segunda-feira, 23 de maio de 2005

NÃO

O Portugalinho ficou muito surpreendido com a posição de Pacheco Pereira acerca do referendo sobre o tratado.
Apetece escrever: nós, Europeus, temos dúvidas ou discordamos.
Ser europeu é isto mesmo, não se submeter à chantagem.
Não.
Um não cheio de dúvidas diferente dos que dizem não porque só têm certezas.


Francisco José Viegas
in:
http://aviz.blogspot.com

8 Comments:

At 23 de maio de 2005 às 12:25, Anonymous Anónimo said...

ERA BOM QUE EM PORTUGAL, FOSSE ASSIM:
• FRANÇA
«Não» na frente e muitos indecisos
O «não» continua na frente das intenções de voto dos franceses para o referendo europeu. No entanto, a uma semana da consulta popular, ainda há muitos que não decidiram qual será a resposta que darão no referendo.

A uma semana do referendo europeu em França ainda ninguém arrisca se será o «sim» ou o «não» a vencer na consulta popular de domingo.

As últimas sondagens voltaram a colocar o «não» como estando ligeiramente à frente nas intenções de voto dos franceses, com 52 por cento a rejeitarem a Constituição Europeia e 48 por cento a darem a sua aprovação.

A última sondagem, publicada no domingo, indicou ainda que 71 por cento das pessoas asseguram não mudar a sua posição até domingo, ao passo que outras 20 por cento põem essa hipótese.

A única vitória até agora garantida é a da participação dos franceses na campanha para esta consulta, algo que levou a porta-voz da Confederação dos Cidadãos, apoiante do «não», a defender a existência de «crises» como esta.

«Nunca houve um debate ao nível do que temos hoje. Fala-se muito em crise, mas eu penso que crises como estas deviam existir sempre, porque este debate é extraordinário», disse Brigitte Alan, que desejou que a intensidade do debate em França se transfira para outros países.

No domingo, o primeiro-ministro francês tinha dito que o referendo de domingo será uma repetição daquele que permitiu a França aprovação o Tratado de Maastricht, onde o «sim» ganhou com 51 por cento.

Jean-Pierre Raffarin lamentou que as «graves consequências de um 'não' para a Europa e a França» estejam a ser «subestimadas» e lembrou que, caso a resposta ao referendo seja negativa, verificar-se-á um «enfraquecimento político e económico» da França.

 
At 23 de maio de 2005 às 12:28, Anonymous Anónimo said...

O "NÃO" DE ANTÓNIO BARRETO
De uma entrevista no Público em 1 de Novembro 2004:

Não há então uma democracia europeia?

De todo. Não há uma cidadania europeia, não há uma democracia europeia. Por isso sou defensor desde há muitos anos que o Parlamento Europeu devia ser constituído por parlamentares saídos dos parlamentos nacionais. O governo da União devia estar mais próximo das maiorias políticas do que se demonstrou estar. Basta pensar que quase todos os governos que fizeram a Comissão foram os governos que perderam as eleições europeias. Este desfasamento aumenta a opacidade das instituições e o desinteresse dos europeus.

Mas houve outro problema, que tem a ver com as crenças pessoais dos titulares de lugares políticos. Não gostei do que disse Butiglionne, não partilho as suas opiniões, mas ele tem de ter direito às suas convicções. Não se pode estabelecer um "politicamente correcto", que só pode ser membro da comissão quem pensar A. B. C ou D sobre um conjunto de assuntos civilizacionais. Este é um problema sério que tem de ser encarado na União e nos países membros. Tem de se ter direito às suas crenças, por mais que discordemos delas.

Os problemas que coloca à arquitectura europeia distanciam-no muito do Tratado Constitucional que foi assinado na passada sexta-feira.

Não vou lutar contra a Constituição Europeia, mas vou votar contra no referendo. E tenho uma grande esperança que haja não um, mas cinco, seis países que votem contra nos parlamentos ou nos referendos. Até porque podemos perfeitamente viver mais uns anos - dez, vinte - com as instituições que temos. A ideia da Europa federal, ou federalizante, constituiu o mais poderoso aparelho de propaganda e intoxicação das opiniões. A ideia de que a Europa não pode parar, a ideia da bicicleta, porquê? Porque é necessário estar sempre a modificar os tratados?

Ora o Tratado Constitucional aumenta a ficção com um Presidente da Europa e com um ministro dos Negócios Estrangeiros, para além de aumentar a ficção do Parlamento Europeu. Modificá-lo vai ser muito mais difícil e ele fixa o que hoje está errado. Prefiro uma Europa mais flexível, menos rígida, e isso garante-lhe uma longa vida.

Mas não faz da Europa uma potência rival dos Estados Unidos.

A Europa antes de vários séculos não será uma potência rival. Enquanto não tiver uma estrutura de defesa e militar tão poderosa nunca será rival, e a Europa não está preparada, governos e opiniões públicas, para gastar muito mais em Defesa.

O que significa que em questões cruciais a Europa continuará a precisar da protecção dos EUA como precisou durante a guerra-fria?

Vai como previsão factual, não é o meu desejo nem deixa de ser. Qualquer programador de estratégia militar lhe dirá o mesmo. Quero é que a Europa rivalize com os Estados Unidos na ciência, na tecnologia, nas liberdades, no ambiente, nas suas cidades. Quando à defesa, penso que a solução de defesa transatlântica é uma boa solução, não vamos mexer nela. E se alguma coisa se degradou nessa relação por causa do desastre do Iraque é tão da responsabilidade dos Estados Unidos como de alguns estados europeus, como a França e a Alemanha. Durante anos o Iraque desafiou a comunidade internacional e esta não encontrou uma resposta por causa, simultaneamente, da pressão americana e da omissão europeia. Se a França e Alemanha se têm aproximado mais dos Estados Unidos, não só estes não teriam ido tão longe sozinhos como Saddam teria cedido ou algo sucederia que permitiria uma solução melhor do que a adoptada. E agora também aí não vejo ponta por onde se lhe pegue a curto prazo.

O que pensa da adesão da Turquia?

Se a Europa vier a ser o que desejo, plural, sem a fixidez de uma Constituição, sem um "directório", se permitir no seu interior uma pluralidade de arranjos de grupos de países, nessa Europa deve entrar a Turquia - e gostava que assim fosse. Se a Turquia for rejeitada é sinal de que a lógica federal ganha, o que para mim pode significar, a longo prazo, a semente da destruição da Europa.

