quinta-feira, 9 de novembro de 2006

«PORTUGUÊS À FORÇA»

Um criador maior



Amadeo de Souza-Cardoso nasceu em Lisboa em meados dos anos 50, com uma grande exposição no Palácio Foz dos S.N.I (Secretariado Nacional da Informação), em 1959, e, três anos antes, com um primeiro livro publicado sobre a sua obra e vida. Faz agora 50 anos.
... E se começássemos assim a história de Amadeo, depois de tanta gente já, a começar por mim, a ter contado e repetido, de outra maneira cronológica?...
Quarenta anos atrás, porém, ainda o pintor não tinha 30 anos, ele fizera uma grande exposição no Porto e logo em Lisboa, no Palácio Palmela da Liga Naval, com insucesso fatal, também com a apresentação de Almada Negreiros. Ele vivia então, desde 1914, na quinta familiar de Manhufe-Amarante, donde finalmente sairia para morrer, quatro anos mais tarde, da gripe espanhola, em Espinho sem voltar a Paris onde vivera oito anos, depois de alguns estudos na Academia de Belas Artes de Lisboa, em sucessiva promoção de quem em Manhufe nascera para um destino que só a ele próprio havia de ser devido. Em Paris, falhou as Beaux-Arts por outros interesses de boémia de Montparnasse – onde se ligou de amizade com Modigliani, por ele inicialmente influenciado, por 1910 até 12, data de um álbum de gravuras um tanto arte-nova exótica que Vauxelles elogiou, por oposição à vaga cubista. A ela, porém, por via dos Delaunays, se ligou, mais ou menos «orfista», e abstracto de suas cores, entre 1912 ainda e 13. Neste ano, por simpatia de um crítico americano de Paris, viu-se escolhido para o celebérrimo Armory Show de Nova Iorque e Chicago, a par dos maiores nomes de França, que cotejara já, algo modestamente em salões parisienses, nomeado de passagem por Apollinaire, indo também a exposições na Alemanha. Depois de Modigliani, e dele se apartando por voltas da vida – quem terá conhecido, em encontros de café ou de atelier no 14 da Cité Falguière onde Brancusi tinha atelier também, não se sabe ao certo, ele que viveu e trabalhou a dois passos da famosa Gertrude Stein, na Rue de Fleurus... As suas pesquisas andaram, porém, por perto de muitos pintores deste Paris-Montparnasse de antes da guerra, num cubismo de segundo período colorido, que ao seu gosto mais convinha. Cores do lindo Portugal, dizia ele, que tinha uma reprodução do Malhoa numa parede do atelier. De qualquer modo, tirando o Viana, sobretudo, Portugueses é que não – que lhes criticava a rotina local em cartas que então escrevia.


