POR QUE RI A HIENA?
A glória e a euforia são de rigor.
O sorriso aberto e satisfeito.
A sensação de vitória vê-se na linguagem do corpo.
Sócrates venceu.
Portugal venceu.
A Europa venceu.
Todos e cada país venceram.
Como previsto, Barroso, Merkel e Sarkozy venceram.
Prodi também.
E os gémeos polacos igualmente.
Percebo por que tanta gente ri de alegria e prazer.
Percebo, mas não compreendo.
O monstro acabado de criar não dá motivos para rir.
Nem sequer sorrir. Mas o Dr. Frankenstein também sorria.
Depois de ter prometido a ultrapassagem da América nos domínios do crescimento, da ciência, da inovação e do emprego, a “Estratégia de Lisboa” foi um monumental fiasco. Segue-se-lhe o “Tratado de Lisboa”, adornado de ainda mais euforia e de ainda mais ilusões vencedoras. Este desastre de Lisboa não ficará conhecido por aqui se ter decretado uma Europa federal, comandada por franceses e alemães, distante dos povos, alheada dos problemas sociais e políticos do continente e contrária à diversidade secular dos seus povos. Não será isso, pela simples razão de que essa Europa federal nunca terá existência. O desastre de Lisboa ficará na história porque aqui se assinou um tratado que consagrou a não democracia como regime europeu e consolidou a burocracia e a Nomenclatura europeias. Ao fazê-lo, confirmou a caminhada futura para uma ilusão senil, irrealizável e não democrática. Ao tentar construir uma impossibilidade, prepararam a destruição do possível. Ao querer uma União federal, eliminam a hipótese de uma verdadeira Comunidade.
Os povos estão distantes da União e afastados da política. As instituições são fechadas e inacessíveis. A Constituição é ilegível e absurda. Os políticos são execrados pelos cidadãos. Os eleitores perderam a confiança nos seus representantes. Os europeus não conhecem, nem querem conhecer o Parlamento Europeu, uma das maiores inutilidades de que o engenho humano foi capaz. As instituições democráticas nacionais estão a definhar e alguns direitos fundamentais são postos em causa na Inglaterra, em França, na Polónia ou em Portugal. Ao mesmo tempo, as instituições europeias ganham poderes e competências, mas sem povo nem reconhecimento, sem tropas nem magistrados, sem aceitação pública nem experiência. A democracia europeia é uma ficção oca, sem substância, sem sociedade e sem vida. Este hiato, agora reforçado, entre a estratosfera europeia e as realidades nacionais e sociais é perigoso a todos os títulos. A Nomenclatura europeia criou um paraíso artificial e chamou-lhe União.
Sei que há muita gente que persiste em afirmar que tantos dirigentes, tanta inteligência, tanta capacidade diplomática não se podem enganar. Nem nos podem enganar a todos. Mas também sei que a melhor inteligência da Europa, as mais fantásticas capacidades científicas e tecnológicas e a mais ilimitada esperança na paz e no progresso fizeram, em 1914, uma das mais absurdas guerras que a humanidade conheceu. E sei que os alemães, vanguarda cultural, científica e industrial do mundo inteiro, tinham a certeza de que fundavam um império para mil anos e uma raça para a eternidade, e vejam o que fizeram. E também sei que os russos, com recursos ilimitados, com formidáveis elites políticas e intelectuais, quiseram, em tempos, criar uma sociedade sem classes, uma democracia total e um desenvolvimento económico e científico incomparável, e vejam o que fizeram. Como sei que os americanos, que concentram nas suas mãos mais poder, mais capacidades e mais inteligência do que qualquer outra nação na história, quiseram fundar a democracia no Vietname, há quarenta anos, agora no Iraque, e vejam o que fizeram. No Iraque, muitos erraram. Muitos se enganaram. Muitos enganaram. E muitos mentiram. E eram os mais inteligentes, os mais poderosos, os mais sabedores e os que de mais informação dispunham. Os dispositivos militares e políticos americano e britânico concentram inteligência e capacidades sem rival nem precedentes. Mesmo assim, erraram.
