NUNCA COMO AGORA
Os autarcas algarvios reuniram-se e decidiram exigir ao Governo que lhes resolva, "em termos definitivos", o problema da falta de água. Querem a água do Alqueva, a de Santa Clara ou de Odeceixe, a água do mar dessalinizada, qualquer coisa. Ou então virão lá de baixo para se manifestarem à porta de S. Bento.
Pelas mesmas razões, o país inteiro poderia fazer o mesmo: os agricultores que restam sem se terem ainda vendido às celuloses e que têm o gado a morrer à fome e à sede e as culturas de Outono condenadas, as populações do interior que, mesmo sem o "desenvolvimento" do Algarve, já não têm água nas torneiras.
O problema é que, ao mesmo tempo que se queixam da seca, os autarcas algarvios preparam-se para licenciar a construção de mais uns 30 campos de golfe, cada um dos quais consome água por 8000 pessoas, e projectam a aprovação de mais uns 200.000 fogos para o turismo. Está bem de ver que nunca haverá água que lhes chegue para tamanhas ambições de "desenvolvimento". Nem água, nem estradas, nem hospitais, nem infra-estruturas funcionais, nem sequer praias onde possa caber todo o "turismo de qualidade" que prometem aqueles senhores de bigode que enxameiam os cartazes de propaganda para as autárquicas dos milhares de rotundas algarvias. Hoje, exigem dos governos água e socorro para segurar as arribas em vias de desabar pelo excesso de construção, amanhã vão exigir mais areia e mais mar. Já esgotei com eles o meu vocabulário de adjectivos, a minha capacidade de indignação, o que me restava de memórias de um Algarve outrora deslumbrante, onde tudo poderia ter sido feito com dimensão, gosto e dignidade, erguendo ali uma indústria turística que teria sido muito mais rentável e com muito maior horizonte do que esta, cujo único futuro é a fuga em frente. Só espero que, de entre as suas várias promessas eleitorais, e deixando passar a época de todos os terrores que é a das eleições autárquicas, José Sócrates se lembre de que prometeu pôr termo ao regime predador que faz depender o volume de receitas autárquicas da quantidade de construção autorizada.
Escolhi o exemplo do Algarve para iniciar este texto apenas porque ele é recente e é também recorrente. Se fosse preciso fazer um manual de como desenvolver erradamente uma região, cometendo sistematicamente todos e cada um dos disparates possíveis e ignorando sempre e sempre todos os avisos feitos, o Algarve seria um modelo de manual inultrapassável. Não porque os responsáveis pelo desastre algarvio sejam piores do que os outros, apenas porque tiveram mais possibilidades naturais para a asneira e, entusiasmadamente, não as desaproveitaram. Mas, soltem-se as poucas e frágeis amarras legais que ainda defendem o Alentejo, e o Alentejo todo - litoral e interior - seguirá o mesmo caminho, de Tróia a Sagres, do Alqueva à serra de S. Mamede. Porque é essa a nossa vocação natural e o nosso cluster económico: destruir o que temos de bom, sacrificar a sustentabilidade a longo prazo pelo lucro especulativo imediato. Por isso abandonámos a floresta endémica e a pastorícia e substituímo-la pelos eucaliptos e pinheiros, que servem para alimentar as celuloses e pegar fogo ao país; por isso, deixámos que Bruxelas comprasse com um só cheque a nossa agricultura para que possa continuar a subsidiar os agricultores franceses ou espanhóis, enquanto nós abandonamos o interior e construímos barragens para regar greens de golfe assistidos por cadies ucranianos; por isso, sacrificamos o património natural do litoral e das reservas, como a ria Formosa ou a ria de Alvor, para que uns quantos espertalhões, assistidos por advogados especializados em tráfico de influências políticas e mancomunados com autarcas incompetentes ou corruptos, façam grandes negócios imobiliários que o povo confunde alegremente com a chegada do "progresso".
Este Verão passei uns dias no Norte, entre o horror dos incêndios e o espanto por constatar que, enquanto o fogo ameaçava uma aldeia, a aldeia vizinha continuava despreocupadamente a atirar foguetes para o ar, para celebrar sabe-se lá o quê. Estive suficientemente perto dos incêndios para me dar conta do estado de espírito reinante entre aqueles que viam as matas de eucaliptos e pinheiros pegarem fogo umas às outras, sucessivamente. Vi os bombeiros, aparentemente imunes à exaustão e ao medo, fazerem o seu trabalho, com determinação e calma; vi os autarcas locais, na primeira linha de combate aos fogos e, esses sim, admirei-os e respeitei-os; mas vi também o sentimento dominante das pessoas, que se traduzia em comentários do tipo "não há nada a fazer, vai arder tudo, o país inteiro". Tal como no Algarve, onde os comentários dos banhistas nas praias, olhando os prédios e as torres que avançam como incêndio incontrolável, também comentavam que "não há nada a fazer, vai tudo a eito!".
