NOTÍCIAS DA ARMADILHA
Um dos grandes escritores portugueses, Manuel da Fonseca, costumava dizer que viver no salazarismo não só nos roubava a alegria mas, também, nos obrigava à vulgaridade de dizer mal do regime, constantemente e sem tréguas. Não encontro nada para elogiar nesta corja, dizia.
Corja era uma palavra de que se servia para qualificar não só os políticos que governavam o País, como maus escritores, maus jornalistas, maus cineastas, maus artistas.
Para Manuel da Fonseca um mau era todo aquele que se não comprometia com o seu tempo e rejeitava os testamentos legados, numa continuidade de ordem ética que explicava a razão estética.
Lembrei-me do meu velho companheiro inconformado ao ler, há dias, no Jornal de Notícias, uma crónica de Manuel Poppe, escritor e ensaísta, que, durante anos, foi crítico literário do Diário Popular. Trabalhei, durante vinte e três anos, naquele vespertino; e se nem sempre estive de acordo com Manuel Poppe nunca deixei de o respeitar. Ele procedia de uma linhagem crítica cujas raízes se podem, acaso, encontrar em Albert Thibaudet, nas teses da Presença e, decorrentemente, em João Gaspar Simões.
Poppe é um homem informado, veemente e categórico, e, além disso, leitor voraz e de amplitude vária - virtudes hoje fora de moda, e que me agradam sumamente.
Na crónica no JN, Poppe lembrava o imenso autor de O Fogo e as Cinzas, em palavras comovidas, as quais reflectiam, afinal, o vazio em que o país cultural se encontra.
Em 1958, Manuel da Fonseca publicou o seu último grande texto literário, o romance Seara de Vento. Na edição da Caminho, o escritor adicionou importante prefácio, no qual narra as circunstâncias históricas que determinaram aquele livro, o título que era para ter (Tempo de Lobos) e não teve, porque Aquilino Ribeiro ia lançar Quando os Lobos Uivam, e a precedência pertencia ao grande mestre. Eram lobos a mais, disse Manuel da Fonseca.
O regime processou Aquilino, por ofensas à magistratura, um escândalo que indignou a Europa intelectual, correu por toda a Imprensa estrangeira (por cá, nem uma linha!), e implicou abaixo-assinados com os nomes mais importantes da cultura europeia, entre os quais Mauriac e Sartre, Vittorini e Cesare Zavattini.
É uma história sórdida que, por si só, devolve o retrato do regime no que ele detinha de mais revoltante.
A perseguição à inteligência nacional aniquilou o que de melhor e mais universal possuíamos. E os homens e as mulheres coagidos a viver no estrangeiro são tantos, cuja enumeração se perde na mais honesta das contagens.
Conspirava-se, entrava-se na clandestinidade com o Partido Comunista, as proibições de quase tudo atingiam aspectos demenciais.
O Portugal esquizofrénico, de que falou o prof. Eduardo Luís Cortesão não é uma fantasia. Ficaram-nos resíduos persistentes dessa endemia.
Abrandámos, um pouco, o sufoco, logo a seguir a Abril e até Novembro de 1975.
A festa era demasiado ruidosa para os ouvidos delicados dos grandes senhores.
A arregimentação dos interesses captou prosélitos entre jornalistas de todos os ramos e de todas as servidões.
A caça aos profissionais recalcitrantes transformou-se numa espécie de desporto sujo, no qual colaboraram alguns então esquerdistas, hoje convertidos aos meneios do mercado e às modas da delação.
O que tem sucedido, nos últimos dois anos e meio, suscita as mais fundas preocupações no espírito dos homens livres. E alcança níveis muito semelhantes àqueles que vivemos antes do 25 de Abril.
Não tenhamos medo das equivalências: o medo está instalado, não sei por quanto tempo; o culto da denúncia estatui a precaução de se falar, de se criticar, de se comentar; o Estatuto do Jornalista é um documento perverso, que acentua o clima de receio, de temor e de vingança.
O próprio facto de as leis laborais serem extremamente danosas para quem trabalha por conta de outrem introduz o sobressalto e sugere o cerco aos que se insurgem.
Há casos inconcebíveis de represálias.
Tal como noutros tempos ominosos.
Esta gente demonstra praticar um subhumanismo, ou uma falta absoluta de humanismo que julgávamos definitivamente arredados da sociedade portuguesa.
Banalizaram a impiedade, converteram em normalidade o que é aberração.
Subtraíram-nos o pouco que nos sobrava do contentamento antigo. E generalizou, em nós, o descontentamento e a angústia.
Ter de dizer mal todos os dias não constitui nenhum momento feliz.
Repare-se que nenhum, nem sequer um comentador português consegue descortinar uma réstia de bondade, de sensatez e de equilíbrio naquilo que este Governo tem feito e faz.
Reverto a Manuel da Fonseca e tomo de mão o conceito que aplicou, há muitos anos, para definir essa época de tristeza, de violência e de desdém.
Ele e todos os seus camaradas de geração saíram da vida com o funesto desgosto de terem percebido que não havia saída.
