FANTASMA ESCRITOR
Não tenho dentes. E depois? Esse facto simples não deveria servir de critério para avaliar absolutamente nada. Não tenho dentes, mas tenho muitas outras coisas. Tenho, por exemplo, uma dentadura postiça maravilhosa. Com ela, já abri nozes e garrafas de cerveja. Sou velho, mas não estou cansado. Fermentei com os anos que passaram e, hoje, sou uma condensação sofisticada daquilo que era quando tinha trinta anos. Não em termos físicos, mas em termos filosóficos. Posso não ter dentes, mas tenho uma mobília completa de quarto, quase nova, que uso todos os dias/noites, durante o meu descanso de consciência, completamente, literalmente, qualquer-coisa-mente, tranquila. É verdade que não tenho dentes, mas tenho pacotes de cereais no armário sobre o lava-loiças. Mesmo sem dentes, mastigo-os de manhã. Não tenho dentes, mas tenho uma televisão que apenas ligo em momentos raros para assistir ao meu Belenenses. Não tenho dentes, mas tenho Internet. E sou velho, oitenta e nove anos em Março, mas não estou cansado. Ou, melhor, estou cansado.
Se não há objecções a que, por uma vez, faça uso da sinceridade, estou cansado deste indivíduo que assina os textos que escrevo, que assina este mesmo texto e que tem o desplante de fazer acompanhar a sua assinatura por uma fotografia da sua cara, como se não fosse óbvio na sua cara, na sua expressão, que nunca poderia ser ele o autor de qualquer um dos textos que lhe são atribuídos. Como é evidente, escrever uma linha decente é uma ventura impossível para um indivíduo com piercings. Acho que não é preciso justificar esta afirmação demasiado.
Quando me foi proposto este negócio, no início, já era velho e já não tinha dentes. Na altura, não tinha sequer dentadura postiça, nem televisão, nem pacotes de cereais, nem mobília de quarto. E pareceu-me uma boa ideia. Depois de anos, décadas, a enviar manuscritos para editoras, pareceu-me que era uma proposta razoável. Foi-me dito que era um procedimento habitual e aceitei. Afinal, seria eu que escolheria as palavras, aquilo que realmente importa. Quando se juntassem congressos inteiros de académicos para discutirem aquele estilo, seria o meu estilo que estariam a discutir, as minhas opções, as minhas ideias. Aquele indivíduo que assinava, que assina, seria pouco mais do que um ícone. Na verdade, eu tenho o nome que tenho, mas poderia ter outro. Por pouco, o meu rosto poderia ser completamente diferente. Que diferença faz um reflexo? Que diferença faz um nome? Faz muita diferença.
Não foi uma situação que se tornasse intolerável de um dia para outro, tornou-se intolerável de forma gradativa. Como as minhas costas. Não foi num único momento que me começaram a doer as costas das horas que passo sentado em frente deste computador. Foi depois de semanas, meses e anos. Primeiro, quase nada: uma mão pousada sobre as costas. Depois, um pouco mais. Depois, uma pedra sobre os ombros e a coluna vertical dobrada num ângulo. Assim foi também este fastio. Primeiro, até achava graça. Tinha notícias da forma desastrada como o indivíduo lidava com as reacções àquilo que escrevia, e achava graça. Tinha uma certa pena de não mostrar a minha caligrafia barroca nas dedicatórias dos romances, «com saudações cordiais», mas achava graça. Até me ria, de manhã, no duche. Depois, houve um dia em que percebi que continuavam a tratar-me no supermercado como se fosse ninguém. Eu chegava à caixa, dizia «bom dia», era bem educado, e não havia quem me respondesse. A pessoa que estava à minha frente, apressava-se a colocar a barra que diz «cliente seguinte» entre as suas e as minhas compras, como se tivesse medo de pagar algum dos meus iogurtes, como se eu estivesse a querer enganá-la. Em mais do que uma dessas ocasiões, me apeteceu dizer o nome do indivíduo que assina os meus textos, os meus livros, e dizer que tinha sido eu a escrevê-los. Sem dentes, velho, mas mestre de sintaxe. Contive-me sempre. Como em todas as vezes que assim acontece, a injustiça alastra-se em todas as direcções. A injustiça é como a noite. Qualquer coisa serve para maculá-la e, por isso, o seu poder de acumulação é indefinido. A injustiça é como o silêncio.
