AS MITOLOGIAS DE SEGUNDA ORDEM
Nenhuma técnica de propaganda determina o êxito de produtos inferiores. Mas pode enganar os incautos inúmeras vezes. O Emídio Rangel disse, em certa ocasião, que as audiências da SIC poderiam impor um Presidente. A afirmação causou rebuliço. Porém, estava escorada na verdade.
Experiências semelhantes, em outros países, serviam de argumento incontestável. Acontece que o Rangel estava sob o fogo de atiradores, acoitados em todos os pontos cardiais. E acresce o facto de ele possuir um talento que escasseava, notoriamente, aos seus inimigos. Abriu um precedente histórico, mais tarde confirmado na RTP: dois políticos da terceira divisão obtiveram imensa popularidade. Ambos treparam a primeiro-ministro, segundo milagres que, como todos os milagres, assentam numa fraude.
A análise desta problemática está feita há muitíssimos anos. No território dos livros (falo de livros, não de literatura) o assunto, então, parece coisa de vudú. Mas não é. O artifício cria a ilusão. Só muito raramente o grande texto chega ao grande público. O epifenómeno das tiragens extraordinárias corresponde à sua própria fragilidade: duram a sombra do momento.
No tempo do Aquilino, cujos livros alcançavam edições médias de mil, dois mil exemplares, os grandes vencedores (ou grandes vendedores, como se lhes queira chamar) eram Albino Forjaz de Sampaio, Manuel Ribeiro, Sousa Costa ou o seráfico Antero de Figueiredo (que se persignava, antes de começar a escrever), com milhares e milhares de livros. Para não falar de Mary Love ou de Sarah Beirão. Gente estimável e, até, com algum mérito, que almejava dizer tudo sem, rigorosamente, dizer nada. Não fizeram mal a ninguém. Nem bem. Tal como os produtos naturais que não curam nem martirizam, apenas despejam um pouco as bolsas dos persuadidos.
Ora bem: um jornalismo sossegado, preguiçoso, ignorante e até patético tem promovido uma série de medíocres, nos mais amplos sectores da sociedade portuguesa. A crítica dos valores suicidou-se com funambulismos verbais. Na política, apenas têm permissão de audiência duas componentes do girassol ideológico português – se há, de facto, “ideologia” no PS e no PSD. O paradigma daquele programa, Quadratura do Círculo, no qual as três vozes soam a uníssono, constitui um pluralismo inventado numa realidade de metáfora.
A imposição de um pensamento imaginado como original e seriamente atendível não passa de uma convocatória para a imbecilidade e para a anestesia geral. A maioria dos que pensam neste país, que sabem pensar e que poderia ajudar-nos a pensar é, sistematicamente, colocada no limbo. Por ignorância, burrice, mas também por orientação deliberada.
Dias a fio as televisões, as rádios e os jornais transformaram o debate parlamentar num caso entre duas criaturas mediáticas. Os enfoques não se dirigiam para o Orçamento de Estado mas, directamente, para o eventual duelo entre o primeiro-ministro e o líder da bancada do PSD. O ridículo chegou ao ponto de se proceder a uma retrospectiva televisiva dos dois senhores, quando ambos paramentavam a vacuidade das ideias com uma pretensa loquacidade. Até hoje, qualquer dos dois não passou de taciturna mediania.
Quem vai ganhar? Perguntava a pátria, induzida, impelida, constrangida pela máquina acéfala dos media. Um enternecedor concentrado de atenções fez incidir a curiosidade para o debate. O resultado só foi decepcionante para os que ainda pensam que aqueles dois pensam. Não pensam coisíssima nenhuma. Eles nunca souberam ser outra coisa se não o que são: triviais enfatuados, com gravíssimas culpas no estado a que Portugal chegou.
Encheram-se as galerias de São Bento. Já não há bilhetes, declamou, impante, uma pivô. Tratava-se de espectáculo de circo. Horas e horas de televisão. Comentadores do óbvio a comentarem o obviamente vazio. Os dois cavalheiros aprenderam a infinita capacidade de falar, só falar, sem dizer coisa alguma. Assistiu-se a um intermezzo cómico e a esse paroxismo de telenovela em que se tornou o Parlamento. As novas mitologias de segunda ordem adquiridas por um país sem sorte, sem norte, sem porte, pertencem à classe do inevitável.
Chegámos a esta pouca-vergonha por ausência de ética, por desfalecimento moral, pela capitulação de uma Imprensa acrítica, que sequer respeita o valor das suas origens. O encontro, no Parlamento, daqueles dois senhores foi mais um golpe na credibilidade da política, e outra manifestação de indigência do jornalismo pós-moderno.
