OPINIÃO
BASTAM RAZÕES DE VERGONHA
1. "Democraticamente" absolvida nas urnas, como era de esperar, a D.ª Fátima Felgueiras está agora em vias de se ver alijada dos seus problemas judiciais, como também era de esperar. A senhora merece que se lhe tire o chapéu: fez uma sábia gestão dos seus trunfos e dos seus timings e, entre a demissão cívica do seu povo e a demissão institucional da justiça, descobriu o caminho para a impunidade. "Dei uma lição ao país!", exclamou ela, triunfante, na noite de 9 de Outubro. E deu mesmo. A lição foi esta: o único crime que não se perdoa é o da falta de esperteza.
O Tribunal da Relação de Guimarães liquidou, de facto, o processo de Fátima Felgueiras, mandando refazer o essencial da instrução e, com isso, remetendo o julgamento para as calendas do ano vindouro. Os desembargadores de Guimarães entenderam que o Ministério Público e o juiz de instrução não fizeram senão asneiras na construção da acusação: as escutas telefónicas são ilegais porque o juiz não as foi validando dentro de "um prazo razoável", e os principais testemunhos acusatórios são nulos porque os depoentes foram ouvidos como testemunhas e não como arguidos, como o deveriam ter sido (e embora, posteriormente, ouvidos como arguidos, tenham confirmado o que haviam dito antes). Pouco importa, todavia, o conteúdo de umas e outras provas: para a justiça portuguesa, a fórmula é tudo, a substância é um estorvo.
Longe de mim - valha-me Deus! - contestar a lógica irrebatível dos argumentos dos senhores desembargadores de Guimarães. Limito-me a observar que uma magistratura passou aqui um atestado de incompetência à outra e que tudo se encaminha, uma vez mais, para que os formalismos processuais conduzam à denegação de justiça. Mas, juntas e unidas nas suas lamentações, ambas as magistraturas estão em greve contra o "desprestígio" que o Governo lança sobre elas.
Parece que a redução das férias de Verão dos magistrados de dois para um mês e a supressão do regime especial de saúde de que beneficiavam, em troca do regime geral, afectam gravemente as "condições de independência" da classe e indiciam mesmo uma tentativa de controlo político sobre a justiça. Ouvido pela TSF, o presidente do Sindicato dos Juízes, Baptista Coelho, esclareceu que, enquanto órgão de soberania, os magistrados se batem pela sua independência; e, enquanto "carreira profissional", estão em greve por condições privilegiadas de dependência do Estado. Fiquei esclarecido - como, aliás, fico sempre que o dr. Baptista Coelho e o dr. Cluny, do Sindicato do Ministério Público, expõem as suas razões. Talvez alguém com mais senso lhes devesse explicar que o país já não é assim tão estúpido quanto eles imaginam.
2. Preparada "durante um ano", ensaiada ao pormenor, de véspera e por mais de 60 pessoas envolvidas, a "mega-operação" de "flagra" sobre a banca cobriu-se de ridículo à nascença. Numa operação capaz de abalar todo o sistema bancário, onde tudo deveria ser tratado com pinças e total discrição, logo a abrir, as autoridades apresentaram-se no primeiro banco sem um mandado de busca em condições; depois, mandaram-no vir por fax para o próprio banco a rebuscar, esquecendo-se de apagar do cabeçalho o nome dos restantes alvos a surpreender e das suspeitas que sobre eles recaíam. Como é óbvio, meia hora depois, Lisboa inteira já sabia o que estava em curso, e, perante tão chocante incompetência dos seus serviços, o senhor procurador-geral da República não encontrou melhor maneira de disfarçar a vergonha do que mandar instaurar um processo por violação do segredo de justiça... aos jornalistas!
Digamo-lo tranquilamente: num país a sério, o senhor procurador-geral e a senhora procuradora adjunta que dirigiu a operação teriam apresentado a sua demissão ou estariam demitidos no dia seguinte. Aqui, estão em greve, pelo seu "prestígio" e, sobretudo, para que ninguém ouse beliscar esta santa impunidade funcional de que gozam e a que gostam de chamar "independência".
3. Nomeados pelo governo PSD, alguns administradores da CP e outros da Refer descobriram a fórmula genial de se porem ao abrigo das flutuações políticas e garantirem um emprego de futuro, muito para além dos três anos normais dos mandatos dos gestores públicos: os da CP foram nomeados para o quadro da Refer, com o cargo de directores e o lugar reservado até saírem da CP, e os da Refer fizeram o mesmo na CP.
Descoberta a esperteza, chamados a explicarem-se e instaurados os respectivos processos de averiguações, os senhores administradores mantiveram a bola baixa, a ver se a coisa passava. Mas, concluídas as averiguações e na iminência de um despedimento com mais do que justa causa, os da Refer convocaram uma conferência de imprensa para despejar o saco: o que fizeram tratava-se de "um processo normal", que, aliás, tinham tido o cuidado de validar previamente junto do Partido Socialista, então oposição, e da senhora que depois viria a ser a secretária de Estado da tutela, no governo PS. Em seu entender, estaríamos assim perante um "saneamento pessoal e político", inclusive confirmado por suspeitíssimas informações circulando entre a Refer, o governo PS e as suas autarquias - de que só agora lhes ocorrera suspeitar.
