A HISTERIA CONTRA O ESTADO DE DIREITO
Vai por esse país fora uma espécie de histeria colectiva a propósito da entrada em vigor do novo Código de Processo Penal (CCP). A histeria é deliberadamente alimentada por quem sabe e nela tem interesse - alguns polícias e magistrados - e destinada a ser consumida, pronta-a-servir, por quem não sabe - jornalistas alarmistas e público das telenovelas.
A fazer fé no que dizem, a Assembleia da República resolveu, e logo por unanimidade: a) aprovar sem aviso um CPP; b) tão irresponsável nas reformas que introduz (Marcelo «dixit») que, para já, está a pôr em liberdade toda a espécie de perigosos bandidos; e, c) mais tarde vai tornar impossível coisas como o combate ao chamado ‘crime de colarinho branco’. Um indignado leitor do ‘Diário de Notícias’ resumia o sentimento geral, anteontem, no jornal: “aqui está um país exemplar, que altera o Código Penal em prol dos criminosos mais violentos! Se já se vive em Portugal um clima de insegurança, ... (agora, com) violadores, pedófilos, assassinos e traficantes à solta, é aterrador!”
Observemos o fundamento das preocupações deste leitor. Em primeiro lugar, o que está em causa não é o Código Penal mas sim o Código de Processo Penal, que regula o funcionamento da tramitação processual em matéria criminal. O CPP não extingue nenhum crime nem desagrava penas, limita-se a estabelecer as regras de procedimento judicial, em caso de crime. Em segundo lugar, nós não vivemos em nenhum “clima de insegurança”, pelo contrário, continuamos a ser dos países mais seguros do mundo e a ter índices de criminalidade violenta em regressão. É certo que, na noite do Porto e na de Lisboa, há um sector marginal em que a criminalidade violenta tem dado nas vistas, mas não apenas ela existe fora do mundo normal dos cidadãos normais como a sua existência remete para a ineficácia policial e não para a brandura das leis. E é certo também, para referir a criminalidade violenta noticiada nos últimos dias, que nenhuma lei pode evitar que um brilhante estudante universitário com problemas psíquicos degole a namorada ou que uma mãe tresloucada mate os três filhos e a seguir se suicide. Em terceiro lugar, a reforma do CPP não foi feita “em prol dos criminosos mais violentos”: saíram até agora em liberdade, devido à entrada em vigor do novo CPP, 150 presos, de um total que se calcula possa ir até aos 228. Isto num universo de 2800 presos preventivos, que, por sua vez, representam menos de um quarto do total de presos existentes em Portugal. Ou seja, sairão das prisões, ao abrigo da lei nova, cerca de 2% dos presos que lá estão e nenhum deles integra a categoria a que o leitor chama os criminosos mais violentos. Quem sai, então? Saem justamente aqueles que, por estarem implicados em crimes menos graves, se considerou que tinham direito a ver os seus prazos de prisão preventiva encurtados. Já agora e finalmente: o novo CPP não entrou em vigor sem aviso e no desconhecimento geral: de há muito que estava em discussão e há mais de dois meses que tinha sido aprovado na Assembleia - mas é característica bem portuguesa só se preparar para as coisas depois de elas acontecerem.
Talvez valha a pena começar por lembrar o óbvio, mas tantas vezes esquecido, a benefício da paranóia securitária: a prisão preventiva é uma medida excepcional, através da qual, não poucas vezes, um inocente é mantido em prisão longamente, enquanto espera por um arquivamento ou um julgamento que irá determinar que, afinal, não havia razão para o manter preso. Parece que, felizmente, a percentagem de presos preventivos em Portugal tem vindo a baixar, face a tempos recentes em que atingiu números assustadores. Mas, se há menos preventivos, a duração das suas detenções ‘provisórias’ tem vindo a alongar-se sucessivamente: numa situação em que, há uns quinze anos, se previa que a prisão preventiva não pudesse ir além de três meses, hoje essa mesma situação pode deixar alguém preso preventivamente até nove meses. E porquê, se as suspeitas ou as causas que fundamentam a prisão são as mesmas? Porque a polícia e o Ministério Público foram argumentando sem descanso que os prazos eram curtos para lhes permitir concluir as investigações. Mas um preso preventivo - que é alguém que se presume inocente - não tem culpa que, por incompetência ou por falta de meios dos investigadores, a sua detenção se prolongue para além de um prazo que, por natureza, tem de ser excepcionalmente curto.
