domingo, 21 de setembro de 2008

HONRA: ALGUÉM SE LEMBRA?

1.- Há apenas uns meses, o senador McCain, que em Janeiro se poderá tornar o próximo Presidente dos Estados Unidos, afirmava ainda que o governo federal se deveria manter fora dos assuntos que tinham que ver com o funcionamento do sector financeiro e do livre mercado capitalista. Embora já então fosse mais do que evidente que a chamada crise do subprime no sistema financeiro americano estava ainda longe de mostrar o fundo e que o fundo era um lamaçal onde alguns dos mais incensados colarinhos brancos dos Estados Unidos estavam atolados em práticas impensáveis de batota e especulação irresponsável, o velho senador mantinha-se ainda atado de pés e mãos à crença de que o capitalismo é conforme à vontade de Deus e que qualquer veleidade de vigilância sobre ele é um erro económico e um atentado aos valores da sociedade liberal. Mas esta semana, confrontado com a decisão do Tesouro de injectar 85.000 mil milhões de dólares na AIG para evitar a falência da maior seguradora mundial e o colapso de milhões de pensões de reforma de americanos que trabalharam toda a vida confiando no sistema, McCain teve de rever o seu discurso, embora talvez não as suas convicções. Agora, já veio falar na necessidade de regulação de um sector que revelou excesso de ganância e de irresponsabilidade. Com dezenas de milhões de votos de pensionistas a serem disputados em Novembro, com o dinheiro dos contribuintes americanos largamente empenhado para salvar a AIG, os dois maiores gigantes do crédito hipotecário e vários bancos entre os quais o sagrado JP Morgan, mesmo o mais doutrinário dos nefastos neocoms americanos não pode ignorar esta verdade vexatória: o capitalismo americano, o farol da terra, está a tentar ser salvo pelo Governo dos Estados Unidos com recurso a medidas que fazem lembrar o PREC português, dos anos 70. Só que, se então eram os comunistas que tratavam de nacionalizar a economia por questões ideológicas, agora são os próprios capitalistas a aplicar medidas comunistas para se salvarem a si próprios. Quem paga? Pagam os contribuintes, os que trabalharam em troca de um salário, enquanto os administradores do falido Lehman Brothers recebem milhões a título de prémio de boa gestão ou indemnização para se irem embora, depois de terem afundado o navio.

Anos e anos a fio, os liberais têm-nos explicado que as empresas têm de crescer, crescer sem limite, para ganharem dimensão estratégica numa economia global. E os governos tudo têm feito por isso: consentem e estimulam as fusões e aquisições, mesmo sabendo que tal diminui e falseia a concorrência - que é um dos pilares do mercado livre - e que, quando um gigante assim insuflado, como a AIG, tropeça na sua própria dimensão, são milhões de postos de trabalho de gente inocente que vão ser postos em causa e um efeito de cascata que se desencadeia, abalando toda a economia. Bem dizia Marx, que, entregue a si próprio, o capitalismo se devoraria.

O que falhou? Falhou a noção de honra dos capitalistas e a noção de dever dos governantes. Falhou a consciência da responsabilidade social do dinheiro, substituída pela simples ganância de mais e mais lucros, sem olhar sequer a regras de prudência elementares.
Vimos como, entre nós, um banco que era apontado como um case study de modernidade e inovação, onde mandavam os gestores profissionais e não os accionistas parasitários, se transformou num case study de tropelias de toda a ordem, em que o objectivo principal da gestão parecia ser, não o de servir os accionistas, os clientes, os trabalhadores do banco ou a economia nacional, mas sim a luxúria e o desejo de acreditação social dos seus gestores. No antigo faroeste americano, os que eram apanhados a fazer batota ao jogo eram despidos de tudo, pintados com alcatrão, cobertos de penas e expulsos da cidade. Hoje recebem milhões de indemnização para se irem embora e reformas vitalícias que são um escândalo público. Porque, quando a honra deixa de ser um valor na vida em sociedade, a vergonha não pesa nada.

2.- Consta que vamos mandar três polícias para a Geórgia. Não vão para dirigir o trânsito nem caçar multas por excesso de velocidade: vão, por mais ridículo que isto seja, para mostrar o nosso compromisso para com o objectivo da NATO de conter o expansionismo russo no Cáucaso. Ora, recapitulemos:


- a Geórgia é um dos países que se separaram da órbita da ex-URSS e que, em decorrência da perigosa estratégia de cerco à Rússia, logo recebeu a ajuda do imbecil do Bush para se tornar um satélite dos Estados Unidos, sob uma das três modalidades habitualmente propostas: receber mísseis americanos, aderir à NATO ou ser declarada protegida desta;


- entretanto, o novo país instalou-se sobre um poder formado por seitas mafiosas, totalmente corruptas e criminosas, autêntico paradigma do que é suposto não serem os valores morais do Ocidente;


- do novo país fazem parte as regiões autónomas da Abkhazia e Ossétia do Sul, de maioria russa, e que ficaram como enclaves da Geórgia, da mesma forma que o Kosovo, de maioria albanesa, ficou como enclave da Sérvia;