 
At 23 de maio de 2005 às 12:29, Anonymous Anónimo said...

O "NÃO" DE JORGE MIRANDA
O constitucionalista Jorge Miranda, também apoiante da posição de Pacheco Pereira, subscreveu o apelo pelo "não" à Constituição europeia e, em declarações ao PÚBLICO, afirma-se disponível para participar num movimento pelo "não": "É provável, embora seja necessário ver em que moldes"

Para o constitucionalista, importante é um debate esclarecedor sobre o Tratado, declarando que a simultaneidade do referendo com as eleições autárquicas pode levar a uma "maior participação", mas a um "menor conhecimento". Assim, Jorge Miranda diz que não vê razões para que o referendo não ocorra em 2006, como acontece no Reino Unido.
Contudo, Miranda demarcou-se das críticas de Pacheco Pereira ao Presidente da República, acusado pelo historiador de andar em campanha pelo "sim" ao tratado, considerando que o Presidente "tem toda a liberdade para defender a posição que entende mais adequada".
Miranda foi um dos subscritores da petição entregue ao Presidente da República, em Junho de 2004, que pedia a fiscalização sucessiva da constitucionalidade da revisão constitucional que acabara de ocorrer. Um grupo de professores e políticos reclamavam os dois artigos que estabeleciam o primado da Constituição europeia sobre a ordem interna. Isto é, as alterações introduzidas pelo Parlamento admitiam "a secundarização do texto fundamental em face das normas comunitárias", como defendia a petição, noticiado pelo PÚBLICO.

 
At 23 de maio de 2005 às 12:33, Anonymous Anónimo said...

14 razões dos comunistas e de outros revolucionários para dizer
NÃO À CONSTITUIÇÃO DA UE


Os comunistas signatários do texto abaixo são originários de países diversos e pertencentes a diferentes organizações. Entretanto, estamos de acordo em dizer NÃO ao texto proposto como Constituição da UE.

Sem entrar numa análise pormenorizada do Tratado que precisa o conteúdo da Constituição da UE, texto que está inteiramente ao serviço dos grandes grupos capitalistas e ataque os interesses dos trabalhadores da própria UE, resumimos as razões do nosso NÃO ao texto proposto.

1) Ele consolida um Estado supra-nacional que, com suas instituições (Presidente, ministro dos Negócios Estrangeiros e exército), diminui a soberania dos Estados membros (suas Constituições ficam subordinada à europeia), e dá a prioridade à economia de mercado como lei fundamental.

2) Reforça o carácter imperialista da UE ao criar uma Agência Europeia do Armamento, ao aconselhar um aumento das despesas militares e ao aceitar a filosofia das guerras preventivas e a relação dos Estados membros com a NATO.

3) Trata-se de um texto anti-democrático devido à maneira como ele foi elaborado e aprovado.

4) Ele recusa do direito dos povos à autodeterminação.

5) As únicas liberdades que são garantidas são aquelas do grande capital. As mercadorias podem circular livremente ao passo que as pessoas são discriminadas em função do seu lugar de origem.

6) Legaliza o lock-out, enquanto dificulta a coordenação das lutas operárias.

7) Facilita a perda de postos de trabalho e o aumento do desemprego ao dar todas as facilidades às grandes empresas para exportar os seus lucros, falsificar suas perdas e vender suas propriedades.

8) Diminui os direitos dos trabalhadores ao recusar manter as conquistas de cada país no campo do direito do trabalho e do direito social.

9) Relega os respeito do ambiente a um segundo lugar, ao dar toda a prioridade ao conceito de competitividade, e ao reforçar o controle das leis económicas pelas empresas multinacionais.

10) Favorece a privatização do serviços de saúde, do ensino, da cultura, dos transportes, das comunicações e de outros serviços, ao dar a prioridade à liberdade de mercado ao invés da satisfação correcta e gratuita destas necessidades.

11) Consolida a discriminação das mulheres pois não propõe qualquer medida real susceptível de eliminar a desigualdade entre os sexos que se manifesta em quase todos os aspectos da vida.

12) Desenha uma política agrícola e de pesca submetida às grandes multinacionais agro-alimentares que continuará a provocar a ruína dos pequenos agricultores e pescadores.

13) Intensifica o papel repressivo das polícias e dos exércitos ao consolidar a possibilidade de intervenção dos mesmos em caso de "subversão das instituições democráticas" num Estado membro.

14) Legaliza a exploração e a opressão dos povos do Terceiro Mundo pois exige a aplicação dos seus princípios liberais ao mundo inteiro através da Organização Mundial de Comércio (OMC) e de outras instituições internacionais.

Europa, Abril de 2005.

 
At 23 de maio de 2005 às 12:36, Anonymous Anónimo said...

O "SIM" DE VITORINO E O "NÃO" DE MONTEIRO
Vitorino e Monteiro juntos em campanha pelo referendo

‘Sim’ e ‘Não’ em livro conjunto e em debates

ANTÓNIO Vitorino, coordenador do PS para a campanha pelo «Sim», e Manuel Monteiro, presidente da Nova Democracia e defensor do «Não», vão esgrimir argumentos nos próximos meses a favor e contra a Constituição Europeia.

Numa iniciativa conjunta, o ex-comissário europeu e o antigo eurodeputado pelo CDS vão lançar, já no início de Julho, um livro temático sobre o Tratado Constitucional. A obra será uma espécie de «hino ao debate», já que tem por objectivo promover o debate entre o «Sim» e o «Não» para esclarecimento dos eleitores.


Entre os temas em destaque no livro estão a Europa Social e Económica, a Justiça e Assuntos Internos, os Poderes das Instituições Europeia, Política Externa e de Segurança Comum, Política Monetária. O último capítulo da publicação é uma interrogação: «É necessária uma Constituição?»

A favor do «Sim», a obra conta com a participação de António Vitorino, Guilherme d’Oliveira Martins, João Proença de Carvalho e Luís Salgado Matos. Pelo lado do «Não» intervêm Manuel Monteiro, Pedro Ferraz da Costa, Luís Bigotte Chorão, Paulo Otero, Pedro Barbas Homem e João Ferreira do Amaral. Pedro Santana Lopes, primeiro-ministro à data da ratificação do Tratado Constitucional em Roma, também foi convidado pelos promotores da iniciativa para ter uma participação no livro. O ex-primeiro-ministro já fez saber que está disponível, mas falta definir os moldes em que participará nesta obra.