À noite, e depois de grandes cerimónias, o ministro despediu-os de vez. Mas eu aposto, infelizmente, que, por irregularidades processuais ou qualquer outro pretexto espúrio, e devidamente escudados em "pareceres" dos mestres de Direito sempre disponíveis, as vítimas hão-de ver a razão ser-lhes reconhecida por algum tribunal e tudo isto há-de acabar na conta dos contribuintes. Salve-se, ao menos, o desabafo: que país sem vergonha!
4. Está aberta a época sazonal de um desporto típico da cena portuguesa: a caça ao intelectual/artista/músico/jornalista/desportista, por ocasião das presidenciais.
De cinco em cinco anos, aí temos a lista, actualizada diariamente, das novas adesões aos candidatos. É um espectáculo digno de lástima: nomes consagrados, nomes ainda na infância da arte e nomes de absolutos desconhecidos ou falhados sem remissão possível acotovelam-se para ganhar meia linha de destaque no jornal do dia. Nunca percebi por que é que esta gente - a que tem valor - não é capaz de ficar quieta em casa e sente uma tamanha compulsão de aderência, como se o facto de o seu nome não constar de lista alguma fosse sinal de morte prematura. Ó, senhores artistas, intelectuais, desportistas: guardem-se para o 10 de Junho!
Miguel Sousa Tavares
1. "Democraticamente" absolvida nas urnas, como era de esperar, a D.ª Fátima Felgueiras está agora em vias de se ver alijada dos seus problemas judiciais, como também era de esperar. A senhora merece que se lhe tire o chapéu: fez uma sábia gestão dos seus trunfos e dos seus timings e, entre a demissão cívica do seu povo e a demissão institucional da justiça, descobriu o caminho para a impunidade. "Dei uma lição ao país!", exclamou ela, triunfante, na noite de 9 de Outubro. E deu mesmo. A lição foi esta: o único crime que não se perdoa é o da falta de esperteza.
O Tribunal da Relação de Guimarães liquidou, de facto, o processo de Fátima Felgueiras, mandando refazer o essencial da instrução e, com isso, remetendo o julgamento para as calendas do ano vindouro. Os desembargadores de Guimarães entenderam que o Ministério Público e o juiz de instrução não fizeram senão asneiras na construção da acusação: as escutas telefónicas são ilegais porque o juiz não as foi validando dentro de "um prazo razoável", e os principais testemunhos acusatórios são nulos porque os depoentes foram ouvidos como testemunhas e não como arguidos, como o deveriam ter sido (e embora, posteriormente, ouvidos como arguidos, tenham confirmado o que haviam dito antes). Pouco importa, todavia, o conteúdo de umas e outras provas: para a justiça portuguesa, a fórmula é tudo, a substância é um estorvo.
Longe de mim - valha-me Deus! - contestar a lógica irrebatível dos argumentos dos senhores desembargadores de Guimarães. Limito-me a observar que uma magistratura passou aqui um atestado de incompetência à outra e que tudo se encaminha, uma vez mais, para que os formalismos processuais conduzam à denegação de justiça. Mas, juntas e unidas nas suas lamentações, ambas as magistraturas estão em greve contra o "desprestígio" que o Governo lança sobre elas.
Parece que a redução das férias de Verão dos magistrados de dois para um mês e a supressão do regime especial de saúde de que beneficiavam, em troca do regime geral, afectam gravemente as "condições de independência" da classe e indiciam mesmo uma tentativa de controlo político sobre a justiça. Ouvido pela TSF, o presidente do Sindicato dos Juízes, Baptista Coelho, esclareceu que, enquanto órgão de soberania, os magistrados se batem pela sua independência; e, enquanto "carreira profissional", estão em greve por condições privilegiadas de dependência do Estado. Fiquei esclarecido - como, aliás, fico sempre que o dr. Baptista Coelho e o dr. Cluny, do Sindicato do Ministério Público, expõem as suas razões. Talvez alguém com mais senso lhes devesse explicar que o país já não é assim tão estúpido quanto eles imaginam.
2. Preparada "durante um ano", ensaiada ao pormenor, de véspera e por mais de 60 pessoas envolvidas, a "mega-operação" de "flagra" sobre a banca cobriu-se de ridículo à nascença. Numa operação capaz de abalar todo o sistema bancário, onde tudo deveria ser tratado com pinças e total discrição, logo a abrir, as autoridades apresentaram-se no primeiro banco sem um mandado de busca em condições; depois, mandaram-no vir por fax para o próprio banco a rebuscar, esquecendo-se de apagar do cabeçalho o nome dos restantes alvos a surpreender e das suspeitas que sobre eles recaíam. Como é óbvio, meia hora depois, Lisboa inteira já sabia o que estava em curso, e, perante tão chocante incompetência dos seus serviços, o senhor procurador-geral da República não encontrou melhor maneira de disfarçar a vergonha do que mandar instaurar um processo por violação do segredo de justiça... aos jornalistas!