Até hoje. Hoje, é o dia em que todos os que lerem isto ficam a saber. Hoje, é o dia em que termina a farsa. A ironia é que este texto passará pelas mãos do indivíduo que o assina e que, assim, se faz passar por escritor. De duas em duas semanas, envio-lhe estes textos para o email e ele limita-se a fazer forward para o jornal. No início, respondia-me com duas ou três linhas que correspondiam a duas ou três observações. Dizia que não queria textos tão tristonhos, que as repetições o maçavam, exigia menos adjectivos. Eu respondia-lhe que sim e, depois, como sempre, escrevia tudo o que me apetecia. Passados alguns meses, poucos, deixou de responder. Eu abria o jornal, via o texto assinado por ele e sabia que não lhe tinha tocado. Cumpria a sua parte do acordo. Eu, de gabardina, ia aos lançamentos dos livros e constatava que cada página era impressa tal e qual como eu a tinha terminado.
Se este texto chegar ao jornal, se for impresso, se alguém estiver a ler este texto nas páginas do jornal, é porque o indivíduo nem sequer o abriu. O título do ficheiro deve tê-lo remetido para as questões metaliterárias que me fascinam e que ele, de certeza, não compreende, nem vê razão para que existam, mais entretido em avaliar o brilho dos piercings no espelho do corredor. E pronto. Assim ficam a saber. Enquanto esse indivíduo anda a saltar de livraria em livraria e de biblioteca em biblioteca, a espalhar beijinhos nas bochechas das criancinhas e dedicatórias com péssima caligrafia nas folhas de rosto de livros que não escreveu, existe um homem sem dentes, velho, que está encerrado num pequeno apartamento, talvez próximo de vós, a transformar as suas memórias e as suas ideias em palavras. Existo. Por conveniência metafórica, há uma sombra que me cobre. Mas existo. Pouco importam as veias das costas das minhas mãos, pouco importam os pêlos que me saem de dentro dos ouvidos, pouco importam as varizes. Existo e tenho o meu próprio nome. Tenho uma lâmpada fundida pendurada do tecto por um fio. Tenho plantas na varanda. Tenho uma estrada que, depois da minha janela, passa lá ao fundo, atravessada por carros durante todo o dia e durante toda a noite. Tenho caspa miudinha. Admito que não tenho dentes e sou velho, mas tenho a certeza de que esses factos simples não deveriam servir de critério para avaliar absolutamente nada.
Se não há objecções a que, por uma vez, faça uso da sinceridade, estou cansado deste indivíduo que assina os textos que escrevo, que assina este mesmo texto e que tem o desplante de fazer acompanhar a sua assinatura por uma fotografia da sua cara, como se não fosse óbvio na sua cara, na sua expressão, que nunca poderia ser ele o autor de qualquer um dos textos que lhe são atribuídos. Como é evidente, escrever uma linha decente é uma ventura impossível para um indivíduo com piercings. Acho que não é preciso justificar esta afirmação demasiado.
Quando me foi proposto este negócio, no início, já era velho e já não tinha dentes. Na altura, não tinha sequer dentadura postiça, nem televisão, nem pacotes de cereais, nem mobília de quarto. E pareceu-me uma boa ideia. Depois de anos, décadas, a enviar manuscritos para editoras, pareceu-me que era uma proposta razoável. Foi-me dito que era um procedimento habitual e aceitei. Afinal, seria eu que escolheria as palavras, aquilo que realmente importa. Quando se juntassem congressos inteiros de académicos para discutirem aquele estilo, seria o meu estilo que estariam a discutir, as minhas opções, as minhas ideias. Aquele indivíduo que assinava, que assina, seria pouco mais do que um ícone. Na verdade, eu tenho o nome que tenho, mas poderia ter outro. Por pouco, o meu rosto poderia ser completamente diferente. Que diferença faz um reflexo? Que diferença faz um nome? Faz muita diferença.