Com o objectivo de divulgar a iniciativa pelo país e promover o debate, os autores pretendem organizar vários painéis com os intervenientes que se confrontam nos vários temas do livro.

E em Setembro será a vez de Vitorino e Monteiro - que em 1994 foram cabeças-de-lista ao Parlamento Europeu pelo PS e pelo CDS - travarem um frente-a-frente sobre o Tratado Constitucional. Recorde-se que o referendo sobre a Europa se deverá realizar em Outubro com as eleições autárquicas.

(Expresso, 21/5/2005)

 
At 23 de maio de 2005 às 12:37, Anonymous Anónimo said...

PAULO PITTA E CUNHA (*) - A CONSTITUIÇÃO EUROPEIA E PORTUGAL
(*) Professor da Faculdade de Direito de Lisboa, titular de uma Cátedra Jean Monnet de Direito Comunitário

É pelo triplo imperativo da conservação de identidade dos Estados-nações no contexto da integração europeia, da prossecução da igualdade fundamental dos Estados-membros e da afirmação da solidariedade financeira na construção europeia que concluímos que esta proposta "Constituição" não serve ao país


Discordamos da proposta Constituição europeia por três ordens de razões.


Em primeiro lugar, uma Constituição é, em rigor, a lei fundamental de um Estado. Ora, a União Europeia não é um Estado. É uma associação de Estados com características especiais, em que se combinam, em doses variadas, poderes transferidos para órgãos centrais (supranacionalidade) e poderes correspondentes à autonomia soberana dos Estados.
Não se justifica, assim, a forma de Constituição, devendo a União continuar a ser regulada por um ou mais tratados internacionais celebrados entre Estados soberanos, e não por uma pseudoconstituição, não dimanada de um poder constituinte - poder que teria de ser radicado num (inexistente) povo europeu.
Tão-pouco se explica a introdução de figuras e dispositivos decalcados do sistema e da orgânica do Estado: o cargo fixo de presidente do Conselho Europeu; a função de ministro dos Negócios Estrangeiros da União; a progressiva desnacionalização dos comissários; a lei e a lei-quadro substituindo o regulamento e a directiva comunitários; o primado sem restrições das normas da União sobre a ordem jurídica dos Estados, incluindo as próprias Constituições nacionais. Estes elementos traduzem o deslizar para a fórmula do Superestado (a federação europeia), que, no limite, levaria ao abafamento dos Estados e à apropriação da subjectividade externa pelos órgãos centrais de uma federação, sendo os actuais membros rebaixados à categoria de entes provinciais no contexto de uma estrutura federal.

2. Em segundo lugar, sendo certo que com os elementos federais se combinam, na Constituição europeia, elementos intergovernamentais, a verdade é que os últimos traduzem a crescente supremacia dos grandes Estados da União. É o caso do sistema de votação no Conselho, onde a maioria qualificada passa a formar-se com base no puro factor populacional. Ora, deveriam manter-se ponderações para os diferentes Estados-membros, numa linha em que a influência dos Estados pequenos e médios tendesse a aproximar-se da dos grandes. Estes já têm, no Parlamento Europeu, sede própria para a afirmação da sua superioridade demográfica.

3. Em terceiro lugar, a proposta Constituição em nada contribui para corrigir as insuficiências do presente regime da união económica e monetária. Faltam por completo ingredientes de solidariedade financeira entre os membros da União; nem sequer se sugere a revisão das regras, absurdamente rígidas, do Pacto de Estabilidade e Crescimento.

4. Bem vistas as coisas, a Constituição não faz falta. Estando em causa fundamentalmente ajustar o funcionamento das instituições da União à Europa de 25 países, e adicionalmente tornar mais transparentes e legíveis os diplomas de base, não seria preciso, para tal, aprovar uma "Constituição". Bastaria ajustar os tratados existentes (e, quando muito, unificar num único diploma matérias actualmente dispersas). Ora, o Tratado de Nice, em vigor desde 2003, foi celebrado precisamente para realizar a adaptação institucional à nova realidade dos 25 Estados-membros.
Os elementos positivos da proposta Constituição estão longe de bastar para compensar as suas gritantes desvantagens e, de qualquer modo, podem sempre ser integrados num texto alternativo. É o caso da personalidade jurídica da União; da integração da Carta dos Direitos Fundamentais no texto do diploma; da manutenção do regime específico da PESC com base na unanimidade; da exigência, no processo de revisão, de ratificação por todos os Estados-membros; porventura da passagem a um tratado unificado (embora aqui se afigure discutível a vantagem da extinção dos tratados de Roma e Maastricht e da reunião das respectivas matérias num único diploma).

5. É pelo triplo imperativo da conservação de identidade dos Estados-nações no contexto da integração europeia, da prossecução da igualdade fundamental dos Estados-membros e da afirmação da solidariedade financeira na construção europeia que concluímos que a proposta "Constituição" europeia não serve ao país.
Entre nós, o eleitorado não escolhe os partidos em função da maior ou menor intensidade da sua ligação à construção europeia, mas de programas concentrados em aspectos de política interna. Ora, sucede que os dois principais partidos portugueses convergem nas posições "europeístas" que se arrogam - o que os conduz a aprovar sem reservas todos os avanços no processo de integração, incluindo os que, na sua exuberância supranacionalista, se incorporam na estrutura da proposta Constituição.
Em face desta uniformidade das posições das maiores forças políticas, importa proporcionar aos eleitores, em consulta referendária, o ensejo de exprimirem livremente a sua preferência.

6. A nossa posição no sentido da não aprovação do tratado constitucional de modo algum significa que estejamos a rejeitar a Europa, como o farão os saudosistas da plena soberania dos Estados e os enfáticos defensores do nacionalismo. Ao invés dos eurocépticos, não estamos a repudiar a União Europeia e as suas actuais realizações, em larga medida de sinal claramente positivo. Estamos somente a rejeitar uma específica forma de remodelar o sistema e o funcionamento da União, a qual nos parece inadequada por traduzir um excesso de integração artificialmente insuflado e também por diminuir a posição de Portugal no conjunto europeu.
Este afastamento em relação à fórmula agora preconizada, que obteve a assinatura dos Governos, não nos torna menos europeístas. Aquilo a que nos opomos é à visão federal da Europa, que relega os países portadores de uma história multissecular à condição de unidades provinciais dentro de uma federação - federação que, para mais, não encontra hoje ambiente para ser instituída e para funcionar, e a cuja actual concepção faltam, aliás, os indispensáveis dispositivos de solidariedade. Também nos opomos à acentuação das clivagens entre os grandes e os pequenos países da União, em detrimento da influência dos últimos.
A construção da Europa não está acabada, mas impõe soluções mais moderadas, mais realistas, mais respeitadoras da diversidade e da igualdade entre os Estados.