Daí os protestos de quem tem que investigar. Daí as correrias em cima da hora para notificar, enfim, a acusação a presos preventivos, evitando que eles saíssem em liberdade por extinção dos prazos previstos no novo CPP - o que prova que, afinal, a acusação poderia ter sido deduzida antes… A mensagem do novo CPP é neste ponto clara e desafiadora: a ineficácia da máquina judicial não pode ser compensada e disfarçada à custa dos direitos de defesa dos arguidos. Era isso que estava a acontecer cada vez mais e é isso a que agora se quis pôr termo. Compreendo, sem aceitar, que aqueles que, por força desta alteração, vão passar a ter de trabalhar mais depressa e mais eficazmente se queixem; compreendo que o ‘nobre povo’ que, numa semana, é capaz de passar dos ‘coitadinhos dos McCann’ para os ‘criminosos dos McCann’ se indigne, sem perceber o que está em causa; compreendo bem pior que outros, que não são nem ignorantes nem parte na questão, venham também juntar-se à histeria demagógica dos ‘criminosos à solta’, fingindo esquecer que o que está em causa é a defesa do Estado de Direito, não como flor de retórica mas no concreto das prisões, das esquadras de polícia e dos tribunais, onde, de facto, se mede o grau de protecção dos direitos vigente em determinada sociedade.
O novo CPP vem também retirar aos investigadores algumas facilidades a que estavam habituados, tais como as escutas telefónicas sem controlo e sem razão de justiça ou a possibilidade das maratonas nocturnas de interrogatórios - tal como vimos no caso McCann e noutros mais. Ambas as coisas destinadas a habilitar os investigadores com a mais clássica, a mais fácil e a mais fraca das provas: a auto-incriminação do arguido. Daqui, e a propósito da limitação do abuso das escutas telefónicas ou da validade das queixas anónimas, partiram os críticos do novo CPP para a acusação demagógica de que o poder político estaria a vingar-se do ‘caso Casa Pia’. Digo-vos que é preciso ter descaramento! Mal do poder político que, tendo assistido estarrecido, tal como o país inteiro, à sucessão de atropelos, enormidades e abusos de toda a ordem cometidos na investigação do ‘caso Casa Pia’, nada fizesse para extrair daí as lições que se impunham! Quando se chegou ao extremo limite de mostrar aos miúdos abusados da Casa Pia uma lista de figuras públicas - de Eduardo Prado Coelho a Mário Soares - para eles assim “identificarem” eventuais abusadores, é evidente que alguém, com legitimidade democrática para tal, teria que explicar a quem investiga que não vale tudo.Ainda bem que o poder político se impôs, como devia. Prefiro uma lei que tem erros e imprevisões evitáveis com mais cuidado, uma lei que, eventualmente, vai soltar alguém que não devia, a lei nenhuma e à continuação da investigação criminal em roda livre e ao sabor das conveniências particulares de quem investiga.
Miguel Sousa Tavares
A fazer fé no que dizem, a Assembleia da República resolveu, e logo por unanimidade: a) aprovar sem aviso um CPP; b) tão irresponsável nas reformas que introduz (Marcelo «dixit») que, para já, está a pôr em liberdade toda a espécie de perigosos bandidos; e, c) mais tarde vai tornar impossível coisas como o combate ao chamado ‘crime de colarinho branco’. Um indignado leitor do ‘Diário de Notícias’ resumia o sentimento geral, anteontem, no jornal: “aqui está um país exemplar, que altera o Código Penal em prol dos criminosos mais violentos! Se já se vive em Portugal um clima de insegurança, ... (agora, com) violadores, pedófilos, assassinos e traficantes à solta, é aterrador!”
