AUTORIDADE DO ESTADO? LEIS? LEGALIDADE?
Deixem-me rir, se fosse para rir. Um único caso mostra todos os dias, porque é que quase nada funciona em Portugal, porque é que ninguém acredita no estado, nas leis, nas autoridades, nas instituições: as descargas das suiniculturas na Ribeira dos Milagres. Foi anteontem, foi hoje, será amanhã. Já dura há vários anos, trinta, diz o Presidente da Junta. Todos sabem, ninguém quer saber. Ninguém actua. Nem autarquias, nem GNR, nem Ministério do Ambiente, nem o Ministério da Agricultura, com excepção de meia dúzia de agitadores, certamente subversivos, da Comissão de Ambiente e Defesa da Ribeira dos Milagres, que devem ser olhados de lado como inimigos do emprego e da economia.
Este caso até já chegou à televisão, pelo que já se utiliza armamento pesado. Várias vezes, recorrentemente, em vários anos. Sem resultados. Há questões onde nem as armas navais, as de maior calibre, como é a televisão, servem para nada. O que se verifica é que há sítios muito elásticos do ponto de vista da resistência à legalidade, quando o estado é conivente e quer fechar os olhos, em nome dos interesses mais mesquinhos de uma economia predatória, com força na política local e nacional (no Ministério da Agricultura pelo menos) violando os direitos dos cidadãos, com a desculpa que ainda não há outra para absorver o desemprego.
Sítios onde quem manda são 400.000 porcos (só no distrito de Leiria, que não é o único a ter estes problemas), o equivalente a um milhão e duzentas mil pessoas a poluir o ambiente. Esta economia das suiniculturas despejando a céu aberto, que vive na ilegalidade, à vista de toda a gente, ao olfacto de toda a gente, convive com outros sectores, como as pedreiras que também não cumprem a lei. Ora suiniculturas poluentes e pedreiras nas áreas protegidas não são actividades que possam passar despercebidas.
Voltemos à nossa Ribeira malfadada. Vistas à luz do que acontece todos os dias, – e uma descarga numa ribeira é de difícil contestação, senão haveria alguém a dizer, com o mesmo estilo fabuloso mas eficaz de Artur Albarran, que nada acontece de especial, até verdadeiramente a água limpa é de cor preta e não transparente, como esses citadinos julgam -, as declarações das autoridades são patéticas. No Público, o Governo Civil de Leiria “pediu uma melhoria do relacionamento entre a população da freguesia dos Milagres e os empresários que estão a desenvolver um projecto de despoluição da ribeira”, ou seja, colaborai a bem, com quem vos dá cabo todos os dias da água, mesmo que a lei esteja do vosso lado e a ilegalidade do outro. Comportai-vos como iguais, porque é assim que o Governo Civil vos vê, ou diz que vos vê. Na verdade, o dito Governo Civil, ou seja o braço do governo em Leiria, não acha bem que eles sejam assim muito iguais, porque usa esta classificação para a outra parte, “os empresários que estão a desenvolver um projecto de despoluição da ribeira”, um fabuloso eufemismo porque se está mesmo a ver que são eles que a poluem.
Os homens e mulheres dos Milagres estão claramente a “passar-se” como se costuma dizer. Já foram deitar baldes de porcaria em vários sítios. O subversivo da Comissão de Defesa da Ribeira, faz a pergunta certa, que já muita vez fez sem resultado: porque é que as suiniculturas identificadas como autoras das descargas não são encerradas? Não são. “O senhor governador disse-nos que não tem poder para encerrar as suiniculturas. Se ele não tem, quem é que tem?" Nos Paços do Conselho ficaram a saber a resposta: “que os protestos "foram feitos à porta errada", porque os responsáveis serão os ministérios do Ambiente e da Agricultura.” Típico, neste caso ninguém manda, ninguém pode, logo ninguém tem culpa.