(Público, 21/5/2005)

 
At 23 de maio de 2005 às 13:00, Anonymous Anónimo said...

Afinal, não há apenas os "anti-europeístas do costume"


Rompeu ontem o bloqueio o primeiro esboço do movimento do "não" à Constituição europeia, depois das investidas propagandísticas de Sampaio e Cavaco, secundados por Barroso, Sócrates, Soares, Policarpo, isto é, todos os deuses do céu e da terra, do além e deste purgatório que já vai em quase meio milhão de desempregados. Afinal, numa primeira barragem de cooperações pelo "não", parece que a coisa não se reduz àquilo que o ungido cardeal de Lisboa, há tempos, qualificava como "os anti-europeístas do costume", nessa nova versão da aliança do altar com o trono, também assumida por uma ilustre politóloga da universidade concordatária que, anunciando a caça aos fascistas, reduzia os anti-europeístas do não-Bloco de Esquerda à extrema direita. Talvez ambos pensassem nos paradigmas euro-cépticos que, licenciados pela universidade em causa, chegaram a presidentes de dois partidos...

A grande vantagem que podemos recolher da lista dos primeiros apoiantes da campanha pelo "não" é que os velhos quadros do situacionismo mental que transformaram a defesa do "sim" no oficioso dos situacionistas mentais está na circunstância de estarmos já bem longe da defunta polémica entre os eurocépticos e os europeístas, onde os primeiros se acantonariam na extrema-direita e na extrema-esquerda e os segundos, no grande bloco central de interesses que, invocando os fantasmas dos nacionalismos fragmentários lançavam para os nossos olhos as maravilhas do mundo global, onde se inseria uma Europa toda cor de rosa sem espinhos.




Mesmo as sumidades politológicas de importação terão que alterar os relatórios pré-programadas dos caçadores de euro-cépticos alquebradamente salazarentos, dado que agora aparecem, ao lado do "não", convictos europeístas, certos federalistas, bem como sociais-democratas, socialistas, liberais, juntamente com conservadores, nacionais-revolucionários ou eternos adeptos da extrema-esquerda.

Apenas peço que não continuem a reduzir os adeptos do "não" aos habituais adjectivos diabolizantes que os escribas, os avençados, os adjuntos e os funcionários do rolo compressor da falsa democracia costumam inventariar. Também os ilustres convencionalistas que continuam convencidos da sua iluminação pelas línguas de fogo do verdeiro espírito santo europeísta, isto é, o da pomba não o da orelha, ou da banca, se não forem responsáveis pelos maior fracasso da história do projecto europeu, poderão apenas vangloriar-se de terem uma vitoriazinha de algumas décimas acima do abismo. E assim poderemos ter que aceitar uma pretensa decisão constitucional apenas baseada numa maioria simples, não qualificada.



Essa corte privilegiada das cúpulas da eurocracia, os que devoram toneladas de bibliografia cinzentíssima, deglutida pela fileira dos burocratas do sobe e desce, e que, para as sub-secções nacionais, vão emitindo as directivas interpretativas de forma não reciclada, continua a pensar que todos somos meros escravos amestrados, os tais bons alunos eternamente reverentes e obrigados. Desenganem-se, caridosas almas fidalgas dessas centrais de comando. Nem vós já sois as nobres figuras dos pais-fundadores da instituição, do aprofundamento e do alargamento, nem nós nos reduzimos aos comedores de vossos subsídios predadores e do pretenso monopólio que pensam manter sobre a inteligência oficial e oficiosa.

José Adelino Maltez

 
At 23 de maio de 2005 às 16:48, Anonymous Anónimo said...

Por Card. Joseph Ratzinger

REFLEXÕES SOBRE CULTURAS QUE HOJE SE CONTRAPÕEM

Vivemos num período de grandes perigos e de grandes oportunidades para o homem e para o mundo, um período que é também de grande responsabilidade para todos nós.
Durante o século passado, as possibilidades do homem e o seu domínio sobre a matéria cresceram de um modo verdadeiramente impensável. Mas o poder do homem de dispor do mundo fez também com que o seu poder de destruição chegasse a dimensões que, por vezes, nos horrorizam.
A este propósito, vem espontaneamente à mente a ameaça do terrorismo, esta nova guerra sem fronteiras e sem frentes. O temor de que este possa, em breve, tomar posse de armas nucleares e biológicas, não é infundado e fez com que os Estados de direito tivessem de recorrer, no seu interior, a sistemas de segurança parecidos aos que antes existiam apenas nas ditaduras; contudo, permanece a sensação de que, na realidade, todas estas precauções não bastam, não sendo possível, nem sequer desejável um controlo global.
Menos visíveis, mas nem por isso menos inquietadoras, são as possibilidades de auto-manipulação adquiridas pelo homem.
Ele sondou os recônditos mais íntimos do ser, decifrou as componentes do ser humano e é agora capaz, por assim dizer, de “construir” por si próprio o homem, o qual, deste modo, já não vem ao mundo como dom do Criador, mas como produto do nosso agir, produto que pode portanto ser até seleccionado segundo as exigências por nós fixadas. Assim, sobre este homem, já não brilha o esplendor do seu ser “imagem de Deus” – que é aquilo que lhe confere a sua dignidade e a sua inviolabilidade – mas apenas o poder das capacidades humanas. Ele já não é mais nada senão “imagem do homem” – mas de que homem?
A tudo isto, juntam-se os grandes problemas planetários: a desigualdade na repartição dos bens da terra; a pobreza crescente, ou melhor, o empobrecimento; a exploração da terra e dos seus recursos; a fome; as doenças que ameaçam o mundo inteiro; o choque das culturas.
Tudo isto mostra que o crescimento das nossas possibilidades não é acompanhado por um igual desenvolvimento da nossa energia moral. A força moral não cresceu conjuntamente com o desenvolvimento da ciência, mas, pelo contrário, diminuiu, porque a mentalidade técnica relega a moral para o âmbito subjectivo, enquanto que o que nós precisamos é de uma moral pública, duma moral que saiba responder às ameaças que pesam sobre a existência de todos nós.
O verdadeiro e mais grave perigo neste momento encerra-se precisamente neste desequilíbrio entre possibilidades técnicas e energia moral. Em última análise, a segurança de que precisamos como pressuposto da nossa liberdade e da nossa dignidade, não pode provir de sistemas técnicos de controlo, mas apenas da força moral do homem: onde ela falta ou não é suficiente, o poder do homem transforma-se cada vez mais num poder de destruição.