A traição exigia devoção e cega obediência.
Por outro lado, a frase famosa Roma não paga a traidores, que o procônsul Servílio Cipião proferiu, acerca dos três assassinos de Viriato, só faz sentido como lenda.
A realidade é outra: os traidores são compensados. E chorudamente. Recentes exemplos ilustram a tese.
Os valores nos quais assentava a moral das relações estão liquidados. E não se vislumbra, no horizonte mais próximo do nosso mundo, a criação de outros, pelo menos tão à altura das urgências do homem de hoje, como o foram os que formaram gerações e gerações.
É uma maneira de ser e de estar violentamente arredada do nosso quotidiano.
O que se nos inculca é a ideia de que a modernidade exige uma tenaz reinterpretação da cultura, da política, do trabalho, do modo de viver.
A mobilidade é considerada como uma verdade quase cósmica e indiscutível.
Há dias, no restaurante onde costumo almoçar às sextas-feiras, com um grupo de amigos, escritores e jornalistas, perguntei ao ministro Mário Lino: Então, onde é que está o socialismo? Na gaveta!, exclamou, sorridente e cheio de júbilo.
Caímos na armadilha funcionalista e tecnológica que, afinal, apenas tem beneficiado o grande capital monopolista e as estratégias financeiras internacionais.
Nada disto nos é dito e esclarecido.
Sobretudo por uma Esquerda, falo no P.S., bem entendido, que ajuda a cimentar o muro da modernidade, que nos obriga a mudar de perspectiva, de vida e até de sonhos, sem nada opor em troca.
Para a classe dirigente não há alternativa. Estou em crer no contrário.
B.B.
Corja era uma palavra de que se servia para qualificar não só os políticos que governavam o País, como maus escritores, maus jornalistas, maus cineastas, maus artistas.
Para Manuel da Fonseca um mau era todo aquele que se não comprometia com o seu tempo e rejeitava os testamentos legados, numa continuidade de ordem ética que explicava a razão estética.
Lembrei-me do meu velho companheiro inconformado ao ler, há dias, no Jornal de Notícias, uma crónica de Manuel Poppe, escritor e ensaísta, que, durante anos, foi crítico literário do Diário Popular. Trabalhei, durante vinte e três anos, naquele vespertino; e se nem sempre estive de acordo com Manuel Poppe nunca deixei de o respeitar. Ele procedia de uma linhagem crítica cujas raízes se podem, acaso, encontrar em Albert Thibaudet, nas teses da Presença e, decorrentemente, em João Gaspar Simões.
Poppe é um homem informado, veemente e categórico, e, além disso, leitor voraz e de amplitude vária - virtudes hoje fora de moda, e que me agradam sumamente.
Na crónica no JN, Poppe lembrava o imenso autor de O Fogo e as Cinzas, em palavras comovidas, as quais reflectiam, afinal, o vazio em que o país cultural se encontra.
Em 1958, Manuel da Fonseca publicou o seu último grande texto literário, o romance Seara de Vento. Na edição da Caminho, o escritor adicionou importante prefácio, no qual narra as circunstâncias históricas que determinaram aquele livro, o título que era para ter (Tempo de Lobos) e não teve, porque Aquilino Ribeiro ia lançar Quando os Lobos Uivam, e a precedência pertencia ao grande mestre. Eram lobos a mais, disse Manuel da Fonseca.
O regime processou Aquilino, por ofensas à magistratura, um escândalo que indignou a Europa intelectual, correu por toda a Imprensa estrangeira (por cá, nem uma linha!), e implicou abaixo-assinados com os nomes mais importantes da cultura europeia, entre os quais Mauriac e Sartre, Vittorini e Cesare Zavattini.
É uma história sórdida que, por si só, devolve o retrato do regime no que ele detinha de mais revoltante.
A perseguição à inteligência nacional aniquilou o que de melhor e mais universal possuíamos. E os homens e as mulheres coagidos a viver no estrangeiro são tantos, cuja enumeração se perde na mais honesta das contagens.
Conspirava-se, entrava-se na clandestinidade com o Partido Comunista, as proibições de quase tudo atingiam aspectos demenciais.
O Portugal esquizofrénico, de que falou o prof. Eduardo Luís Cortesão não é uma fantasia. Ficaram-nos resíduos persistentes dessa endemia.
Abrandámos, um pouco, o sufoco, logo a seguir a Abril e até Novembro de 1975.
A festa era demasiado ruidosa para os ouvidos delicados dos grandes senhores.
A arregimentação dos interesses captou prosélitos entre jornalistas de todos os ramos e de todas as servidões.
A caça aos profissionais recalcitrantes transformou-se numa espécie de desporto sujo, no qual colaboraram alguns então esquerdistas, hoje convertidos aos meneios do mercado e às modas da delação.
O que tem sucedido, nos últimos dois anos e meio, suscita as mais fundas preocupações no espírito dos homens livres. E alcança níveis muito semelhantes àqueles que vivemos antes do 25 de Abril.