Mas o representante do Governo Civil explicou-lhe esta coisa tão miraculosa como o nome da ribeira: "A ribeira dos Milagres é a ribeira mais policiada do país". Também há dois anos o Secretário de Estado do governo da altura “prometeu uma "fiscalização muito rigorosa a partir de Janeiro". Janeiro era o de 2004, entenda-se, antes de muitas outras descargas poluentes acontecerem na “ribeira mais policiada do país.” Sim, de facto, se esta é a mais policiada e acontece o que acontece, então no resto do país é uma calamidade. Razão tem o presidente da Liga para a Protecção da Natureza, quando diz com o mesmo desespero de causa, “Não é ilegítimo que nós, cidadãos, questionemos por que é que temos que cumprir a lei quando há um sector que tem total liberdade para ter um tratamento completamente diferenciado por parte da lei”.
Pensam que estas conversas que relato são o resultado da descarga de ontem? Engano. São de há já quinze dias, ou seja o tempo necessário para mais do que uma vez, sem consequências, a ribeira tornar ao seu estado normal de cloaca suína. São de há um ano, dois, três, quatro, sempre a mesma coisa. A lista de promessas é infinda, mas mesmo as promessas de limpar a Ribeira, que aliás já foi limpa e depois suja de novo, são uma distracção. A questão não é saber que a ribeira está poluída e que precisa de ser limpa, isso toda a gente sabe. A questão, essa sim maior do que o caso infeliz da Ribeira dos Milagres, é saber porque se pode continuar com impunidade a violar a lei e ninguém actua.
Eu não sou um amador das chamadas “causas ecológicas” e tenho muitas objecções à visão abstracta e irrealista que têm do país e das suas necessidades. Nunca na minha vida pensei escrever sobre porcos, com desculpa a vossa mercê. Não é que o animal não seja nobre e não tenha qualidades imensas e a arte de o fazer em série não tenha a dignidade de todas as profissões. Mas cada vez mais estes pequenos incidentes me parecem reveladores daquilo que não tem qualquer justificação para continuar, a não ser pela nossa inércia colectiva. É preciso envergonhar publicamente as autoridades que não actuam. É preciso denunciar a complacência face á ilegalidade, muito mais perigosa para uma sociedade sadia do que, às vezes, a ilegalidade.
Os homens e mulheres da Comissão de Ambiente e Defesa da Ribeira dos Milagres, de que não conheço nenhum, ou melhor ainda, a população de Milagres, terra a que nunca fui, merecem não ficar sozinhos porque não aceitaram a inevitabilidade de serem vítimas. Mais: o seu protesto, cuja razão é inequívoca, é também um símbolo do mar de ilegalidades que uma certa visão da actividade económica, típica de um país atrasado, permite subsistir. Tudo aquilo que não nos permite saltar em frente verifica-se neste pequeno caso, um entre muitos. Se ajudarmos a que não fique impune, melhoramos o nosso país.
José Pacheco Pereira
Este caso até já chegou à televisão, pelo que já se utiliza armamento pesado. Várias vezes, recorrentemente, em vários anos. Sem resultados. Há questões onde nem as armas navais, as de maior calibre, como é a televisão, servem para nada. O que se verifica é que há sítios muito elásticos do ponto de vista da resistência à legalidade, quando o estado é conivente e quer fechar os olhos, em nome dos interesses mais mesquinhos de uma economia predatória, com força na política local e nacional (no Ministério da Agricultura pelo menos) violando os direitos dos cidadãos, com a desculpa que ainda não há outra para absorver o desemprego.
Sítios onde quem manda são 400.000 porcos (só no distrito de Leiria, que não é o único a ter estes problemas), o equivalente a um milhão e duzentas mil pessoas a poluir o ambiente. Esta economia das suiniculturas despejando a céu aberto, que vive na ilegalidade, à vista de toda a gente, ao olfacto de toda a gente, convive com outros sectores, como as pedreiras que também não cumprem a lei. Ora suiniculturas poluentes e pedreiras nas áreas protegidas não são actividades que possam passar despercebidas.
Voltemos à nossa Ribeira malfadada. Vistas à luz do que acontece todos os dias, – e uma descarga numa ribeira é de difícil contestação, senão haveria alguém a dizer, com o mesmo estilo fabuloso mas eficaz de Artur Albarran, que nada acontece de especial, até verdadeiramente a água limpa é de cor preta e não transparente, como esses citadinos julgam -, as declarações das autoridades são patéticas. No Público, o Governo Civil de Leiria “pediu uma melhoria do relacionamento entre a população da freguesia dos Milagres e os empresários que estão a desenvolver um projecto de despoluição da ribeira”, ou seja, colaborai a bem, com quem vos dá cabo todos os dias da água, mesmo que a lei esteja do vosso lado e a ilegalidade do outro. Comportai-vos como iguais, porque é assim que o Governo Civil vos vê, ou diz que vos vê. Na verdade, o dito Governo Civil, ou seja o braço do governo em Leiria, não acha bem que eles sejam assim muito iguais, porque usa esta classificação para a outra parte, “os empresários que estão a desenvolver um projecto de despoluição da ribeira”, um fabuloso eufemismo porque se está mesmo a ver que são eles que a poluem.