É verdade que existe hoje um novo moralismo, cujas palavras-chave são justiça, paz, conservação do criado – palavras que chamam a atenção para os valores morais essenciais de que precisamos. Mas este moralismo permanece vago e assim “escorrega”, quase inevitavelmente, na esfera político-partítica. Ele é acima de tudo uma pretensão para com os outros, e demasiado pouco um dever pessoal da nossa vida quotidiana.
De facto, o que significa justiça? Quem é que a define? Para que serve a paz?
Nos últimos decénios, vimos amplamente nas nossas ruas e praças como o pacifismo pode derivar num anarquismo destrutivo e até no terrorismo.
O moralismo político dos anos 70, cujas raízes não morreram de modo algum, foi um moralismo que conseguiu fascinar também jovens cheios de ideais. Mas era um moralismo com uma orientação errada, pois estava privado de serena racionalidade e punha, no fim de contas, a utopia política acima da dignidade do indivíduo, mostrando até poder chegar, em nome de grandes objectivos, a desprezar o homem.
O moralismo político, tal como o vivemos no passado e continuamos a viver, não só não abre o caminho para uma verdadeira regeneração, como até o bloqueia.
O mesmo se deve dizer também, por consequência, em relação a um cristianismo e a uma teologia que reduzem o núcleo da mensagem de Jesus – o “Reino de Deus” – aos “valores do Reino”, identificando estes valores com as grandes palavras de ordem do moralismo político e proclamando-as, ao mesmo tempo, como a síntese das religiões. Contudo, deste modo, esquecem-se de Deus, apesar de Ele mesmo ser o sujeito e a causa do Reino de Deus; em Seu lugar, permanecem as grandes palavras (e valores) que se prestam a qualquer tipo de abuso.

Esta breve panorâmica sobre a situação do mundo leva-nos a reflectir sobre a actual situação do cristianismo e, por isso, também sobre as bases da Europa, daquela Europa que foi outrora – podemos dizê-lo – o continente cristão, mas que foi também o ponto de partida da nova racionalidade científica que nos deu grandes possibilidades, mas que trouxe para nós também grandes ameaças.
É claro que o cristianismo não nasceu na Europa e, por isso, não pode ser sequer classificado como uma religião europeia, como a religião do âmbito cultural europeu. Mas foi precisamente na Europa que ele recebeu a sua marca cultural e intelectual, historicamente mais eficaz, permanecendo portanto ligado de modo especial à Europa.
Por outro lado, também é verdade que esta Europa, desde os tempos do Renascimento – e de forma plena desde os tempos do iluminismo – desenvolveu aquela racionalidade científica que, não só na época dos Descobrimentos levou à unidade geográfica do mundo, ao encontro dos continentes e das culturas, mas que também agora, muito mais profundamente – graças à cultura técnica possibilitada pela ciência – impregna verdadeiramente todo o mundo com a sua marca, ou melhor, num certo sentido uniformiza-o.
Seguindo esta forma de racionalidade, a Europa desenvolveu uma cultura que, dum modo nunca antes conhecido pela humanidade, exclui Deus da consciência pública, quer negando-O totalmente, quer afirmando que a Sua existência não é demonstrável, é incerta, e pertence portanto ao âmbito das escolhas subjectivas, permanecendo de qualquer modo como algo irrelevante para a vida pública. Esta racionalidade puramente funcional, por assim dizer, provocou uma reviravolta da consciência moral, igualmente nova para as culturas até então existentes, uma vez que defende que só é racional aquilo que se pode provar pela experimentação.
Ora, como a moral pertence a uma esfera totalmente diferente, acaba por desaparecer como categoria em si e tem de ser reencontrada de outro modo, dado que se deve admitir que ela, apesar de tudo, é necessária.
Num mundo baseado no cálculo, é o cálculo das consequências que determina o que deve ser considerado moral ou não. E deste modo, a categoria de “bem”, tal como foi evidenciada claramente por Kant, desaparece. Nada em si mesmo é bem ou mal, tudo depende das consequências previsíveis de uma acção.
Se, por um lado, o cristianismo encontrou a sua forma mais eficaz na Europa, por outro, é necessário dizer que foi na Europa que se desenvolveu uma cultura que constitui a contradição absolutamente mais radical não só do cristianismo, mas também das tradições religiosas e morais da humanidade. Daqui se compreende como a Europa está a experimentar uma verdadeira “prova de tracção”; daqui se compreende também a radicalidade das tensões a que o nosso continente deve fazer frente. Mas aqui emerge, sobretudo, a responsabilidade que nós europeus temos de assumir neste momento histórico: no debate sobre a definição da Europa, sobre a sua nova forma política, não está em jogo qualquer batalha nostálgica “de retaguarda” da história, mas sim uma grande responsabilidade pela humanidade de hoje.

Observemos agora mais cuidadosamente esta contraposição entre as duas culturas que caracterizaram a Europa.
No debate sobre o Preâmbulo da Constituição Europeia, esta contraposição tornou-se evidente em dois pontos controversos: a questão da referência a Deus na Constituição e a da menção das raízes cristãs da Europa. Visto que no artigo 52 da Constituição são garantidos os direitos institucionais das Igrejas, dizem que podemos ficar tranquilos. Mas isto significa que as Igrejas, na vida da Europa, têm lugar no âmbito do compromisso político, enquanto que no âmbito das bases da Europa a marca do seu conteúdo não tem qualquer espaço.
As razões que se dão no debate político para este claro “não”, são superficiais, e é evidente que, mais do que indicar a sua verdadeira motivação, encobrem-na. A afirmação de que a referência às raízes cristãs da Europa feriria os sentimentos dos muitos não-cristãos que vivem na Europa, é pouco convincente, dado que se trata, antes de mais, de um facto histórico que ninguém pode negar com seriedade. Naturalmente, este aceno histórico contém também uma referência ao presente, uma vez que, com a menção das raízes, se indicam ao mesmo tempo as fontes residuais da orientação moral, isto é, um factor de identidade desta formação que é a Europa. Quem é que ficaria ofendido? De quem se ameaçaria a identidade? Frequente e voluntariamente são trazidos à baila, a este respeito, os muçulmanos, mas de facto eles não se sentem ameaçados pelas nossas bases morais cristãs, mas sim pelo cinismo de uma cultura secularizada que nega as suas próprias bases. E até os nossos concidadãos judeus não podem ficar ofendidos por causa da referência às raízes cristãs da Europa, pois estas remontam ao monte Sinai: trazem em si a marca da Voz que se fez ouvir no monte de Deus, e nos unem nas grandes orientações fundamentais que o Decálogo doou à humanidade. O mesmo se diga em relação à referência a Deus: não é a menção de Deus que ofende os que pertencem às outras religiões, mas sim a tentativa de construir a comunidade humana absolutamente sem Deus.