Assim até 1914, pintor de Paris que queria ser, como toda a gente por lá, e com certeza voltar a ser em 1918, esperando o fim da guerra, e a morte o levou, de repente. Como Santa-Rita, diga-se, seu inimigo de zaragata registada, no quadro de um duvidoso futurismo que foi dos seus amigos do Orpheu, com a amizade do Almada mas a indiferença do Pessoa – que com esta história lisboeta de todos eles tem que ver.
Quantos dias passou então Amadeo em Lisboa, é fácil de calcular. De qualquer modo, só aqui voltaria em pinturas, nos 40 anos depois que ao princípio vimos, já historicamente – para que história da pintura moderna portuguesa pudesse decentemente haver, e com mais ninguém na altura. Ia já essa pintura numa «terceira geração» que tarde demais soube do Amadeo. Nisso vale a pena insistir, pensando na incúria havida durante esses quarenta anos todos, e particularmente desde que António Ferro fundou o S.P.N.-S.N.I. – ou seja durante mais de um quarto de século de poder fazê-lo, com nome dado a um prémio oficial, e nenhum quadro mostrado, não falemos sequer em museu da capital.
Nome que era mítico, só lembrado de cor por amigos de geração, Viana, Almada ou (muito) Diogo de Macedo. Que poderiam ter ganho os sucessivos jovens pintores de anos 20, 30 e 40, se a obra de Amadeo lhes tivesse estado presente? – é pergunta que volta a fazer-se, na utilidade (ou inutilidade) destas coisas da cultura possível dos Portugueses. Não esteve, porém – e bom é que, de vez em quando, esteja, como (sem grande método) em 1983, e agora, (decerto melhor), mais uma vez na Fundação Gulbenkian que (não o esqueçamos) mantém em permanência à vista uns tantos e importantes quadros de Amadeo que soube escolher e adquirir.
Na segunda metade dos anos 50, Amadeo tinha tudo a dizer, quase didacticamente, aos seus compatriotas que da sua pintura tinham sido privados, de experiência em experiência, de fase em fase, por assim dizer, impressionista, estilizada e persa, cubista, órfica, abstracta, purista, expressionista – e futurista. Que na verdade não foi («de tudo um pouco», confessara ele em 1916) – ou somente em acerto desdobramento dinâmico de perfis numa Cabeça de Cavaleiro, e logo em 1912, antes do cubismo praticado em 13 e do futurismo que em Lisboa se oficializaria no Orpheu de 1915, e com Santa-Rita e não com ele. Algumas dessas coisas que atravessaram os seus anos parisienses se juntaram o sobrepuseram nos últimos seis (ou sete) quadros que pintou, em Manhufe, nunca expostos porque posteriores à obra confusamente mostrada em 1916, e levados para Paris pela viúva, logo em 1918.
Foram eles, na sua fúria contraditória de composição e processos, o que mais profundamente original Amadeo realizou, pessoalmente recolhido no exílio involuntário da sua aldeia familiar – muito fora (ou além) do que Paris lhe poderia ter ensinado.
Não foi isso entendido na exposição que a viúva realizou numa galeria de Paris, em 1925, como também não na que realizou na Casa de Portugal de Paris, em 1958, que anunciou a exposição seguinte, no S.N.I; e aqui muito menos. O quadro que Jean Cassou escolheu em Paris para o seu Museu de Arte Moderna foi determinado pelo gosto parisiense anterior e mais conveniente ao local, tal como o que foi escolhido no mesmo ano para a magna exposição de 50 Ans d’Art Moderne em Bruxelas. E na sala especial da Bienal de S. Paulo nesse ano não houve tempo para distinções. Na verdade, só a atenção particular prestada a esse núcleo da obra de Amadeo na exposição realizada (por Margarida Acciaiuoli) no quadro da Europália de Bruxelas, em 1992, levou à sua necessária valorização estética – que não a confusa exposição realizada nos Estados Unidos em 1998, por comissário americano. O recente estudo de Rui-Mário Gonçalves, em volume, permitiu, enfim, uma análise física aproximativa da obra em geral do pintor, com bem entendida aplicação aos quadros em questão.
Chegámos assim, com Amadeo, a quase 90 anos de sua morte, com o horizonte já desanuviado pela história da arte do século XX nacional. Um anuveamento nacionalista foi praticado a certa altura para fazer dele um pintor de uma desejada realidade folclórica portuguesa – do «alegre Portugal das romarias, dos barros populares, do céu azul, dos trajos festivos», isso logo em 1925, por não haver então entendimento para mais ou para o contrário Trinta anos depois, com outra responsabilidade já estratégica, lamentou-se oficialmente que Amadeo não tivesse tido tempo de vida para «voltar a ser ele próprio» – pintor português propriamente classificado, depois da desnacionalizadora aventura parisiense. Que era a que ele mais do que tudo, Manhufes e Lisboa, queria continuar a viver – como Vieira da Silva havia de fazer dez anos depois da sua morte, jovem lisboeta que para seu e nosso bem deixou para sempre de ser...


Amadeo tornou-se assim, como foi dito em título de livro, «o Português à força», que traduzia a expressão malgré lui, na medida do possível idiomático, como também foi explicado. «À força» por desejo oficioso, e porque «não chegou a poder desenvencilhar-se, mesmo na grande explosão da sua raiva», de tal imagem. Mas também por «em primeiras fumaças de imigrante, ter proclamado voltar mais tarde ao seu ‘luminoso Portugal’» – o tanas!... Convinha isso, porém, «fundamentalmente e sem remédio ao processo mitológico em que, pessoal, cultural, social e sacralmente, se definiu» (1983). E (capazes disso somos nós todos...) continuará ainda a convir (oh Vieira da Silva!), «para aquem da arte de vanguarda que criou e da ‘febre da vida moderna’ que o atacou» e soube diagnosticar. Todos os falsos Amadeos que enxamearam o mercado, nessa nota se marcavam, e em vão, em 1974, um falsário lançou vinte desenhos mesmo «cubistas» que sustentariam a tese contrária...
Enganos ou logros de «fortuna crítica». De qualquer modo, «Persa», esta carta de encomenda, serve de homenagem ao desenhador «persa», e já mais do que isso, nos elogios de Vauxcelles, em 1912. Esperando, bem entendido, o criador maior de 1916.



Por José-Augusto França