quinta-feira, 3 de novembro de 2005

OPINIÃO

Carta a Manuel Alegre

Sou anarquista.
Aluno de Vergilio Ferreira e criado para a intelectualidade na geração de sessentas, vivi um Maio de 68 libertador, acreditei em Abril e faço hoje catarse com a ironia possível face ao desgosto provocado por uma classe reimplantada de surdez e comodismo que entretanto invadiu nossos assentos.
Porque de cinzentos se fez de novo a cidade. Feio destino de quem tanto acreditou.
Por isso a cada dia sou mais anarquista.



O dignissimo país que calhou amar, as suas inefáveis ileteracias e incapacidades, a maravilhosa e bimba classe politica que o tem governado, a precaridade actual dos valores éticos e morais, a feira de vaidades e inutilidades que lhe está apensa, o alijar imenso da Cultura para o último lugar das prioridades, tudo contribuiu generosamente para esse radicar de antigas e libertárias preferências.
Mas encontro nesta luta que se avizinha o sabor antigo do fumeiro de azinho.
De um arqui Portugal que gosto de proclamar e defender ao fim da tarde, entre dois copos de saudade e um alguidar de irreverências, salganhado de matizes difusos de tantas e tão variegadas cores.
Os partidos são para mim, já sei, males seguramente necessários, deliciosamente suspeitos, tal como o chantilly de uma pastelaria pouco fiável onde só de quando em vez perpassa o perfume indelével da honrada confecção.
Tem dias.
Infelizmente bem mais da táctica e do arranjismo dominantes, que da crença que houvera de estimulá-los; mas adiante.
“Troco-te o nº 4 de Beja pelo 7 de Viseu” nunca foi linguagem que eu compreendesse. Sou anarquista.
Como homem da Arte e da Cultura aprendi em fotocópias a ler um poeta clandestino que disse e cantei em privado e em publico, arriscando a minha propria liberdade para poder conquistá-la para todos.
(Hoje nada se lembra desse heroísmo de juventude e somos indexados por uma rádio e tv que deixaram de ser nossas e apenas apregoam o mais efémero confuso e chocante jogo de corrupções e interesses de capelas que nem sei.)
Junto música e palavras há quase quarenta anos.
O melhor que posso e sei.
Se calhar retive na resistência desse homem e poeta algum exemplo de que dizer o que se pensa valha sempre a pena.
Sou orgulhosamente anarquista.
Integrei as Comissões de Honra Nacionais das campanhas de Pintasilgo, Mario Soares e Jorge Sampaio.
Ganhei e perdi.
Corri mundo proclamando com a dignidade portuguesa um coração espalhado de dúvidas e incertezas, problemas de homem, momentos avulsos do viver e da ternura. Sobre tudo isso dei relato com a arte que pude em livro e disco.
Agora, farto de todo esse marasmo pardacento, estarei consigo nesta campanha .
Por uma questão de gozo.
De tesão.
De fadiga e cansaço crónicos.
De textura residente de coragem, lá no último bolso, ao fundo da alma empacotada.
Conte comigo se quiser. Mas faça-me o favor de ser o Homem de referência, o calo que o peito honroso cria, o grito de dignidade de uma esquerda envergonhada e cinzenta, a imprecação da dignidade nunca arrependida.
A consciência perdida contra os que só julgam o amor pelas heranças, os cargos pelas vantagens e lucros inerentes e a Poesia pelo orçamento. E passam de largo por tudo o que é fundamental, como quem ri de um pobre reformado doente, com fome e sem dinheiro para a farmácia.
Cada vez acredito menos em coisa alguma, excepto nos socalcos imprevisíveis do existir.
Sou anarquista, sim, mas, por isso mesmo, zarpo consigo para mais esta viagem.
Estou consigo pelo gosto de partir uma vez mais com coerência para a faldas da Serra do Futuro que há-de ser.
O meu braço ao seu lado para o que entender.
Força companheira e coragem.
Vamos a isto.



Pedro Barroso
músico autor e compositor

1 Comments:

At 4 de novembro de 2005 às 01:19, Anonymous Anónimo said...

Que o o candidato do José Sócrates fique em último é o meu desejo. E se possível só com os votos do José Sócrates, do Governo, do Taveira Pinto e do Mário Saores e respectivas famílias.

 

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