Os homens e mulheres dos Milagres estão claramente a “passar-se” como se costuma dizer. Já foram deitar baldes de porcaria em vários sítios. O subversivo da Comissão de Defesa da Ribeira, faz a pergunta certa, que já muita vez fez sem resultado: porque é que as suiniculturas identificadas como autoras das descargas não são encerradas? Não são. “O senhor governador disse-nos que não tem poder para encerrar as suiniculturas. Se ele não tem, quem é que tem?" Nos Paços do Conselho ficaram a saber a resposta: “que os protestos "foram feitos à porta errada", porque os responsáveis serão os ministérios do Ambiente e da Agricultura.” Típico, neste caso ninguém manda, ninguém pode, logo ninguém tem culpa.
Mas o representante do Governo Civil explicou-lhe esta coisa tão miraculosa como o nome da ribeira: "A ribeira dos Milagres é a ribeira mais policiada do país". Também há dois anos o Secretário de Estado do governo da altura “prometeu uma "fiscalização muito rigorosa a partir de Janeiro". Janeiro era o de 2004, entenda-se, antes de muitas outras descargas poluentes acontecerem na “ribeira mais policiada do país.” Sim, de facto, se esta é a mais policiada e acontece o que acontece, então no resto do país é uma calamidade. Razão tem o presidente da Liga para a Protecção da Natureza, quando diz com o mesmo desespero de causa, “Não é ilegítimo que nós, cidadãos, questionemos por que é que temos que cumprir a lei quando há um sector que tem total liberdade para ter um tratamento completamente diferenciado por parte da lei”.
Pensam que estas conversas que relato são o resultado da descarga de ontem? Engano. São de há já quinze dias, ou seja o tempo necessário para mais do que uma vez, sem consequências, a ribeira tornar ao seu estado normal de cloaca suína. São de há um ano, dois, três, quatro, sempre a mesma coisa. A lista de promessas é infinda, mas mesmo as promessas de limpar a Ribeira, que aliás já foi limpa e depois suja de novo, são uma distracção. A questão não é saber que a ribeira está poluída e que precisa de ser limpa, isso toda a gente sabe. A questão, essa sim maior do que o caso infeliz da Ribeira dos Milagres, é saber porque se pode continuar com impunidade a violar a lei e ninguém actua.
Eu não sou um amador das chamadas “causas ecológicas” e tenho muitas objecções à visão abstracta e irrealista que têm do país e das suas necessidades. Nunca na minha vida pensei escrever sobre porcos, com desculpa a vossa mercê. Não é que o animal não seja nobre e não tenha qualidades imensas e a arte de o fazer em série não tenha a dignidade de todas as profissões. Mas cada vez mais estes pequenos incidentes me parecem reveladores daquilo que não tem qualquer justificação para continuar, a não ser pela nossa inércia colectiva. É preciso envergonhar publicamente as autoridades que não actuam. É preciso denunciar a complacência face á ilegalidade, muito mais perigosa para uma sociedade sadia do que, às vezes, a ilegalidade.
Os homens e mulheres da Comissão de Ambiente e Defesa da Ribeira dos Milagres, de que não conheço nenhum, ou melhor ainda, a população de Milagres, terra a que nunca fui, merecem não ficar sozinhos porque não aceitaram a inevitabilidade de serem vítimas. Mais: o seu protesto, cuja razão é inequívoca, é também um símbolo do mar de ilegalidades que uma certa visão da actividade económica, típica de um país atrasado, permite subsistir. Tudo aquilo que não nos permite saltar em frente verifica-se neste pequeno caso, um entre muitos. Se ajudarmos a que não fique impune, melhoramos o nosso país.
José Pacheco Pereira
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