segunda-feira, 31 de janeiro de 2005

ELOGIO DA MAIORIA


Mais do que em eleições anteriores, a questão da maioria absoluta de um partido tem vindo a transformar-se em assunto central. Uns receiam, outros esperam; uns condenam, outros exigem. Para uns, trata-se de instrumento essencial de governo democrático. Para outros, é uma ameaça às liberdades e um convite ao abuso de poder.
É curioso que ainda hoje, passados trinta anos, se discuta este tema. Mas o caso explica-se. Em Portugal, entre políticos e professores, mas também entre a população, a ideia de uma maioria absoluta tem inimigos confessos. Quando essa atitude tem origem nos pequenos partidos, é puro interesse. Percebe-se, mas não se aceita. Quando são simpatizantes de um dos dois grandes partidos, esse receio é mais incompreensível. É verdade que cada um vê como boa a maioria absoluta do seu partido, mas, por receio que a sorte calhe ao adversário, prefere que esse instrumento não seja consagrado.
Desde os primeiros anos do nosso constitucionalismo democrático que se cultiva o valor do governo minoritário. Ou antes, tudo se fez para que seja possível um governo minoritário. Por exemplo, na Constituição, não se previu deliberadamente que um novo governo fosse obrigado a fazer aprovar a sua entrada em funções ou o seu programa. Um governo pode "passar" no Parlamento sem qualquer votação ou com a abstenção de outros partidos. Está errado, diminui a legitimidade do executivo, mas são esses os nossos costumes.
Estes nasceram nos anos setenta. Nenhum partido via a hipótese de, sozinho, conquistar facilmente a maioria. Ainda por cima em sistema proporcional, que torna difícil esse feito. O então PPD, com odores de social-democracia, receava uma eventual coligação com o CDS. E o PS, que não imaginava uma aliança com o PC, convenceu-se, desde então, que jamais poderia governar a não ser sozinho (ou com coligações à direita, o que fez por duas vezes). Nos anos oitenta para noventa, aquando das revisões, os socialistas ainda tentaram fazer evoluir o sistema e inventaram um sofisticado dispositivo, o da "moção de censura construtiva", que, sob a aparência de estimular a formação de um governo maioritário, era, em última instância, uma defesa dos governos minoritários.
O problema não é o da maioria absoluta de um só partido. Essa, ou se tem, ou não; ou se merece, ou não. Nenhum expediente legal deve transformar uma minoria em maioria, naquilo que se chama vulgarmente a "vitória na secretaria". O problema é o do apoio parlamentar maioritário. Esse, sim, deveria preocupar os políticos e os eleitores. Esse, sim, deveria ser facilitado pela lei. Ou antes: a Constituição deveria tornar obrigatório um voto positivo da maioria, aprovado por um ou mais partidos. A formação do governo e o seu programa seriam assim devidamente legitimados. Se um partido não obtém os votos suficientes, a solução é conhecida: faça as coligações, as alianças e os acordos necessários a poder entrar em funções.
É possível que a estabilidade, por si só, não seja um valor absoluto. Mas, como instrumento de governo, de durabilidade de políticas, de capacidade de resolução, de planeamento e de execução de mandatos, é, sem dúvida, um valor interessante. O governo de maioria deveria ser a regra. Em Portugal, apreciam-se perversamente os governos instáveis e temem-se as "ditaduras da maioria". É evidente que, com os hábitos caseiros, a tentação de um partido com maioria absoluta é quase irresistível. Mas já tivemos experiência de governos maioritários (de um só partido ou de coligação...) e nem todos foram tão maus. A democracia não sofreu danos com os governos de Cavaco Silva ou as coligações da Aliança Democrática e do Bloco Central. Bem mais sofreu com as fugas de Guterres e Barroso e o despautério de Santana.
O governo que sair das próximas eleições deve ter a maioria. De um só partido, se os votos derem para isso. De uma coligação, se for preciso. Imaginemos que nenhum partido tem a maioria absoluta. A solução é simples. O partido mais votado deve fazer o necessário, com um parceiro, a fim de garantir o apoio parlamentar. Como se sabe, os cenários podem ser vários. Se não houver maioria absoluta, pode haver maioria de esquerda ou de direita, tudo dependendo dos números e dos resultados dos pequenos partidos. Em todos os casos, as coligações são evidentes. O PS poderá e deverá aliar-se à esquerda, com o Bloco de Esquerda, o PC ou os dois; se não for possível, com o CDS; em última instância, se os números não derem, com o PSD. Quanto ao PSD, a ordem é inversa: coligação preferencial com o CDS; e de recurso com o PS. No caso do PSD, já parece impossível prever uma eventual aliança com o Bloco de Esquerda ou com o PC.
A solução do Bloco Central parece ser a pior. A tendência para a corrupção, o favoritismo e a partilha de despojos é mais forte com um governo que tenha quase oitenta por cento dos votos, do que com um partido maioritário ou uma pequena coligação. Colocar-se-á de novo o problema de uma eventual coligação de esquerda? A questão é antiga e nunca teve resposta definitiva. Ou antes, sempre pareceu que o PS seria incapaz de tal. O que é o seguro de vida da direita. Nem sempre esta incapacidade teve resultados negativos. Mas, com o segundo governo de Guterres, foi evidente que essa impossibilidade acabou por ser um obstáculo a uma política saudável.
Como não se previu a aprovação no Parlamento, só uma moção de censura pode impedir um governo minoritário. Mas, para tal, é também necessário que se conjuguem os votos de vários partidos adversários, o que quase nunca foi possível. Sendo assim, o único recurso é esperar que o Presidente da República diga ao partido mais votado que só dará posse a um Primeiro-ministro e a um governo que lhe garantam apoio parlamentar positivo e programático. Tem o Presidente da República legitimidade para fazer uma tal exigência? Com certeza que sim. Como teria tido, aliás, no Verão de 2004, se dissesse ao PSD que queria ter dois ou três nomes de eventuais Primeiros-ministros, a fim de escolher um. Teria evitado os meses dolorosos que se seguiram; teria talvez afastado a hipótese das eleições antecipadas. O Presidente da República não é um mestre-de-cerimónias passivo. Os resultados das eleições, de que fala a Constituição, não o obrigam a aceitar um governo minoritário, provavelmente instável e impotente. Se o Presidente assim agisse, prestaria relevante serviço ao país.
António Barreto

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