. Da economia às escolas a competitividade quase foi banida, umas vezes por ser pecaminosa e outras por dispensar as soluções mais fáceis. A lei do menor esforço tornou-se a regra de uma sociedade, os empresários procuram o sucesso escapando aos impostos, a corrupção dos autarcas é elogiada se os seus resultados se traduziram em benefício para os municípios, o Alberto é um herói porque se aproveita de uma democracia onde as regiões mais pobres financiam a sua autonomia e os canudos fáceis das universidades privadas resolveram o défice de licenciados.

 

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