A questão não é, obviamente, de inteligência ou de informação. É de política e de interesses. Não é muito diferente do que se passa com os dirigentes europeus. Eles não estão enganados. Enganam e mentem porque acreditam no que dizem. A Alemanha quer comprar. A França quer mandar. Juntas, pagam o que for preciso. Pagam para liquidar a agricultura e as pescas de outros. Pagam para investir nos outros países, para lhes comprar empresas e lhes fechar outras. Pagam para poder exportar. Pagam para submeter o continente às suas opções, sobretudo energéticas. Pagam para construir uma fortaleza diante das veleidades russas. Pagam para resistir ou domesticar as multinacionais. Pagam finalmente para evitar os referendos, para evitar que os povos se exprimam sobre a Europa que eles querem fazer. Pagam para construir, nas nuvens, uma ficção, a que já chamam a mais importante realização política do século XX. Tal como o Império britânico. Tal como o Terceiro Reich. Tal como o comunismo soviético.
Os europeus de hoje, isto é, os seus dirigentes políticos, com medo dos seus povos e dos seus eleitores, com receio dos americanos, ameaçados pelas multinacionais, apavorados com o terrorismo, aterrorizados pela imigração, impotentes perante o comércio asiático, têm também ao seu serviço uma capacidade intelectual, política e diplomática sem precedentes. Querem uma Europa unida ou os Estados Unidos da Europa. Vejam o que fizeram, uma Nomenclatura. Uma União que é a mais poderosa entidade na Europa actual e é também a menos democrática.
Tal como a euforia foi grande, também a crise agora vencida era enorme. Não havia crise na Europa, nem na maior parte dos seus países. Não havia crises sociais e económicas graves. Não havia democracia ou estabilidade em risco evidente. Não havia diferendos militares. A paz não estava ameaçada. Havia crise, isso sim, entre eles, entre os dirigentes políticos, entre os Estados, entre as Nomenclaturas. Fizeram a crise. Resolveram-na. Entre eles. Sem os europeus. Talvez mesmo contra os europeus.
António Barreto
Público, 21/10/2007
O sorriso aberto e satisfeito.
A sensação de vitória vê-se na linguagem do corpo.
Sócrates venceu.
Portugal venceu.
A Europa venceu.
Todos e cada país venceram.
Como previsto, Barroso, Merkel e Sarkozy venceram.
Prodi também.
E os gémeos polacos igualmente.
Percebo por que tanta gente ri de alegria e prazer.
Percebo, mas não compreendo.
O monstro acabado de criar não dá motivos para rir.
Nem sequer sorrir. Mas o Dr. Frankenstein também sorria.
Depois de ter prometido a ultrapassagem da América nos domínios do crescimento, da ciência, da inovação e do emprego, a “Estratégia de Lisboa” foi um monumental fiasco. Segue-se-lhe o “Tratado de Lisboa”, adornado de ainda mais euforia e de ainda mais ilusões vencedoras. Este desastre de Lisboa não ficará conhecido por aqui se ter decretado uma Europa federal, comandada por franceses e alemães, distante dos povos, alheada dos problemas sociais e políticos do continente e contrária à diversidade secular dos seus povos. Não será isso, pela simples razão de que essa Europa federal nunca terá existência. O desastre de Lisboa ficará na história porque aqui se assinou um tratado que consagrou a não democracia como regime europeu e consolidou a burocracia e a Nomenclatura europeias. Ao fazê-lo, confirmou a caminhada futura para uma ilusão senil, irrealizável e não democrática. Ao tentar construir uma impossibilidade, prepararam a destruição do possível. Ao querer uma União federal, eliminam a hipótese de uma verdadeira Comunidade.
Os povos estão distantes da União e afastados da política. As instituições são fechadas e inacessíveis. A Constituição é ilegível e absurda. Os políticos são execrados pelos cidadãos. Os eleitores perderam a confiança nos seus representantes. Os europeus não conhecem, nem querem conhecer o Parlamento Europeu, uma das maiores inutilidades de que o engenho humano foi capaz. As instituições democráticas nacionais estão a definhar e alguns direitos fundamentais são postos em causa na Inglaterra, em França, na Polónia ou em Portugal. Ao mesmo tempo, as instituições europeias ganham poderes e competências, mas sem povo nem reconhecimento, sem tropas nem magistrados, sem aceitação pública nem experiência. A democracia europeia é uma ficção oca, sem substância, sem sociedade e sem vida. Este hiato, agora reforçado, entre a estratosfera europeia e as realidades nacionais e sociais é perigoso a todos os títulos. A Nomenclatura europeia criou um paraíso artificial e chamou-lhe União.