As motivações para este duplo “não”, são mais profundas do que aquilo que as motivações avançadas fazem pensar. Pressupõem a ideia que somente a cultura iluminista radical, que chegou ao seu pleno desenvolvimento no nosso tempo, poderia ser constitutiva da identidade europeia. Ao seu lado, podem coexistir diferentes culturas religiosas com os seus respectivos direitos, desde que e na medida em que respeitem os critérios da cultura iluminista e se subordinem a ela.
Esta cultura iluminista é essencialmente definida pelos direitos de liberdade e tem como ponto de partida a liberdade, como um valor fundamental que mede tudo: a liberdade da escolha religiosa, que inclui a neutralidade religiosa do Estado; a liberdade de exprimir a própria opinião, desde que não ponha em causa este mesmo cânon; o sistema democrático do Estado, isto é o controlo parlamentar sobre os organismos estatais; a livre formação de partidos; a independência da Magistratura; e, por fim, a tutela dos direitos do homem e a proibição de discriminações. Neste último ponto, o cânon está ainda em formação, visto que existem também direitos do homem contrastantes, como por exemplo, o caso do contraste entre o desejo de liberdade da mulher e o direito à vida do nascituro. O conceito de discriminação é cada vez mais alargado, e assim a proibição de discriminar pode-se transformar cada vez mais numa limitação da liberdade de opinião e da liberdade religiosa.
Em breve, já não se poderá afirmar que a homossexualidade constitui uma desordem objectiva na estruturação da existência humana, tal como ensina a Igreja Católica. E o facto da Igreja estar convencida de que não tem o direito de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, é considerado, desde já, por alguns como algo inconciliável com o espírito da Constituição Europeia.

É evidente que este cânon da cultura iluminista, bem longe de ser definitivo, contém valores importantes aos quais nós, precisamente pelo facto de sermos cristãos, não queremos e não podemos renunciar; mas é também evidente que a mal definida - ou de todo não definida - concepção de liberdade que está na base desta cultura, comporta inevitavelmente contradições; e é evidente que, precisamente por causa do seu uso (um uso que parece ser radical), implica limitações da liberdade que há uma geração atrás, não conseguíamos nem sequer imaginar.
Uma confusa ideologia da liberdade conduz a um dogmatismo que se está a revelar cada vez mais hostil para com a própria liberdade.

Teremos, sem dúvida, de voltar a abordar novamente a questão das contradições internas da forma actual da cultura iluminista. Mas, primeiro, temos de acabar de a descrever.
Faz parte da sua natureza, enquanto cultura de uma razão que tem finalmente plena consciência de si mesma, pretender um reconhecimento universal e um conceber-se a si própria como completa em si mesma, não necessitada de ser completada por outros factores culturais.
Ambas estas características tornam-se claramente evidentes quando se põe a questão sobre quem poderá tornar-se ou não membro da Comunidade Europeia, sobretudo no debate acerca da entrada da Turquia nesta Comunidade. Trata-se de um Estado, ou melhor, de um âmbito cultural, que não tem raízes cristãs, mas que foi influenciado pela cultura islâmica. Ataturk tentou depois transformar a Turquia num Estado laicista, procurando implantar num terreno muçulmano o laicismo que tinha amadurecido no mundo cristão da Europa.
Podemos perguntar-nos se isto é possível: segundo a tese da cultura iluminista e laicista da Europa, só as normas e os conteúdos desta mesma cultura iluminista poderão determinar a identidade da Europa e, consequentemente, cada Estado que faz próprios estes critérios poderá pertencer à Europa. No fim de contas, não importa sobre que entrelaçado de raízes é implantada esta cultura da liberdade e da democracia. Afirma-se que é justamente por isso que as raízes não podem entrar na definição dos fundamentos da Europa, uma vez que se trata de raízes mortas que não fazem parte da identidade actual. Por conseguinte, esta nova identidade, determinada exclusivamente pela cultura iluminista, implica também que Deus não tem nada a ver com a vida pública, nem com as bases do Estado.
Assim, tudo se torna lógico, e até de certa forma, plausível. De facto, o que é que podemos desejar de mais belo, a não ser que sejam respeitados em toda a parte a democracia e os direitos humanos?
Mas impõe-se aqui, de qualquer modo, a questão se esta cultura iluminista laicista é verdadeiramente a cultura de uma razão comum a todos os homens, descoberta como finalmente universal. Uma cultura que deveria ter acesso em toda a parte, mesmo que num húmus histórica e culturalmente diferenciado. E perguntamo-nos também se esta cultura está verdadeiramente completa em si mesma, de modo que não tenha necessidade de nenhuma raiz, a não ser dela mesma.