- quando, há meses, os Estados Unidos, a NATO e a UE promoveram a irresponsável declaração de independência unilateral do Kosovo, contra a ONU e com o único fundamento de que a maioria da sua população não era sérvia, Moscovo avisou que estavam a abrir uma caixa de Pandora e todos perceberam que sim e, todavia, foram em frente;

- escorada na protecção dos Estados Unidos e da NATO, a Geórgia resolveu romper o statu quo e forçar a anexação pela força das suas zonas russófonas: invadiu a Ossétia, matou indiscriminadamente, bombardeou, destruiu, provocou centenas de milhares ou milhões de refugiados: uma forma muito estranha de tratar o seu povo. Mas os EUA, a NATO, a UE, mantiveram-se calados. E só reagiram quando Moscovo enviou o Exército em defesa das populações russas e, obviamente, a seguir passou a promover a declaração de independência de ambas as regiões - tal qual como o Kosovo fez. Então, sim, as boas e idiotas almas que nos governam desataram a gritar: Socorro, que o urso está de volta!.

Andam a brincar com o fogo. E nós lá vamos, acompanhando galhardamente o esforço de conter o expansionismo russo, enviando três polícias para essa coisa que nos é tão íntima, que é o Cáucaso. Mais valia mandarmos três bombeiros.

3.- Uma lei especial e antiga estabeleceu que o general Eanes não poderia acumular a sua pensão de reserva como militar com a pensão de ex-Presidente da República. Uma lei estranha, num país em que as grandes figuras do regime acumulam tudo: pensões privadas com pensões públicas, pensões públicas com ordenados privados e pensões públicas com pensões públicas. Sentindo-se discriminado, o general recorreu à justiça, que, muitos anos depois lhe deu razão e mandou que passasse a receber ambas as pensões, mais os retroactivos, cerca de 1.300.000 euros. Eanes, porém, recusou receber os retroactivos. Num país em que tantos exigem e recebem do Estado o que podem e o que não deviam, ele recusou uma pequena fortuna. Não sei as razões, mas conheço suficientemente o homem para perceber a sua motivação. É uma questão de honra. E, nas questões de honra, não basta apregoá-la, é preciso tê-la.

Miguel Sousa Tavares

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2 Comments:

At 22 de setembro de 2008 às 22:17, Anonymous Anónimo said...

Com mais de 30 anos de atraso em relação a Portugal, a pança do capitalismo descobriu o coração do “gonçalvismo”.
Na América, o governo federal está a intervir em sucessivos gigantes bancários, numa modalidade mitigada de “nacionalização” como a que foi decidida e ensaiada em Portugal em 1974 contra a “sabotagem económica”. Em 1974, perante os acontecimentos em Portugal, a América puxou logo de todo o arsenal da guerra-fria receitado para usar a quente: esquadra da NATO a pairar ao largo da costa, mobilização dos aliados, boicote económico e chantagem financeira, visitas do general Vernon Walters e nomeação do embaixador Frank Carlucci, manipulação de partidos, de sindicatos e da opinião pública, campanha de propaganda delirante, redes terroristas e separatistas clandestinas, etc. Valia tudo. Mas, afinal, a intervenção do Estado na economia não morde.
Muito pelo contrário. O que é verdadeiramente grotesco é que o capitalismo mais selvagem, apesar de desconfiado, está a suspirar de alívio. Medidas de inspiração socialista – que apenas socialistas excêntricos como o coronel Hugo Chavez ousam hoje tomar apesar da ameaça de represálias – estão a segurar o capitalismo pelos cabelos para evitar o descalabro iminente. O Fundo Monetário Internacional apressou-se a aplaudir a iniciativa. Quem poderia prever um FMI-ml? Mas não é que o mundo esteja de pernas para o ar: é o sistema que está de pantanas. A especulação tomou o freio nos dentes. O capitalismo ficou com a “bolha”. Wall Street está ao nível da Dona Branca.
Perante “a catástrofe iminente” quais “os meios de a conjurar?”, perguntaria Vladimir Ilitch Lenine. E o velho Karl Marx responderia: “obviamente, nacionaliza-se”.

 
At 23 de setembro de 2008 às 19:02, Anonymous Anónimo said...

No outro dia encontrei o general Ramalho Eanes com a mulher. O general é cordial, sempre direito e enigmático. Manuela Eanes é muito simpática, como se me conhecesse de menina, com o seu penteado fora de época e uma cor de baton que já se voltou a usar e a deixar de usar várias vezes.

Sempre que os encontro fico com a sensação de que devia ter dito mais qualquer coisa, que o país todo lhes devia dizer mais qualquer coisa.

O general Ramalho Eanes é o único general que foi presidente da República e não foi promovido a marechal. O general Ramalho Eanes tem direito a que o Estado lhe pague uma pipa de massa e recusa os retroactivos de uma injustiça antiga. Imagino o filho a abanar a cabeça, "O que é que se há-de fazer?", porque toda a gente precisa de dinheiro e não deve ser fácil recusar aquele montante, que ainda por cima lhe é realmente devido. A mulher do general nunca perdeu tempo a mudar de penteado ou de baton, mas perdeu muito tempo a arranjar formas de ajudar as crianças em risco. Em dias de política-espectáculo, vejo o general Ramalho Eanes e a mulher e sinto-me um bocadinho envergonhada. Nem sei bem explicar porquê.

 

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