Observemos o fundamento das preocupações deste leitor. Em primeiro lugar, o que está em causa não é o Código Penal mas sim o Código de Processo Penal, que regula o funcionamento da tramitação processual em matéria criminal. O CPP não extingue nenhum crime nem desagrava penas, limita-se a estabelecer as regras de procedimento judicial, em caso de crime. Em segundo lugar, nós não vivemos em nenhum “clima de insegurança”, pelo contrário, continuamos a ser dos países mais seguros do mundo e a ter índices de criminalidade violenta em regressão. É certo que, na noite do Porto e na de Lisboa, há um sector marginal em que a criminalidade violenta tem dado nas vistas, mas não apenas ela existe fora do mundo normal dos cidadãos normais como a sua existência remete para a ineficácia policial e não para a brandura das leis. E é certo também, para referir a criminalidade violenta noticiada nos últimos dias, que nenhuma lei pode evitar que um brilhante estudante universitário com problemas psíquicos degole a namorada ou que uma mãe tresloucada mate os três filhos e a seguir se suicide. Em terceiro lugar, a reforma do CPP não foi feita “em prol dos criminosos mais violentos”: saíram até agora em liberdade, devido à entrada em vigor do novo CPP, 150 presos, de um total que se calcula possa ir até aos 228. Isto num universo de 2800 presos preventivos, que, por sua vez, representam menos de um quarto do total de presos existentes em Portugal. Ou seja, sairão das prisões, ao abrigo da lei nova, cerca de 2% dos presos que lá estão e nenhum deles integra a categoria a que o leitor chama os criminosos mais violentos. Quem sai, então? Saem justamente aqueles que, por estarem implicados em crimes menos graves, se considerou que tinham direito a ver os seus prazos de prisão preventiva encurtados. Já agora e finalmente: o novo CPP não entrou em vigor sem aviso e no desconhecimento geral: de há muito que estava em discussão e há mais de dois meses que tinha sido aprovado na Assembleia - mas é característica bem portuguesa só se preparar para as coisas depois de elas acontecerem.
Talvez valha a pena começar por lembrar o óbvio, mas tantas vezes esquecido, a benefício da paranóia securitária: a prisão preventiva é uma medida excepcional, através da qual, não poucas vezes, um inocente é mantido em prisão longamente, enquanto espera por um arquivamento ou um julgamento que irá determinar que, afinal, não havia razão para o manter preso. Parece que, felizmente, a percentagem de presos preventivos em Portugal tem vindo a baixar, face a tempos recentes em que atingiu números assustadores. Mas, se há menos preventivos, a duração das suas detenções ‘provisórias’ tem vindo a alongar-se sucessivamente: numa situação em que, há uns quinze anos, se previa que a prisão preventiva não pudesse ir além de três meses, hoje essa mesma situação pode deixar alguém preso preventivamente até nove meses. E porquê, se as suspeitas ou as causas que fundamentam a prisão são as mesmas? Porque a polícia e o Ministério Público foram argumentando sem descanso que os prazos eram curtos para lhes permitir concluir as investigações. Mas um preso preventivo - que é alguém que se presume inocente - não tem culpa que, por incompetência ou por falta de meios dos investigadores, a sua detenção se prolongue para além de um prazo que, por natureza, tem de ser excepcionalmente curto.
Daí os protestos de quem tem que investigar. Daí as correrias em cima da hora para notificar, enfim, a acusação a presos preventivos, evitando que eles saíssem em liberdade por extinção dos prazos previstos no novo CPP - o que prova que, afinal, a acusação poderia ter sido deduzida antes… A mensagem do novo CPP é neste ponto clara e desafiadora: a ineficácia da máquina judicial não pode ser compensada e disfarçada à custa dos direitos de defesa dos arguidos. Era isso que estava a acontecer cada vez mais e é isso a que agora se quis pôr termo. Compreendo, sem aceitar, que aqueles que, por força desta alteração, vão passar a ter de trabalhar mais depressa e mais eficazmente se queixem; compreendo que o ‘nobre povo’ que, numa semana, é capaz de passar dos ‘coitadinhos dos McCann’ para os ‘criminosos dos McCann’ se indigne, sem perceber o que está em causa; compreendo bem pior que outros, que não são nem ignorantes nem parte na questão, venham também juntar-se à histeria demagógica dos ‘criminosos à solta’, fingindo esquecer que o que está em causa é a defesa do Estado de Direito, não como flor de retórica mas no concreto das prisões, das esquadras de polícia e dos tribunais, onde, de facto, se mede o grau de protecção dos direitos vigente em determinada sociedade.
O novo CPP vem também retirar aos investigadores algumas facilidades a que estavam habituados, tais como as escutas telefónicas sem controlo e sem razão de justiça ou a possibilidade das maratonas nocturnas de interrogatórios - tal como vimos no caso McCann e noutros mais. Ambas as coisas destinadas a habilitar os investigadores com a mais clássica, a mais fácil e a mais fraca das provas: a auto-incriminação do arguido. Daqui, e a propósito da limitação do abuso das escutas telefónicas ou da validade das queixas anónimas, partiram os críticos do novo CPP para a acusação demagógica de que o poder político estaria a vingar-se do ‘caso Casa Pia’. Digo-vos que é preciso ter descaramento! Mal do poder político que, tendo assistido estarrecido, tal como o país inteiro, à sucessão de atropelos, enormidades e abusos de toda a ordem cometidos na investigação do ‘caso Casa Pia’, nada fizesse para extrair daí as lições que se impunham! Quando se chegou ao extremo limite de mostrar aos miúdos abusados da Casa Pia uma lista de figuras públicas - de Eduardo Prado Coelho a Mário Soares - para eles assim “identificarem” eventuais abusadores, é evidente que alguém, com legitimidade democrática para tal, teria que explicar a quem investiga que não vale tudo.Ainda bem que o poder político se impôs, como devia. Prefiro uma lei que tem erros e imprevisões evitáveis com mais cuidado, uma lei que, eventualmente, vai soltar alguém que não devia, a lei nenhuma e à continuação da investigação criminal em roda livre e ao sabor das conveniências particulares de quem investiga.