Não tenhamos medo das equivalências: o medo está instalado, não sei por quanto tempo; o culto da denúncia estatui a precaução de se falar, de se criticar, de se comentar; o Estatuto do Jornalista é um documento perverso, que acentua o clima de receio, de temor e de vingança.
O próprio facto de as leis laborais serem extremamente danosas para quem trabalha por conta de outrem introduz o sobressalto e sugere o cerco aos que se insurgem.
Há casos inconcebíveis de represálias.
Tal como noutros tempos ominosos.
Esta gente demonstra praticar um subhumanismo, ou uma falta absoluta de humanismo que julgávamos definitivamente arredados da sociedade portuguesa.
Banalizaram a impiedade, converteram em normalidade o que é aberração.
Subtraíram-nos o pouco que nos sobrava do contentamento antigo. E generalizou, em nós, o descontentamento e a angústia.
Ter de dizer mal todos os dias não constitui nenhum momento feliz.
Repare-se que nenhum, nem sequer um comentador português consegue descortinar uma réstia de bondade, de sensatez e de equilíbrio naquilo que este Governo tem feito e faz.
Reverto a Manuel da Fonseca e tomo de mão o conceito que aplicou, há muitos anos, para definir essa época de tristeza, de violência e de desdém.
Ele e todos os seus camaradas de geração saíram da vida com o funesto desgosto de terem percebido que não havia saída.
A traição exigia devoção e cega obediência.
Por outro lado, a frase famosa Roma não paga a traidores, que o procônsul Servílio Cipião proferiu, acerca dos três assassinos de Viriato, só faz sentido como lenda.
A realidade é outra: os traidores são compensados. E chorudamente. Recentes exemplos ilustram a tese.
Os valores nos quais assentava a moral das relações estão liquidados. E não se vislumbra, no horizonte mais próximo do nosso mundo, a criação de outros, pelo menos tão à altura das urgências do homem de hoje, como o foram os que formaram gerações e gerações.
É uma maneira de ser e de estar violentamente arredada do nosso quotidiano.
O que se nos inculca é a ideia de que a modernidade exige uma tenaz reinterpretação da cultura, da política, do trabalho, do modo de viver.
A mobilidade é considerada como uma verdade quase cósmica e indiscutível.
Há dias, no restaurante onde costumo almoçar às sextas-feiras, com um grupo de amigos, escritores e jornalistas, perguntei ao ministro Mário Lino: Então, onde é que está o socialismo? Na gaveta!, exclamou, sorridente e cheio de júbilo.
Caímos na armadilha funcionalista e tecnológica que, afinal, apenas tem beneficiado o grande capital monopolista e as estratégias financeiras internacionais.
Nada disto nos é dito e esclarecido.
Sobretudo por uma Esquerda, falo no P.S., bem entendido, que ajuda a cimentar o muro da modernidade, que nos obriga a mudar de perspectiva, de vida e até de sonhos, sem nada opor em troca.
Para a classe dirigente não há alternativa. Estou em crer no contrário.
B.B.
Etiquetas: Partido Socialista, Portugal
8 Comments:
O dr. Costa insiste na "limpeza geral" da cidade. Porém, a gente olha para a primeira fila dos seus melancólicos apoiantes e tira a conclusão óbvia. É por ali que é preciso dar início à "limpeza geral".
CIRCO
O PS trouxe gente de autocarros, gente que vive fora de Lisboa, para fingir a alegria no Hotel Altis. Que palhaçada democrática.
CAROS E CARAS AMIGAS
começa Costa. Na verdade não podia dizer "caros e caras lisboetas", devido ao activo excursionismo na sede.
José Pacheco Pereira
no:ABRUPTO
É DE PERGUNTAR A SALDANHA SANCHES
se estas excursões para a sede do PS estão na contabilidade da campanha? Do Alandroal, Cabeceiras, Arco de Baúlhe, etc., etc.
José Pacheco Pereira
no:ABRUPTO
e o PSD ficou onde?
talvez o otário do pacheco pereira me saiba responder...
Olha o xuxalista que ainda te vais aliar ao Carmona ou ao Negrão para poderes governar.
É assim!
José Sócrates, o secretário-geral do PS, anunciou que o partido vai criar uma agência de viagens especializada em turismo político, aproveitando uma nova procura que a generalizar-se a todas as forças políticas poderá ter mais peso que o turismo religioso atraído por Fátima.
Assim, espera-se que nas próximas autárquicas de Lisboa os festejos sejam feitos por turistas da Covilhã, nas autárquicas de Faro os manifestantes embarcarão a partir de Matosinhos e em Évora a vitória será festejada por pessoal vindo de Bragança. Os turistas com mais recursos poderão deslocar-se aos Açores, estando mesmo a ser planeada uma viagem à Madeira, ainda que neste caso ainda não haja data marcada.
Ainda bem que estava sentado quando ouvi uma velhota dizer à televisão que tinha vindo não sei donde e não sabia o que estava a fazer nos festejos da vitória de António Costa. Quem terá sido o nabo da organização da candidatura de António Costa a preparar tal recepção?
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