Sei que há muita gente que persiste em afirmar que tantos dirigentes, tanta inteligência, tanta capacidade diplomática não se podem enganar. Nem nos podem enganar a todos. Mas também sei que a melhor inteligência da Europa, as mais fantásticas capacidades científicas e tecnológicas e a mais ilimitada esperança na paz e no progresso fizeram, em 1914, uma das mais absurdas guerras que a humanidade conheceu. E sei que os alemães, vanguarda cultural, científica e industrial do mundo inteiro, tinham a certeza de que fundavam um império para mil anos e uma raça para a eternidade, e vejam o que fizeram. E também sei que os russos, com recursos ilimitados, com formidáveis elites políticas e intelectuais, quiseram, em tempos, criar uma sociedade sem classes, uma democracia total e um desenvolvimento económico e científico incomparável, e vejam o que fizeram. Como sei que os americanos, que concentram nas suas mãos mais poder, mais capacidades e mais inteligência do que qualquer outra nação na história, quiseram fundar a democracia no Vietname, há quarenta anos, agora no Iraque, e vejam o que fizeram. No Iraque, muitos erraram. Muitos se enganaram. Muitos enganaram. E muitos mentiram. E eram os mais inteligentes, os mais poderosos, os mais sabedores e os que de mais informação dispunham. Os dispositivos militares e políticos americano e britânico concentram inteligência e capacidades sem rival nem precedentes. Mesmo assim, erraram.
A questão não é, obviamente, de inteligência ou de informação. É de política e de interesses. Não é muito diferente do que se passa com os dirigentes europeus. Eles não estão enganados. Enganam e mentem porque acreditam no que dizem. A Alemanha quer comprar. A França quer mandar. Juntas, pagam o que for preciso. Pagam para liquidar a agricultura e as pescas de outros. Pagam para investir nos outros países, para lhes comprar empresas e lhes fechar outras. Pagam para poder exportar. Pagam para submeter o continente às suas opções, sobretudo energéticas. Pagam para construir uma fortaleza diante das veleidades russas. Pagam para resistir ou domesticar as multinacionais. Pagam finalmente para evitar os referendos, para evitar que os povos se exprimam sobre a Europa que eles querem fazer. Pagam para construir, nas nuvens, uma ficção, a que já chamam a mais importante realização política do século XX. Tal como o Império britânico. Tal como o Terceiro Reich. Tal como o comunismo soviético.
Os europeus de hoje, isto é, os seus dirigentes políticos, com medo dos seus povos e dos seus eleitores, com receio dos americanos, ameaçados pelas multinacionais, apavorados com o terrorismo, aterrorizados pela imigração, impotentes perante o comércio asiático, têm também ao seu serviço uma capacidade intelectual, política e diplomática sem precedentes. Querem uma Europa unida ou os Estados Unidos da Europa. Vejam o que fizeram, uma Nomenclatura. Uma União que é a mais poderosa entidade na Europa actual e é também a menos democrática.
Tal como a euforia foi grande, também a crise agora vencida era enorme. Não havia crise na Europa, nem na maior parte dos seus países. Não havia crises sociais e económicas graves. Não havia democracia ou estabilidade em risco evidente. Não havia diferendos militares. A paz não estava ameaçada. Havia crise, isso sim, entre eles, entre os dirigentes políticos, entre os Estados, entre as Nomenclaturas. Fizeram a crise. Resolveram-na. Entre eles. Sem os europeus. Talvez mesmo contra os europeus.
António Barreto
Público, 21/10/2007
Etiquetas: Constituição Europeia, Europa, Tratado de Lisboa, Tratado Europeu
5 Comments:
Referendo ao Tratado:
Ficará a promessa por cumprir?
Já houve acordo quanto ao "Tratado de Lisboa". Será que o Sócrates irá cumprir a promessa eleitoral de o submeter a referendo? Depois de ter feito tanta coisa exactamente ao contrário do que disse para ganhar as eleições, é legítimo duvidar que o faça, mas...
