Ode à Primavera A vida anda possessa de Poesia! Anda prenha de mosto! Ou é da luz do dia, Ou é da cor do rosto, Ou então quer abrir-se, neste gosto De pão com todo o sal que lhe cabia!
Tem narcisos de amor no coração, Folhas de acanto nos sentidos! E carícias na mão A espreitar dos tendões adormecidos!
Toca-se numa pedra, e ela treme! Murmura-se uma prece, e a boca grita! A rabiça do arado é como um leme Sobre a terra que ondula e ressuscita! Quem avoluma a sombra, ou quem a teme? Cada presença é um hino que palpita! E se na estrada alguém discorda e geme, Ninguém que vai no sonho o acredita!
Serás tu, Primavera? Tu, com frutos na rama do futuro, Com sementes nos pés E flores inúteis sobre cada muro, Contentes só da graça que tu és!
Miguel Torga in "Odes", 1946; "Poesia Completa", 2000
Alentejo, Alentejo, Vastidão de Portugal Futuro, continental! Terra lavrada, que vejo A ser mar mas sem ter sal.
Ondas de trigo maduro Onde mais ninguém se afoga: Danças alegres da roga Que vindima no meu Doiro E vem colher o pão loiro Da inteira fraternidade Que falta a esta metade De coração largo e moiro...
Évora Monte, 31 de Março de 1946
Miguel Torga in "Diário III", 1946; "Poesia Completa", 2000
Renasce neste largo a minha infância a minha vida tem aqui nova nascente e jorra de repente com o ímpeto do início O tempo não passou ou só a consciência que provisoriamente sinto de voltar alguns anos atrás a sensação que sei de reflectir sobre esse tempo de ser um espectador de sucessivos sucedidos dias de não viver apenas não viver sem sequer saber que vivo num espaço demarcado onde as coisas e os homens eram tanto que eram simplesmente só essa consciência e sensação me fazem suspeitar de que passou o tempo que nunca passou O adro o fim da tarde o jogo do chinquilho o ruído das malhas os paulitos o sol poente sobre si redondo como simples malha atirada por alguém pelo espaço do dia e prestes a cair no mar como nas tábuas o gesto perdulário e impensado de jogar a malha como quem num gesto joga a vida as silhuetas hirtas dos que assistem de boné ou barrete na cabeça e mãos nos bolsos tudo se passa aqui ali há trinta e cinco anos como se aqui ninguém houvesse envelhecido nem sofrido ou morrido ou suportado toda a imensa fome requerida para produzir um rico como se aqui ninguém tivesse demandado longe de aqui o seu país noutros países Tudo é o mesmo adro a mesma tarde o mesmo jogo Até este café onde sentado olho e penso por olhar é afinal o mesmo onde bebi a meias com meu pai a primeira cerveja uma cerveja vinda através do calor do dia de verão nesse cesto de vime nesse poço mergulhado É o mesmo o sabor que sempre sinto nesta boca há muitos anos já mordendo o vinho o pão a vida o sabor das mulheres das raparigas inacessíveis sempre como um absoluto sempre impossível tido no entanto por possível o sabor da derrota ou o sabor da terra sensível dia a dia nos meus dedos e um dia susceptível de me encher a boca para sempre Envelheci eu sei e só ganhei o que perdi. Sou de uma adulta idade E entretanto tudo a noite rodeou e o jogo acabou e pelo céu do tempo houve um homem que passou ou uma certa malha arremessada por acaso à vida e viva na precária trajectória antes de caída.
3 Comments:
Ode à Primavera
A vida anda possessa de Poesia!
Anda prenha de mosto!
Ou é da luz do dia,
Ou é da cor do rosto,
Ou então quer abrir-se, neste gosto
De pão com todo o sal que lhe cabia!
Tem narcisos de amor no coração,
Folhas de acanto nos sentidos!
E carícias na mão
A espreitar dos tendões adormecidos!
Toca-se numa pedra, e ela treme!
Murmura-se uma prece, e a boca grita!
A rabiça do arado é como um leme
Sobre a terra que ondula e ressuscita!
Quem avoluma a sombra, ou quem a teme?
Cada presença é um hino que palpita!
E se na estrada alguém discorda e geme,
Ninguém que vai no sonho o acredita!
Serás tu, Primavera?
Tu, com frutos na rama do futuro,
Com sementes nos pés
E flores inúteis sobre cada muro,
Contentes só da graça que tu és!
Miguel Torga
in "Odes", 1946; "Poesia Completa", 2000
Canção Para o Alentejo
Alentejo, Alentejo,
Vastidão de Portugal
Futuro, continental!
Terra lavrada, que vejo
A ser mar mas sem ter sal.
Ondas de trigo maduro
Onde mais ninguém se afoga:
Danças alegres da roga
Que vindima no meu Doiro
E vem colher o pão loiro
Da inteira fraternidade
Que falta a esta metade
De coração largo e moiro...
Évora Monte, 31 de Março de 1946
Miguel Torga
in "Diário III", 1946; "Poesia Completa", 2000
Renasce neste largo a minha infância
a minha vida tem aqui nova nascente
e jorra de repente com o ímpeto do início
O tempo não passou ou só a consciência
que provisoriamente sinto de voltar alguns anos atrás
a sensação que sei de reflectir sobre esse tempo
de ser um espectador de sucessivos sucedidos dias
de não viver apenas não viver sem sequer saber que vivo
num espaço demarcado onde as coisas e os homens
eram tanto que eram simplesmente
só essa consciência e sensação me fazem suspeitar
de que passou o tempo que nunca passou
O adro o fim da tarde o jogo do chinquilho
o ruído das malhas os paulitos
o sol poente sobre si redondo como simples
malha atirada por alguém pelo espaço do dia
e prestes a cair no mar como nas tábuas
o gesto perdulário e impensado de jogar
a malha como quem num gesto joga a vida
as silhuetas hirtas dos que assistem
de boné ou barrete na cabeça e mãos nos bolsos
tudo se passa aqui ali há trinta e cinco anos
como se aqui ninguém houvesse envelhecido
nem sofrido ou morrido ou suportado
toda a imensa fome requerida para produzir um rico
como se aqui ninguém tivesse demandado
longe de aqui o seu país noutros países
Tudo é o mesmo adro a mesma tarde o mesmo jogo
Até este café onde sentado olho e penso por olhar
é afinal o mesmo onde bebi a meias com meu pai
a primeira cerveja uma cerveja vinda
através do calor do dia de verão
nesse cesto de vime nesse poço mergulhado
É o mesmo o sabor que sempre sinto nesta boca
há muitos anos já mordendo o vinho o pão a vida
o sabor das mulheres das raparigas
inacessíveis sempre como um absoluto
sempre impossível tido no entanto por possível
o sabor da derrota ou o sabor da terra
sensível dia a dia nos meus dedos
e um dia susceptível de me encher a boca para sempre
Envelheci eu sei e só ganhei
o que perdi. Sou de uma adulta idade
E entretanto tudo a noite rodeou e o jogo acabou
e pelo céu do tempo houve um homem que passou
ou uma certa malha arremessada por acaso à vida
e viva na precária trajectória antes de caída.
Ruy Belo
O Jogo do Chinquilho
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