SIGNIFICADO E LIMITES DA CULTURA RACIONALISTA ACTUAL

Temos agora de abordar estas duas últimas questões.
Em relação à primeira – isto é, à questão se de facto se chegou à filosofia universalmente válida e enfim totalmente científica, na qual se exprimiria a razão comum a todos os homens – é necessário responder que se chegou, indubitavelmente, a aquisições importantes que podem pretender ter uma validade geral: a aquisição de que a religião não pode ser imposta pelo Estado, mas que só pode ser acolhida na liberdade; o respeito dos direitos fundamentais do homem iguais para todos; a separação dos poderes e o controlo do poder. De qualquer modo, não se pode pensar que estes valores fundamentais, reconhecidos por nós como geralmente válidos, podem ser realizados do mesmo modo em todos os contextos históricos. Os pressupostos sociológicos para uma democracia baseada em partidos, como é o caso do Ocidente, não existem em todas as sociedades. Assim, a total neutralidade religiosa do Estado, na maior parte dos contextos históricos, deve ser considerada como uma ilusão. E com isto chegamos aos problemas levantados pela segunda questão. Mas esclareçamos primeiro o problema se as modernas filosofias iluministas, consideradas no seu complexo, se podem considerar como a última palavra da razão comum a todos os homens. Estas filosofias caracterizam-se pelo facto de serem positivistas e, por isso, anti-metafísicas, de tal modo que, no fim, Deus não pode ter nelas qualquer lugar. Elas estão baseadas numa auto-limitação da razão positiva, que é adequada para o âmbito técnico, mas que, quando é generalizada, leva pelo contrário a uma mutilação do homem. Consequentemente, o homem já não admite qualquer instância moral para além dos seus cálculos e, tal como vimos, até o próprio conceito de liberdade, que à primeira vista parecia estender-se de modo ilimitado, leva no fim à auto-destruição da liberdade.
É verdade que as filosofias positivistas contêm importantes elementos de verdade. Estes, porém, baseiam-se numa auto-limitação da razão, típica de uma determinada situação cultural – a do Ocidente moderno – não podendo por isso ser, certamente, a última palavra da razão. Apesar de parecerem totalmente racionais, estas filosofias não são a voz da própria razão, mas estão também elas vinculadas culturalmente, ou seja, vinculadas à situação do Ocidente de hoje. Por isso, não são de modo algum aquela filosofia que deveria ser um dia válida em todo o mundo. Mas é necessário dizer, sobretudo, que esta filosofia iluminista e a sua respectiva cultura são incompletas. Esta corta conscientemente as suas próprias raízes históricas, privando-se das forças originárias das quais ela mesma brotou, daquela memória, por assim dizer, fundamental da humanidade, sem a qual a razão perde a orientação.
Com efeito, hoje em dia é válido o princípio segundo o qual a capacidade do homem é a medida do seu agir: tudo aquilo que o homem é capaz de fazer, pode fazê-lo.
Já não existe um “saber fazer” separado do “poder fazer”, porque isso seria contra a liberdade, que é o valor supremo em absoluto. Mas o homem sabe fazer tanto e sabe fazer cada vez mais; e se este “saber fazer” não encontra a sua medida numa norma moral, torna-se, como já podemos ver, um poder de destruição.
O homem sabe clonar homens, e por isso o faz. O homem sabe usar homens como “armazém” de órgãos para outros homens, e por isso o faz; fá-lo porque esta parece ser uma exigência da sua liberdade. O homem sabe construir bombas atómicas, e por isso as faz, estando, em princípio, até disposto a usá-las. Também o terrorismo, no fim de contas, baseia-se sobre esta modalidade de “auto-autorização” do homem, e não sobre os ensinamentos do Corão.
A separação radical da filosofia iluminista das suas raízes torna-se, em última análise, um não ter necessidade do homem. O homem, no fundo, não tem qualquer liberdade – dizem-nos os “porta-vozes” das ciências naturais, em total contradição com o ponto de partida de toda a questão. Ele não deve pensar que é mais do que todos os outros seres vivos e por isso deve ser tratado também como eles – dizem os “porta-vozes” mais avançados de uma filosofia totalmente separada das raízes da memória histórica da humanidade.

Tínhamos colocado duas questões: se a filosofia racionalista (positivista) é estritamente racional e, em consequência, universalmente válida, e se está completa.
Basta-se a si mesma? Pode, ou até, deve relegar as suas raízes históricas para o âmbito do puro passado e, portanto, para o âmbito daquilo que só pode ser válido subjectivamente?
Temos de responder a ambas as questões com um claro “não”.
Esta filosofia não exprime a razão do homem na sua totalidade, mas apenas uma parte dela, e devido a esta mutilação da razão, esta filosofia não pode ser considerada de modo algum como racional. Por isso é também incompleta, e só se pode curar restabelecendo novamente o contacto com as suas raízes. Uma árvore sem raízes, seca...

Ao afirmar isto, não se nega tudo aquilo que esta filosofia tem de positivo e importante, mas afirma-se antes a sua necessidade de ser completada, a sua profunda incompletude. E assim, voltamos aos dois pontos controversos do Preâmbulo da Constituição Europeia, de que falávamos antes.
O pôr de parte as raízes cristãs não é expressão duma tolerância superior, que respeita todas as culturas do mesmo modo sem querer privilegiar nenhuma delas, mas é antes a absolutização de um pensar e viver que se contrapõem radicalmente – entre outras coisas – às outras culturas históricas da humanidade. A verdadeira contraposição que caracteriza o mundo de hoje não é entre as diversas culturas religiosas, mas sim entre a radical emancipação do homem em relação a Deus e em relação às raízes da vida por um lado e as grandes culturas religiosas por outro. Se se chegar a um choque entre as culturas, não será pelo choque entre as grandes religiões – desde sempre em luta umas com as outras, mas que sempre souberam, no fim de contas, viver umas com as outras – mas será antes pelo choque entre esta radical emancipação do homem e as grandes culturas históricas.
Assim, a rejeição da referência a Deus, não é expressão de uma tolerância que pretende proteger as religiões não teístas e a dignidade dos ateus e dos agnósticos, mas expressão de uma consciência que quer ver Deus definitivamente eliminado da vida pública da humanidade e relegado para o âmbito subjectivo de culturas residuais do passado.
O relativismo, que constitui o ponto de partida de tudo isto, torna-se assim um dogmatismo que se crê na posse do conhecimento definitivo da razão e no direito de considerar tudo o resto apenas como um estádio da humanidade, no fundo já superado, e que pode ser adequadamente relativizado.
Na realidade, isto significa que temos necessidade de raízes para sobreviver e que não devemos perder Deus de vista, se quisermos que a dignidade humana não desapareça.