Miguel Sousa Tavares
Etiquetas: Novo Código do Processo Penal
1 Comments:
O novo regulamento do Código Penal vai para o inferno como outros bem intencionados que lá ardem. Sabemos, mas não podemos provar, que este novo regulamento foi alterado com rapidez porque o Poder Político socialista agastado com as humilhações que passou no Processo Casa Pia tinha de se vingar logo que chegasse ao Poder. E não perdeu tempo. E Mendes deu um empurrão.
Lembre-mo-nos das célebres transcrições de escutas telefónicas entre António Costa e Ferro Rodrigues. Eram uma escandaleira e lembremos os vexames porque passaram altas figuras do Estado. Também acho que aquilo foi de mais, pôs o nome na lama de gente inocente e acabou por tirar força e verdade à investigação.
Tem de haver mecanismos que protejam os acusados e os inocentes e ninguém deve ser julgado nos jornais nem na praça pública. Isto é mesmo uma das razões fortes da democracia: proteger os inocentes e castigar justamente os prevaricadores. Não é o que acontece como bem sabemos.
Acontece que a Justiça em Portugal é uma bosta e que pouco ou nada tem sido feito para a tornar mais eficaz. Os juízes ainda escrevem em papel, transportam toneladas de dossiers, os tribunais não estão em rede e os computadores que por lá estão são verdadeiras máquinas de escrever. Só faz lembrar o filme de Welles "O Processo" baseado no romance de kafka.
A má justiça é mesmo um dos factores de subdesenvolvimento do país e quando se chega aos crimes económicos é de fugir. Quem for queixoso num negócio, tarde ou nunca será reparado. Isto leva à fuga dos investimentos.
Também é verdade que as guerras entre as polícias, o Ministério Público e o Poder político têm tornado ainda mais ineficaz e confusa a justiça. Agora o governo quer matar o Ministério Público. Percebe-se: foi ele que fez tremer no processo Casa Pia e foi ele, em Itália, que deu origem ao processo Mãos Limpas. Estão a ver o medo, não estão ?
Há excelentes profissionais na polícia, sem meios, rodeados de burocratas, empatas e carreiristas que não querem uma polícia eficaz, mas sim uma polícia açaimada pelo controle político.
Os juízes tornaram-se vedetas, opinam, pressionam, dão entrevistas, têm opinião sobre tudo e tornaram-se não em agentes da justiça mas em mais um lobby de pressão sindical e política.
A Justiça só é possível para os pobres, que nada influem, ou para os muito ricos que podem pagar advogados a 500 euros à hora ( e não são os mais baratos).
Portanto: o novo regulamento do Código Penal, que à partida parece mais justo porque defende o cidadão encarcerado pelas longas prisões preventivas, transforma-se como muito bem escrevia hoje no Correio da Manhã Moita Flores, num instrumento que vai permitir pôr cá fora mais bandidos, vigaristas e assassinos, cuja acusação precisando de tempo extra de investigação vai prescrever e permitir pôr ao fresco muita malandragem.
O Estado vê-se livre de parasitas nas prisões, poupa na limpeza das latrinas e no macarrão, e os cidadãos que se danem. Se querem justiça paguem a uns capangas ou disparem sobre o pianista!...
Se o Processo Casa Pia fosse hoje, muito do que se escreveu não teria vindo à luz do dia e muitos dos pedófilos que aguentaram atrás das grades teriam estado em aprazível liberdade.
Mas também é verdade que é um escândalo os acusados continuarem por julgar, nunca serão definitivamente condenados ( se for caso disso) e a única penalização que tiveram e terão foi a preventiva. Isto é inadmissível e não vai ser resolvido com este novo código. Pelo contrário vai ser agravado o ineficaz funcionamento dos tribunais. É o que todos dizem. Menos o governo.
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