Não foi uma situação que se tornasse intolerável de um dia para outro, tornou-se intolerável de forma gradativa. Como as minhas costas. Não foi num único momento que me começaram a doer as costas das horas que passo sentado em frente deste computador. Foi depois de semanas, meses e anos. Primeiro, quase nada: uma mão pousada sobre as costas. Depois, um pouco mais. Depois, uma pedra sobre os ombros e a coluna vertical dobrada num ângulo. Assim foi também este fastio. Primeiro, até achava graça. Tinha notícias da forma desastrada como o indivíduo lidava com as reacções àquilo que escrevia, e achava graça. Tinha uma certa pena de não mostrar a minha caligrafia barroca nas dedicatórias dos romances, «com saudações cordiais», mas achava graça. Até me ria, de manhã, no duche. Depois, houve um dia em que percebi que continuavam a tratar-me no supermercado como se fosse ninguém. Eu chegava à caixa, dizia «bom dia», era bem educado, e não havia quem me respondesse. A pessoa que estava à minha frente, apressava-se a colocar a barra que diz «cliente seguinte» entre as suas e as minhas compras, como se tivesse medo de pagar algum dos meus iogurtes, como se eu estivesse a querer enganá-la. Em mais do que uma dessas ocasiões, me apeteceu dizer o nome do indivíduo que assina os meus textos, os meus livros, e dizer que tinha sido eu a escrevê-los. Sem dentes, velho, mas mestre de sintaxe. Contive-me sempre. Como em todas as vezes que assim acontece, a injustiça alastra-se em todas as direcções. A injustiça é como a noite. Qualquer coisa serve para maculá-la e, por isso, o seu poder de acumulação é indefinido. A injustiça é como o silêncio.
Até hoje. Hoje, é o dia em que todos os que lerem isto ficam a saber. Hoje, é o dia em que termina a farsa. A ironia é que este texto passará pelas mãos do indivíduo que o assina e que, assim, se faz passar por escritor. De duas em duas semanas, envio-lhe estes textos para o email e ele limita-se a fazer forward para o jornal. No início, respondia-me com duas ou três linhas que correspondiam a duas ou três observações. Dizia que não queria textos tão tristonhos, que as repetições o maçavam, exigia menos adjectivos. Eu respondia-lhe que sim e, depois, como sempre, escrevia tudo o que me apetecia. Passados alguns meses, poucos, deixou de responder. Eu abria o jornal, via o texto assinado por ele e sabia que não lhe tinha tocado. Cumpria a sua parte do acordo. Eu, de gabardina, ia aos lançamentos dos livros e constatava que cada página era impressa tal e qual como eu a tinha terminado.
Se este texto chegar ao jornal, se for impresso, se alguém estiver a ler este texto nas páginas do jornal, é porque o indivíduo nem sequer o abriu. O título do ficheiro deve tê-lo remetido para as questões metaliterárias que me fascinam e que ele, de certeza, não compreende, nem vê razão para que existam, mais entretido em avaliar o brilho dos piercings no espelho do corredor. E pronto. Assim ficam a saber. Enquanto esse indivíduo anda a saltar de livraria em livraria e de biblioteca em biblioteca, a espalhar beijinhos nas bochechas das criancinhas e dedicatórias com péssima caligrafia nas folhas de rosto de livros que não escreveu, existe um homem sem dentes, velho, que está encerrado num pequeno apartamento, talvez próximo de vós, a transformar as suas memórias e as suas ideias em palavras. Existo. Por conveniência metafórica, há uma sombra que me cobre. Mas existo. Pouco importam as veias das costas das minhas mãos, pouco importam os pêlos que me saem de dentro dos ouvidos, pouco importam as varizes. Existo e tenho o meu próprio nome. Tenho uma lâmpada fundida pendurada do tecto por um fio. Tenho plantas na varanda. Tenho uma estrada que, depois da minha janela, passa lá ao fundo, atravessada por carros durante todo o dia e durante toda a noite. Tenho caspa miudinha. Admito que não tenho dentes e sou velho, mas tenho a certeza de que esses factos simples não deveriam servir de critério para avaliar absolutamente nada.
José Luis Peixoto
JL
Foto de Daemoon
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