O SIGNIFICADO PERMANENTE DA FÉ CRISTÃ

Será que com isto pretendemos rejeitar simplesmente o iluminismo e a modernidade?
Não, absolutamente. O cristianismo, desde o início, compreendeu-se a si mesmo como a religião do logos, como a religião conforme à razão. Não identificou os seus precursores em primeiro lugar nas outras religiões, mas naquele “iluminismo filosófico” [ndr: o termo ‘iluminismo’ refere-se, neste caso, às filosofias que precederam o cristianismo] que tinha libertado o caminho das tradições, para se dirigir depois à procura da verdade e do bem, do único Deus que está acima de todos os deuses.
O cristianismo, como religião dos perseguidos, como religião universal, acima dos vários Estados e povos, negou ao Estado o direito de considerar a religião como uma parte do sistema estatal, postulando assim a liberdade da fé. Sempre definiu os homens, todos os homens sem distinção, como criaturas de Deus e imagem de Deus, proclamando como princípio a sua igual dignidade, embora nos limites imprescindíveis dos sistemas sociais.
Neste sentido, o iluminismo é de origem cristã e nasceu, não por acaso exacta e exclusivamente no âmbito da fé cristã. Nasceu lá onde o cristianismo se tornou infelizmente, contra a sua própria natureza, uma tradição e religião de Estado. Apesar da filosofia, entendida como procura de racionalidade – também da nossa fé –, ter sido sempre apanágio do cristianismo, a voz da razão tinha sido demasiado domesticada. Foi e é mérito do iluminismo ter proposto novamente estes valores originários do cristianismo e ter dado novamente à razão a sua voz própria. O Concílio Vaticano II, na Constituição sobre a Igreja no mundo contemporâneo, evidenciou novamente esta profunda correspondência entre cristianismo e iluminismo, procurando chegar a uma verdadeira conciliação entre Igreja e modernidade, que é o grande património que deve ser tutelado por ambas as partes.

Assim, é preciso que ambas as partes reflictam sobre si próprias e estejam prontas a corrigir-se.
O cristianismo deve lembrar-se sempre que é a religião do logos. O cristianismo é fé no Creator spiritus, no Espírito criador, do qual provém todo o real. É justamente esta fé que deveria ser hoje a sua força filosófica, pois o problema é se o mundo provém do irracional – e portanto, se a razão não é outra coisa senão um “subproduto”, talvez prejudicial, do seu desenvolvimento - ou se o mundo provém da razão – e se por conseguinte esta é o seu critério e a sua meta.
A fé cristã tende para esta segunda tese, tendo assim do ponto de vista puramente filosófico, muito boas cartas para jogar, embora seja a primeira tese a que hoje é considerada por muitos como a única “racional” e moderna. Mas uma razão que brota do irracional e que, no fim de contas, é ela própria irracional, não constitui uma solução para os nossos problemas. Somente a razão criadora, e que se manifestou como amor no Deus crucificado, pode verdadeiramente mostrar-nos o caminho.

No diálogo tão necessário entre laicos e católicos, nós cristãos devemos estar muito atentos a permanecer fiéis a esta linha de fundo: ou seja, a viver uma fé que provém do logos, da razão criadora e que está por isso também aberta a tudo aquilo que é verdadeiramente racional.
Mas aqui queria, na qualidade de crente, fazer uma proposta aos laicos.
Na época do iluminismo, procurou-se entender e definir as normas morais essenciais, dizendo que elas seriam válidas “etsi Deus non daretur”, mesmo que Deus não existisse. Na contraposição entre as várias confissões e também na incumbente crise da imagem de Deus, tentou-se manter fora das contradições os valores essenciais da moral e encontrar para estes uma evidência que os tornasse independentes das múltiplas divisões e incertezas das várias filosofias e confissões. Foi assim que se procurou assegurar as bases da convivência e, em geral, da humanidade. Naquela época, isto pareceu possível, uma vez que as grandes convicções de fundo criadas pelo cristianismo resistiam em grande parte e pareciam inegáveis. Mas já não é assim. A procura de uma tal certeza tranquilizadora que pudesse permanecer incontestável, para além de todas as diferenças, fracassou.
Nem sequer o esforço verdadeiramente grandioso de Kant foi capaz de criar a necessária certeza partilhada. Kant tinha negado que Deus podia ser conhecido no âmbito da razão pura, mas ao mesmo tempo, tinha representado Deus, a liberdade e a imortalidade como postulados da razão prática, sem a qual, coerentemente, para ele não era possível qualquer agir moral.
A situação hodierna do mundo não nos faz, talvez, pensar novamente que ele pode ter razão?
Por outras palavras: a tentativa, levada ao extremo, de plasmar as coisas humanas sem qualquer necessidade de Deus, conduz-nos cada vez mais à beira do abismo, a pôr totalmente de parte o homem.
Devemos então inverter o axioma dos iluministas e dizer: mesmo quem não consegue encontrar o caminho para aceitar Deus, deve de qualquer maneira, viver e orientar a sua vida “veluti si Deus daretur”, como se Deus existisse. Este é o conselho que já Pascal dava aos amigos não-crentes; e é o conselho que queremos dar, também hoje, aos nossos amigos que não crêem.
Assim, ninguém fica limitado na sua liberdade, mas todas as nossas coisas encontram um apoio e um critério do qual precisam urgentemente.

Aquilo de que mais precisamos neste momento da história é de homens que, através de uma fé iluminada e vivida, tornem Deus credível neste mundo.
O testemunho negativo de cristãos que falavam de Deus mas que viviam contra Ele, obscureceu a imagem de Deus e abriu a porta à incredulidade.
Precisamos de homens que mantenham o olhar fixo em Deus, aprendendo a partir dali a verdadeira humanidade. Precisamos de homens cujo intelecto seja iluminado pela luz de Deus e aos quais Deus abra o coração, de maneira que o seu intelecto possa falar ao intelecto dos outros e o seu coração possa abrir o coração dos outros. Somente através de homens tocados por Deus, é que Deus pode voltar para junto dos homens. Precisamos de homens como Bento de Núrsia, o qual num tempo de dissipação e de decadência, mergulhou na solidão mais extrema, conseguindo, depois de todas as purificações que teve de sofrer, vir novamente à luz, voltar para o meio dos homens e fundar um Mosteiro em Monte Cassino, a cidade sobre o monte que, com tantas ruínas, juntou as forças das quais brotou um mundo novo. Assim Bento, tal como Abraão, tornou-se o pai de muitos povos. As recomendações aos seus monges, no final da sua Regra, são indicações que nos mostram também a nós o caminho que conduz para o alto, para fora das crises e das ruínas. “Assim como há um zelo mau de amargura, que afasta de Deus e leva ao inferno, assim também há um zelo bom que aparta dos vícios e conduz a Deus e à vida eterna. É este zelo que, com ardentíssimo amor, os monges devem exercitar, quer dizer: antecipem-se uns aos outros na estima recíproca; suportem com muita paciência as suas enfermidades físicas ou morais ... amem-se mutuamente com pura caridade fraterna… vivam sempre no temor e no amor de Deus... nada absolutamente anteponham a Cristo, o Qual nos conduza todos juntos à vida eterna” (Capítulo 72).

Cardeal Joseph Ratzinger
Subiaco, Mosteiro de Santa Escolástica, 1 de Abril de 2005


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