segunda-feira, 13 de dezembro de 2004

PRAZOS E PROCESSOS


Já não é a primeira vez. Mas é tão estranho que, de uma conversa a dois, sem testemunhas, haja duas versões absolutamente diferentes e contraditórias! Que tal ocorra em situações de crise conjugal ou de conflito comercial, ainda se percebe. Mas quando as pessoas em causa são o Presidente da República e o Primeiro Ministro!
A fragilidade da democracia portuguesa tem vindo, desde o Verão, a ser posta em evidência. Em particular, quando estimulada pelas pesadas regras constitucionais e pelos absurdos processos burocráticos saídos das cabeças de juristas confusos dados a invenções. Ao abandono de Durão Barroso, cujas nefastas consequências se fazem ainda hoje e cada vez mais sentir, seguiu-se um longo e complicado processo. Além de politicamente quente, a sua substituição foi processualmente atabalhoada. Agora, a dissolução da Assembleia da República e a sequente convocação de eleições são feitas com demoras inúteis, compassos de espera absurdos e prazos inconcebíveis. Imaginando que tudo começou com o congresso do PSD e a declaração de Santana Lopes sobre o fim da austeridade, podemos concluir que serão precisos mais de quatro meses para resolver uma crise de governo que se poderia tratar convenientemente em poucas semanas. Período quase igual é o que será necessário para chegar do anúncio da dissolução até à aprovação do programa do próximo governo. Sem contar o tempo necessário a que os novos ministros conheçam os dossiers, aqueçam o lugar, nomeiem uns milhares de funcionários superiores e comecem a governar. Tudo isto, uma vez mais, poderia ser feito em menos de metade do tempo, com ganhos incalculáveis para todos, cidadãos e políticos. Há muito que se sabe que estes procedimentos são dispendiosos e inúteis, por isso prejudiciais. Mas chegámos ao ponto de desespero: tão cedo, não haverá mudança de regras nem renovação de processos. A nossa democracia vive, não da tradição, não necessariamente do direito, mas do regulamento.
A acrescentar a este enredo, temos, este ano, novos e magnos acontecimentos. Dez dias entre a comunicação verbal da dissolução e o seu anúncio formal! Adiamento da posse de Secretários de Estado por razões de agenda privada! Marcação da tomada de posse para depois da dita comunicação verbal! Indefinição da natureza e dos poderes do governo que ficaria em funções sessenta dias depois de dissolvido o Parlamento! Aprovação do orçamento de Estado por um governo quase demitido e por um Parlamento quase dissolvido! À última hora, demissão do governo depois de dissolvido o Parlamento! E indefinição quanto à possibilidade e oportunidade de realização do referendo constitucional europeu já deliberado pela extinta Assembleia! Custa acreditar!
E agora vamos todos iniciar mais um destes períodos dolorosos de ruído e desperdício. A campanha eleitoral vai durar tempo de mais. E será, aliás, precedida por uma extraordinária pré-campanha, invenção lusitana e contributo imorredoiro para a história da democracia. A organização das listas bloqueadas de candidatos será mais atribulada do que de costume, com contas a ajustar em todos os partidos. Como sempre, a identidade e a responsabilidade individual dos candidatos serão as menores das preocupações. Apesar das declarações de boas intenções, sobretudo do PSD, vai ser uma campanha dura, agressiva e por vezes ordinária. Como tem vindo a ser cada vez mais. É quase certo que haja meia dúzia de processos em tribunais por não cumprimento das regras legais, por insulto e outras minudências. Os candidatos vão desdobrar-se em centenas de comícios totalmente inúteis, ainda por cima em estação de frio e chuva. Grande parte dessas reuniões far-se-á apenas para poder filmar, para as televisões, bandeiras e jovens excitados aos gritos. Cada vez menos gente participará em tais festins, organizados por gente paga e abrilhantados por brindes e fancaria de plástico que umas muito vivas empresas inventam. Especialistas brasileiros e espanhois virão ganhar umas pequenas fortunas com uma ridícula campanha.
Ambas, pré-campanha e campanha, vão custar de mais. Os financiamentos vão ser, como habitualmente, disfarçados. Nem todos os partidos vão prestar contas. E, entre os que o fizerem, alguns vão mentir. Os prazos para a tomada de posse do Parlamento e do Governo vão ser longos, muito longos. Talvez haja uns boicotes de freguesia, mais uma vez impunes. A aprovação do programa do governo vai ser longa. Se ganhar o PS, a desforra vai ser terrível, nas leis e nas nomeações. Se ganhar o PSD, a vingança vai ser terrível, nas leis e nas nomeações. É uma situação de risco ser notável do PSD e não ser fiel de Santana Lopes. Dentro de seis meses, qualquer que seja o resultado, haverá, entre os que chegam e os que aparentemente partem, mais três a quatro mil novos altos funcionários da Administração.
O PS, que criticou a austeridade, prepara-se para uma política imaginativa e dispendiosa de gestão do défice. O PS, que também criticou o fim da austeridade proclamado por Santana Lopes, prepara-se para estabelecer que a situação é crítica e que é preciso manter a austeridade. Entre as duas políticas, perder-se-á algum tempo e gastar-se-ão uns milhões. O PSD, que decretou o fim da austeridade, ignora as contas públicas do terceiro trimestre, que revelam que esses mesmos três meses, os de governo de Santana Lopes, foram de recuo económico. O PSD prepara-se para gastar o que não tem, agora que pretende demonstrar que Sampaio não tinha razão. O PCP prepara-se para uma das suas maiores derrotas eleitorais de sempre. O Bloco prepara-se para entrar para o Governo, para o que já se tinha treinado em Julho. Votarão no PSD os que querem excluir Cavaco Silva e dar força a Paulo Portas. Os que querem eleger Cavaco Silva votarão no PS ou no Bloco. Os que votarem no PS fá-lo-ão apesar de recear Guterres.
O primeiro ano de mandato do novo governo será uma trapalhada suspensa da eleição do Presidente da República, só animada pelos autarcas que se preparam para cobrar, a fim de preparar as suas eleições. Se ganhar o PSD, o Presidente da República vai ter um fim de mandato particularmente difícil. Se ganhar o PS, o Presidente da República vai ter um fim de mandato particularmente difícil.
Para melhor e pior, a sociedade mudou e os portugueses também. Só a política e os políticos parece não terem percebido. Ou porque não sabem. Ou porque não querem.
António Barreto

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