segunda-feira, 6 de junho de 2005

A BICICLETA PAROU ...



Os resultados dos referendos francês e holandês constituem simplesmente uma das melhores notícias que os povos europeus tiveram nas últimas décadas. O essencial daquilo que poderá ser designado como o "projecto europeu" não foi necessariamente posto em causa, mas as veleidades federalistas levaram uma surra inesquecível. A ideia de que o artificialismo jurídico, legislativo e político é capaz e suficiente para mudar as sociedades, transformar as mentalidades e dar novo rumo às relações entre classes, nações e gerações, conheceu o maior revés que se pode imaginar. Ainda por cima, vindo da França e da Holanda! O caso francês, aliás, merece ficar na história. Com efeito, foi uma estrondosa derrota aquela que sofreu, por métodos limpos e democráticos, a mais vasta coligação política jamais feita. Os quarenta maiores partidos europeus e nacionais de esquerda e de direita, duas dúzias de chefes de Estado e de Primeiros Ministros, a Igreja Católica, uma massa interminável de jornais e televisões, um sem número de intelectuais e artistas e centenas de agências de propaganda juntaram os seus esforços para obter uma resposta afirmativa ao referendo. De nada valeu essa colossal e inédita convergência de forças. O não foi rotundo e sem apelo. Agora, é razoável ter esperança!

ESTES RESULTADOS TÊM OUTRO valor incalculável: tudo se passou de modo pacífico e democrático, até popular. Parece pouco, mas não é. De facto, se os dirigentes políticos souberem tirar as consequências desta sua monumental derrota, talvez se tenha evitado o pior. Isto é, a União Europeia poderia um dia ser posta em crise de modo muito mais duro, com conflitos violentos e sequelas irreparáveis. Se a necessária mudança de rumo for adoptada, agora, talvez seja possível evitar grandes crises no futuro de médio prazo.

TAMBÉM É POSSÍVEL QUE NADA aconteça. Teoricamente, pelo menos. Já noutras ocasiões se assistiu a fenómenos semelhantes: após derrotas claras, governos e políticos conseguiram retomar a iniciativa e fazer o que queriam por outras vias e em tempos diferentes. A este propósito, pode recordar-se o que foram as últimas eleições europeias de 2004. Os principais governos e protagonistas foram ao tapete. O voto popular deu-lhes uma lição memorável. Chirac, Schroeder, Blair, Barroso, Berlusconi e outros perderam. O que não os impediu de continuar, de modelar a Constituição, de nomear a Comissão, de colocar os seus amigos e fieis. Verificou-se então, mais do que nunca antes, que o voto europeu não tinha qualquer consequência efectiva. O aviso não chegou às orelhas de Suas Excelências. Só que, desta vez, não parece possível acontecer o mesmo.

É PROVÁVEL QUE A UNIÃO EUROPEIA não termine aqui. É mesmo possível que os Estados membros saibam, durante os próximos anos, preservar muito do que já está adquirido, incluindo o euro. E não é de pôr de parte a hipótese de ver alguns dispositivos desta abortada Constituição transformados em regras aceites por todos segundo os métodos tradicionais. Será o caso, por exemplo, de certas disposições da Carta europeia de Direitos Humanos: estas poderão ser adoptadas pelos Estados que as utilizaram como pretexto para aprovar a Constituição.

Uma coisa é certa: se a União Europeia acabar um dia, não é por causa destes referendos, mas sim graças aos esforços obsessivos de uns tantos que quiseram forçar a Europa e o destino, os povos e o futuro. Dito isto, desconfiamos evidentemente da capacidade dos dirigentes europeus para se arrependerem e corrigirem os seus erros. Uns são velhos, outros estão sem ideias. Alguns acumulam. E todos perderam o contacto com os sentimentos das populações. A maior parte não consegue recompor-se de uma derrota desta amplitude e prepara, furtivamente, uma vingança contra os povos. Essa será a via mais perigosa. Com ela se resolverão, eventualmente, alguns problemas jurídicos e institucionais, mas as questões políticas, sociais, económicas, culturais e nacionais voltarão a aparecer, mais dia menos dia. Regressarão a galope e em turbilhão. E será cada vez mais difícil resolvê-las de modo pacífico.

HÁ QUEM CONFIE NA RACIONALIDADE dos processos políticos complexos. Tantos políticos inteligentes a tratar da Europa! Tantos dirigentes importantes a pensarem nas melhores soluções! Tantos partidos e instituições a estudarem as vias de resolução dos nossos problemas comuns! Com tudo isso, como é possível errar? A verdade é que esses pensamentos não passam de impressões inocentes. Europeus ou não, os maiores desastres políticos, a começar por algumas grandes guerras, tiveram sempre origem em processos de racionalidade indiscutível e nos quais colaboraram as melhores inteligências. Mesmo diante de sinais de desastre, os políticos nem sempre revelam racionalidade e sensibilidade.

As reacções aos referendos, por exemplo, são sinais de mau agoiro. Na continuação dos argumentos expendidos durante meses, os políticos europeus não desistem das suas razões. Os que votaram "não" fizeram-no pelos piores motivos, dizem. São extremistas, nihilistas, xenófobos, comunistas e fascistas, afirmam. Cépticos e pessimistas, vencidos da vida, não leram a Constituição, garantem. E votaram por motivos políticos e nacionais, não por considerações de ordem europeia, acrescentam. O costume. Talvez já nem sequer valha a pena rebater os seus argumentos. Mas é bom reter uns pontos. Primeiro: se os marginais e extremistas já ascendem a 56 ou 65 por cento, então é porque a crise é gravíssima. Segundo: se os votantes do "não" são uma "caldeirada" política, então é porque a crítica à Europa afecta todos os partidos e todas as classes, o que quer dizer que se trata de uma reacção nacional e popular. Terceiro: os eleitores votam sempre por motivos políticos, de interesse pessoal, colectivo e de classe, o que quer dizer por razões do foro nacional, o que é exactamente o que alguns dizem aos federalistas há muito tempo e eles não querem ouvir. O que é também a razão pela qual não existe a famigerada cidadania europeia.

TODOS RECORDAM A METÁFORA inventada por, creio, Jacques Delors: "A União Europeia é como uma bicicleta, não pode parar. Se pára, cai". Com este pensamento obscuro, a União veio fazendo o seu caminho. Em direcção ao precipício. Vozes elevaram-se a pedir que parassem a bicicleta ou simplesmente a recordar que um velocípede, se não pára um dia, bate na parede. Quem assim falou, passou a integrar a lista dos cépticos, pessimistas, reaccionários e perturbadores. O trivial. Mas a verdade é que, agora, não só conseguiram parar a bicicleta, como deram aos dirigentes políticos uma lição que lhes vai perseguir, durante anos, as suas longas e merecidas noites de insónia.

António Barreto