Importa agora saber em que medida esse Tratado é necessário e perceber até que ponto será bom para as nossas vidas. Porque de mau, já basta assim
Já entrou em Portugal muitíssimo mais dinheiro do que este agora anunciado e veja-se como estamos: cada vez mais atrasados em relação aos outros países europeus, o que se traduz em menos desenvolvimento económico, retrocesso social, mais desemprego, piores condições de vida, etc. O problema nunca foi a falta de dinheiro, mas sim a sua má aplicação devido à enorme incompetência dos nossos dirigentes políticos e à corrupção com a qual têm sido coniventes e, quantas vezes, têm beneficiado. Somos a vergonha da Europa. Chega a ser constrangedor. Em qualquer fórum europeu, goza-se com o nosso país e contam-se piadas sobre a qualidade dos nossos emproados governantes (destes e dos anteriores). Até se diz que o Barroso foi escolhido para presidir à Comissão Europeia por ser um excelente pau mandado dos mais poderosos e só por isso. Havia gente muito mais competente do que ele para o cargo, mas não se sujeitavam ao papel de palhaço rico que ele desempenha apatetadamente...
Nos últimos anos, enquanto todos os outros países progrediram, nós regredimos. A UE mandar para cá dinheiro é o mesmo que jogar "pérolas a porcos". Sinceramente, não acredito que alguma coisa mude para melhor na actuação dos nossos governantes e na definição e aplicação de políticas e estratégias de desenvolvimento. É mais provável que os barrascos continuem a engordar e a generalidade da população a definhar!
Cuidado com as ejaculações precoces
Nas televisões e nas rádios acontece um transbordante contentamento por causa do ... nome do Tratado.
Ouvi alguém dizer que "só por esse motivo de orgulho" todos os portugueses tinham o "dever patriótico" (?) de o apoiar. Está em causa o "nome de Portugal" e outros disparates semelhantes...
Lembrei-me de idêntico fenómeno, aí há uns 7 anos, quando o inesquecível António Guterres também baptizou a célebre Declaração com o mesmo nome: de Lisboa. Aí, entre outros cândidos desejos, vaticinava-se que a Europa iria ultrapassar a perversa economia americana em 2010 - um sucesso, como sabemos. Na altura, os media ficaram num frenesim igual a este...
Sei que agora que acabou, já aí está o dia seguinte e tudo volta a ser como era. Sei que já falei aqui demais da Constituição Europeia, agora transvestida de um mero tratado. Só me apetece chamar nomes e impropérios a esta gente que, depois de o aprovar nas costas de todos nós, se prepara para o assinar em Dezembro e fazer rectificar na Assembleia recusando ao povo deste país o direito de manifestar a sua opinião. Este vendermo-nos a uma União Europeia controlada, não pelos interesses de todos os seus membros, mas de algumas almas pardas vindas dos confins dos infernos bildberguianos, faz-me sentir como uma rameira que vende o seu corpo e a sua alma. Como não posso eu deixar de me sentir revoltado contra quem me faz sentir que me transformam numa prostituta, colocado numa esquina da Europa a render para encher os bolsos de alguns “chulos”. Sinto vergonha do que os governantes desta Europa lhe estão a fazer.
Vem ai a enxurrada dos fundos da EU. Vão ser 21 mil milhões que segundo o Ministro serão gastos na qualificação dos Portugueses a na competitividade. Ainda me lembro de outras enxurradas do género e dos milhares de cursos e cursinhos que na altura surgiram para qualificar os Portugueses. Ainda me lembro bem, do que foi mamar na teta da Europa nessa altura com os resultados que se vê. Se Portugal era iletrado, iletrado ficou no fim, com a diferença que as contas bancárias de alguns ficaram bem mais chorudas. É muito dinheiro e há por aí muito vampiro sequioso de lhe ferrar os dentes. Vícios antigos que não desaparecem com facilidade.
Quase que podia apostar que daqui a uns anos, quando nos perguntarmos o que aconteceu a tanto dinheiro, vamos ver um TGV e um aeroporto, uns ministros a dizer que é necessário apostar na formação e qualificação dos portugueses e um grupo de alguns, os mesmos de sempre, mais gordos e mais abastados.
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