Digamo-lo tranquilamente: num país a sério, o senhor procurador-geral e a senhora procuradora adjunta que dirigiu a operação teriam apresentado a sua demissão ou estariam demitidos no dia seguinte. Aqui, estão em greve, pelo seu "prestígio" e, sobretudo, para que ninguém ouse beliscar esta santa impunidade funcional de que gozam e a que gostam de chamar "independência".
3. Nomeados pelo governo PSD, alguns administradores da CP e outros da Refer descobriram a fórmula genial de se porem ao abrigo das flutuações políticas e garantirem um emprego de futuro, muito para além dos três anos normais dos mandatos dos gestores públicos: os da CP foram nomeados para o quadro da Refer, com o cargo de directores e o lugar reservado até saírem da CP, e os da Refer fizeram o mesmo na CP.
Descoberta a esperteza, chamados a explicarem-se e instaurados os respectivos processos de averiguações, os senhores administradores mantiveram a bola baixa, a ver se a coisa passava. Mas, concluídas as averiguações e na iminência de um despedimento com mais do que justa causa, os da Refer convocaram uma conferência de imprensa para despejar o saco: o que fizeram tratava-se de "um processo normal", que, aliás, tinham tido o cuidado de validar previamente junto do Partido Socialista, então oposição, e da senhora que depois viria a ser a secretária de Estado da tutela, no governo PS. Em seu entender, estaríamos assim perante um "saneamento pessoal e político", inclusive confirmado por suspeitíssimas informações circulando entre a Refer, o governo PS e as suas autarquias - de que só agora lhes ocorrera suspeitar.
À noite, e depois de grandes cerimónias, o ministro despediu-os de vez. Mas eu aposto, infelizmente, que, por irregularidades processuais ou qualquer outro pretexto espúrio, e devidamente escudados em "pareceres" dos mestres de Direito sempre disponíveis, as vítimas hão-de ver a razão ser-lhes reconhecida por algum tribunal e tudo isto há-de acabar na conta dos contribuintes. Salve-se, ao menos, o desabafo: que país sem vergonha!
4. Está aberta a época sazonal de um desporto típico da cena portuguesa: a caça ao intelectual/artista/músico/jornalista/desportista, por ocasião das presidenciais.
De cinco em cinco anos, aí temos a lista, actualizada diariamente, das novas adesões aos candidatos. É um espectáculo digno de lástima: nomes consagrados, nomes ainda na infância da arte e nomes de absolutos desconhecidos ou falhados sem remissão possível acotovelam-se para ganhar meia linha de destaque no jornal do dia. Nunca percebi por que é que esta gente - a que tem valor - não é capaz de ficar quieta em casa e sente uma tamanha compulsão de aderência, como se o facto de o seu nome não constar de lista alguma fosse sinal de morte prematura. Ó, senhores artistas, intelectuais, desportistas: guardem-se para o 10 de Junho!
Miguel Sousa Tavares
1 Comments:
O caso do fax abóbora...
O inquérito judicial aberto à suspeita de fuga de capitais em que estarão envolvidos alguns dos mais importantes bancos portugueses justifica diversas interrogações.
A primeira é simples que é que lhe aconteceu?...
Durante vários dias as primeiras páginas dos jornais encheram-se com pormenores sobre as diligências, os montantes envolvidos, circunspectos comentários de ainda mais circunspectos banqueiros - posto o que sobre o assunto se abateu nada diáfano manto de silêncio.
É evidente que não seria sensato esperar que o tal inquérito proporcionasse desde já novidades de tomo e resultados palpáveis estamos em Portugal, onde o caso de Felgueiras volta ao princípio, onde há dois anos se discute a Casa Pia, onde o Apito nem por ser Dourado assobia.
Mas, entretanto, já que mais nada se sabe, podemos entreter--nos reflectindo sobre um dos aspectos mais viçosos da magistral acção investigativa, consubstanciada naquela falta de um documento para autorizar uma busca num primeiro banco e que foi resolvida pelos investigadores enviando um fax que esclarecia tudo - até quais os outros bancos a serem investigados!
Indigna-se, cheio de razão, Miguel Sousa Tavares, lembrando que, por um lado, meia hora depois toda a Lisboa sabia quais eram os bancos seguintes, e, por outro, que, sendo lógico que o autor e responsáveis do disparate fossem punidos, tal não aconteceu - mas já se instaurou um processo por jornalística "violação de segredo de justiça"!
O curioso - digamos mesmo, misterioso... - disto tudo é onde é que estava o jornalista?! No banco, quando chegou o fax?... E leu-o? Junto ao fax donde ele foi enviado? A fazer o quê?
Se assim não foi, quem é que falou cá para fora do fax e seu conteúdo? Alguém no primeiro banco? Para quê? Para quem? Para avisar os outros, talvez uns discretos telefonemas tivessem sido mais aconselháveis...
Em matéria de faxes, parece termos novo fruto abóbora...
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