domingo, 24 de julho de 2005

NO ÍNTIMO DOS MUNICÍPIOS

Noutros países, em que a emoção não se sobrepõe tanto à razão, a tendência é separar com clareza a gestão política da gestão funcional das autarquias, mas, entre nós, isso parece ser entendido como uma forma inaceitável de erosão do poder.

Quando Cavaco Silva catalogou à época, os secretários de Estado como ajudantes dos ministros, querendo dessa forma realçar que não têm competências próprias, tão só as que lhes forem delegadas, estaria longe de imaginar o fragor que as suas palavras suscitariam nos meios político e mediático.

É possível estender este raciocínio, com uma pequena nuance, aos vereadores dos municípios – também eles não têm competências próprias mas, ao contrário dos ministros e dos secretários de Estado que não são eleitos para o desempenho da função, os vereadores (exceptuando os que são cooptados para substituir outros) são directamente eleitos em listas completas, de acordo com o método em vigor.

É impossível saber-se qual é o peso eleitoral específico de cada um, já que o cabeça-de-lista, na qualidade de candidato a presidente do município, concentra em si, para o bem e para omal, as referências sobre as quais o eleitorado vai ter de se debruçar.

Mas esta legitimidade eleitoral indiferenciada a que acresce a sempre duvidosa relação entre competência e aparelhismo político, alimenta um foco de tensão duradouro na relação que estabelecem com o quadro técnico-administrativo das autarquias, em especial com as respectivas chefias.

Convém lembrar que estas também são escolhidas e de confiança do presidente da autarquia, avaliador em primeira e última instância do seu trabalho, factor decisivo para uma carreira que urge construir ou proteger.

Os vereadores que chegam, com vontade de se impor durante o mandato para «mostrar serviço» e ganhar peso político para o futuro, as chefias que já lá estão e as que se iniciam, cada uma com o seu séquito de funcionários por detrás, o domínio dos dossiers e da gestão financeira sectorial, desconfiadas por natureza, perante novos protagonistas e métodos.

No essencial, os funcionários estabilizam na instituição, os vereadores vão mudando ao sabor dos ciclos políticos, o que constitui um contratempo para aqueles, reabrindo disputas de resultados incertos, acentuando a ideia de que vereadores há, que se comportam como chefes de serviço e vice-versa, e quando o tempo se encarrega de encaixar «as peças desavindas», chega um novo acto eleitoral e com ele o reavivar desta tensão.

As relações humanas e funcionais no interior dos municípios, em especial dos de maior dimensão, são assim uma espécie de segredo bem guardado, a que alguns não atribuirão significado especial – afinal não há quem defenda que as estruturas das organizações são uma espécie de caos regulado e contido?

Este é um ângulo de apreciação possível, vale a pena emparelhar para distinguir, as organizações públicas das privadas – se os seres humanos que as compõem e a sua natureza, são à priori idênticos, o factor «política» e em particular os efeitos de proximidade da política local, modificam decisivamente as regras comportamentais e de funcionamento no interior dos municípios, quer por comparação com a Administração Central cujo distanciamento físico e funcional face aos «inner circles» dos ministros e secretários de Estado é evidente, quer perante os organismos privados onde a disputa interna pelas melhores posições obedece a lógicas distintas.

Não é este um problema que se resolva com a mudança de leis orgânicas, ou sequer de competências, mas sim com regras entendidas e aceites: o contrário de ruído, de competição interna desregulada, com enormes custos não contabilizados, a bem da coesão dos municípios.

Noutros países, em que a emoção não se sobrepõe tanto à razão, a tendência é separar com clareza a gestão política da gestão funcional das autarquias, mas, entre nós, isso parece ser entendido como uma forma inaceitável de erosão do poder.

Emergem assim as qualidades e dons dos Presidentes dos municípios, os mais intuitivos chamando a si esta delicada gestão de poderes e de modos de afirmação interna, ora assumindo-se com o farol que baliza os limites de quem se pode sentir tentado em excedê-los, ora afagando com mestria os mais diversos egos em prol da entropia interna, ou, noutro posicionamento, os mais frios e racionais que só intervêm de forma contida e com algum enfado perante os despojos das refregas, na presunção de que o exercício do poder está, e pode fazerse por de cima e se necessário contra os aparelhos instalados.

Os dirigentes e funcionários municipais, apenas operacionalizam ordens superiores, ou devem ser parte integrante e como, do ciclo das políticas públicas locais? – da forma de encarar esta questão, projecta-se o estado anímico de cada município, com evidentes repercussões por osmose, nas sociedades locais.

Eis o terreno adequado ao todos contra todos, jogos de sedução e aniquilamento efémeros, e quando se dá põe ela, zás, a realidade envolvente já não é controlável.

Dizem os entendidos que as equipas de futebol se começam a construir a partir da sua organização defensiva, que a Comunicação deve ser estruturada a partir de uma adequada gestão do silêncio (como se acaba de comprovar), e os municípios a partir do seu interior mais íntimo.

Organizações complexas, carecem de lideranças adequadas, capazes de lidar com as incertezas e a adversidade, com uma permanente visão actualizada sobre a gestão municipal.

Gerir com equilíbrio as expectativas de centenas, milhares de funcionários, fazer fluir a energia vital de cada um ou de muitos, é trilhar o terreno onde sonhos muito diversos podem confluir e ter lugar.


Luís M. Sousa