terça-feira, 26 de julho de 2005

DIMENSÕES E REALIDADES DA OBRA AUTÁRQUICA

Em termos estritamente políticos, a obra é o fundamento do exercício do poder – a capacidade de fazer e o uso dessa capacidade, um legado que se produz mas que está sempre incompleto, inacabado.

Apreciar, decidir, votar em função da obra feita, por fazer ou prometida – eis a pedra de toque para as próximas eleições autárquicas. Mas a que obra se referem os autarcas ou os respectivos candidatos, que obra é esta que se assume como factor determinante, incontornável nas pelejas pelos lugares de poder em disputa?

A apreensão imediata do conceito de obra assim referido, transmite uma espécie de evidência física, algo de visível, palpável, as infra-estruturas, os equipamentos.

Esta interpretação pode ser sequencialmente alargada à obra edificada por terceiros, mas para cuja existência o município tem um papel decisivo – os edifícios e urbanizações residenciais, as fábricas, aquilo que, exceptuando as intervenções da Administração Central e do sector público nos territórios concelhios, é geralmente atribuído à dinâmica dos privados.

Mas a elegia da obra não se esgota no seu conteúdo físico – o planeamento, o ordenamento do território e ambiental, as designadas políticas de qualidade de vida, a promoção do emprego e demais políticas sociais, as actividades de lazer multi-sectoriais, tudo isto faz parte da obra enunciada ou anunciada, menos visível mas certamente percepcionável.

A obra é assim algo de permanentemente inacabado, que corresponde à trajectória duma sociedade num determinado momento e respectivas implicações a prazo.

Em termos estritamente políticos, a obra é o fundamento do exercício do poder – a capacidade de fazer e o uso dessa capacidade, um legado que se produz mas que está sempre incompleto, inacabado, que justifica embora possa não ser suficiente, o prolongamento da obra no tempo, até que «o dono da obra» se afaste ou seja afastado: aí, fecha-se um ciclo e inicia-se a construção de uma nova obra, mesmo que no essencial assente nos caboucos da anterior.

É porventura mais consensual nas pequenas localidades, onde se capta melhor mesmo que a sua dimensão física seja diminuta, do que nas grandes urbes, onde os consensos são mais precários e segmentados.

Estas são por excelência, os centros de inovação onde se desenvolve e avalia o pulsar da sociedade, mas são também fautoras de anomia social, de desequilíbrios, vidas marginais e focos de desagregação.

É cíclico na história das urbes, independentemente da sua dimensão, a períodos de desenvolvimento e de euforia sucederem-se períodos de declínio, de retrocesso, reflectindo o princípio do esgotamento da obra produzida.

A exigência, o pensamento e a capacidade crítica são maiores nas áreas urbanas mas mesmo aí, se suscitar continuada adesão, a obra protagonizada por alguém, pode prolongar- se no tempo.

Os protagonistas sabem ou intuem que têm que produzir discurso associado à obra, captar energias e vontades que engrossem o núcleo dos fazedores e legitimem o percurso traçado, sancionando-o publicamente.

Mas o caminho a fazer não está por natureza atapetado – a obra a construir será sempre mais ou menos negociada, um somatório de delicados equilíbrios que escapam ao olhar comum, entre os interesses a satisfazer e os que por eles se sentem afectados.

As cidades globais, onde emerge o desenvolvimento tecnológico acelerado, assumem-se como a obra de última geração e panaceia para atrasos crónicos, mas, seguro é, o aumento progressivo dos excluídos, o lado negro da obra que a pode converter em impasse ou implodir.

Nas suas múltiplas vertentes, a obra é publicamente assumida como um todo uno e coerente, mas o que significa, como é entendida em cada momento pelos cidadãos que vivem num determinado território, por aqueles que lá trabalham ou o visitam, como atrair e compatibilizar a perspectiva histórica e sentimental dos lugares com a frieza dos investimentos?

Vem nas primeiras páginas de qualquer manual – fixar os objectivos, definir e obter os meios humanos, técnicos e financeiros adequados, seduzir a envolvente q.b. (vulgo participação pública), avaliar por sistema e com rigor – o tempo presente é o de apresentar resultados, contar com os conquistados, aproximar os afastados, convencer os indecisos, suavizar os críticos.

A matriz partidária da obra local, reduz-se à cor da camisola dos respectivos líderes, é encenada e acenada em campanha eleitoral, deve estar presente sem ser omnipresente – apesar do reduzido reconhecimento público da actividade política, é factor que individualiza e identifica, de agregação.

A obra autárquica vai a votos – tempo de angústia perante a incerteza dos resultados, a tentação de dar mais um passo que não seja em falso, para pôr em evidência o que foi feito ou o que vai ser feito, pelo menos a intenção deve valer alguma coisa.

A dimensão escatológica da obra, humaniza-a, permite oscilações e variações de rumo, a dramatização de momentos com significado na vida local, mas na hora da escolha o somatório de estados de alma, não se confina a esta lógica.

Caso a caso, em que medida o agitar da obra vai produzir frutos ou equívocos, de que forma vão convergir ou dissociar-se as dimensões real, percepcionada ou política, da obra autárquica?

Luís M. Sousa