B.B.
Experiências semelhantes, em outros países, serviam de argumento incontestável. Acontece que o Rangel estava sob o fogo de atiradores, acoitados em todos os pontos cardiais. E acresce o facto de ele possuir um talento que escasseava, notoriamente, aos seus inimigos. Abriu um precedente histórico, mais tarde confirmado na RTP: dois políticos da terceira divisão obtiveram imensa popularidade. Ambos treparam a primeiro-ministro, segundo milagres que, como todos os milagres, assentam numa fraude.
A análise desta problemática está feita há muitíssimos anos. No território dos livros (falo de livros, não de literatura) o assunto, então, parece coisa de vudú. Mas não é. O artifício cria a ilusão. Só muito raramente o grande texto chega ao grande público. O epifenómeno das tiragens extraordinárias corresponde à sua própria fragilidade: duram a sombra do momento.
No tempo do Aquilino, cujos livros alcançavam edições médias de mil, dois mil exemplares, os grandes vencedores (ou grandes vendedores, como se lhes queira chamar) eram Albino Forjaz de Sampaio, Manuel Ribeiro, Sousa Costa ou o seráfico Antero de Figueiredo (que se persignava, antes de começar a escrever), com milhares e milhares de livros. Para não falar de Mary Love ou de Sarah Beirão. Gente estimável e, até, com algum mérito, que almejava dizer tudo sem, rigorosamente, dizer nada. Não fizeram mal a ninguém. Nem bem. Tal como os produtos naturais que não curam nem martirizam, apenas despejam um pouco as bolsas dos persuadidos.
Ora bem: um jornalismo sossegado, preguiçoso, ignorante e até patético tem promovido uma série de medíocres, nos mais amplos sectores da sociedade portuguesa. A crítica dos valores suicidou-se com funambulismos verbais. Na política, apenas têm permissão de audiência duas componentes do girassol ideológico português – se há, de facto, “ideologia” no PS e no PSD. O paradigma daquele programa, Quadratura do Círculo, no qual as três vozes soam a uníssono, constitui um pluralismo inventado numa realidade de metáfora.
A imposição de um pensamento imaginado como original e seriamente atendível não passa de uma convocatória para a imbecilidade e para a anestesia geral. A maioria dos que pensam neste país, que sabem pensar e que poderia ajudar-nos a pensar é, sistematicamente, colocada no limbo. Por ignorância, burrice, mas também por orientação deliberada.
Dias a fio as televisões, as rádios e os jornais transformaram o debate parlamentar num caso entre duas criaturas mediáticas. Os enfoques não se dirigiam para o Orçamento de Estado mas, directamente, para o eventual duelo entre o primeiro-ministro e o líder da bancada do PSD. O ridículo chegou ao ponto de se proceder a uma retrospectiva televisiva dos dois senhores, quando ambos paramentavam a vacuidade das ideias com uma pretensa loquacidade. Até hoje, qualquer dos dois não passou de taciturna mediania.
Quem vai ganhar? Perguntava a pátria, induzida, impelida, constrangida pela máquina acéfala dos media. Um enternecedor concentrado de atenções fez incidir a curiosidade para o debate. O resultado só foi decepcionante para os que ainda pensam que aqueles dois pensam. Não pensam coisíssima nenhuma. Eles nunca souberam ser outra coisa se não o que são: triviais enfatuados, com gravíssimas culpas no estado a que Portugal chegou.
Encheram-se as galerias de São Bento. Já não há bilhetes, declamou, impante, uma pivô. Tratava-se de espectáculo de circo. Horas e horas de televisão. Comentadores do óbvio a comentarem o obviamente vazio. Os dois cavalheiros aprenderam a infinita capacidade de falar, só falar, sem dizer coisa alguma. Assistiu-se a um intermezzo cómico e a esse paroxismo de telenovela em que se tornou o Parlamento. As novas mitologias de segunda ordem adquiridas por um país sem sorte, sem norte, sem porte, pertencem à classe do inevitável.
Chegámos a esta pouca-vergonha por ausência de ética, por desfalecimento moral, pela capitulação de uma Imprensa acrítica, que sequer respeita o valor das suas origens. O encontro, no Parlamento, daqueles dois senhores foi mais um golpe na credibilidade da política, e outra manifestação de indigência do jornalismo pós-moderno.
B.B.
Etiquetas: Portugal
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