Essa sensação de que já não há nada a fazer por este país, eu sei situá-la exactamente no tempo recente: começou num dia de Julho, quando o ministro das Finanças, Campos e Cunha, foi obrigado a demitir-se e a fazer-se substituir por um yes man do PS por ter ousado manifestar publicamente as suas dúvidas sobre a utilidade para o país da Ota e do TGV, esquecendo a necessidade institucional de dar acolhimento à vontade das clientelas partidárias do mundo dos grandes negócios. E continuou, quando o novo ministro das Finanças inaugurou a sua entrada em funções, gastando quase meio milhão de contos de indemnizações para substituir parte da administração da Caixa-Geral de Depósitos por gente tão acreditada quanto o aparatchick Armando Vara. Aí, o que restava ainda de ilusões rendeu-se à evidência da fatalidade de um Estado dominado pelos interesses partidários e pelo rasteiro desígnio de acorrer aos seus e satisfazer os que financiam campanhas eleitorais. O descrédito final e a desesperança instalaram-se de vez, quando o país começou a arder e se tornou cruamente evidente que nada e ninguém estava preparado para tal, apesar dos milhões gastos, da experiência acumulada e dos estudos feitos e comissões nomeadas.
E assim chegámos, num ápice, ao estado de desânimo e descrença actual. Nunca, em mais de vinte e cinco anos que ando a observar de perto a política nacional, vi um governo desbaratar tão rapidamente o seu capital de esperança; nunca vi uma tamanha sensação de impotência e inutilidade instalada nas expectativas de todos; mas faltava ainda realizar que o que nos propõem de esperança se resume no regresso ao passado simbolizado ou em Cavaco Silva ou em Mário Soares, para que, de forma atabalhoada e confusa, se comece a instalar a ideia de que não há saída sem mudança de regime.
Nunca estivemos tão em baixo, nunca estivemos tão descrentes. Olhamos de cima a baixo, do Presidente da República ao mais obscuro funcionário do Estado, e a sensação é de que estamos próximos do "salve-se quem puder". E, no meio de tanto motivo de tristeza, acho que é justo fazer uma homenagem a quem tem tentado remar contra a maré do "deixa andar": a Marques Mendes, cuja luta pela moralização da vida interna do PSD tem sido a única luz de lucidez, coragem e higiene democrática à vista. Infelizmente, em termos de resultados palpáveis e imediatos, ele vai perder e os trafulhas vão ganhar. Chamado a decidir, o povo vai querer Valentim, Fátima Felgueiras, Isaltino e Ferreira Torres. E se é isso que o povo quer e é isso que os políticos lhe dão, o problema não é a democracia. O problema são os portugueses.
Miguel Sousa Tavares
O problema é que, ao mesmo tempo que se queixam da seca, os autarcas algarvios preparam-se para licenciar a construção de mais uns 30 campos de golfe, cada um dos quais consome água por 8000 pessoas, e projectam a aprovação de mais uns 200.000 fogos para o turismo. Está bem de ver que nunca haverá água que lhes chegue para tamanhas ambições de "desenvolvimento". Nem água, nem estradas, nem hospitais, nem infra-estruturas funcionais, nem sequer praias onde possa caber todo o "turismo de qualidade" que prometem aqueles senhores de bigode que enxameiam os cartazes de propaganda para as autárquicas dos milhares de rotundas algarvias. Hoje, exigem dos governos água e socorro para segurar as arribas em vias de desabar pelo excesso de construção, amanhã vão exigir mais areia e mais mar. Já esgotei com eles o meu vocabulário de adjectivos, a minha capacidade de indignação, o que me restava de memórias de um Algarve outrora deslumbrante, onde tudo poderia ter sido feito com dimensão, gosto e dignidade, erguendo ali uma indústria turística que teria sido muito mais rentável e com muito maior horizonte do que esta, cujo único futuro é a fuga em frente. Só espero que, de entre as suas várias promessas eleitorais, e deixando passar a época de todos os terrores que é a das eleições autárquicas, José Sócrates se lembre de que prometeu pôr termo ao regime predador que faz depender o volume de receitas autárquicas da quantidade de construção autorizada.
Escolhi o exemplo do Algarve para iniciar este texto apenas porque ele é recente e é também recorrente. Se fosse preciso fazer um manual de como desenvolver erradamente uma região, cometendo sistematicamente todos e cada um dos disparates possíveis e ignorando sempre e sempre todos os avisos feitos, o Algarve seria um modelo de manual inultrapassável. Não porque os responsáveis pelo desastre algarvio sejam piores do que os outros, apenas porque tiveram mais possibilidades naturais para a asneira e, entusiasmadamente, não as desaproveitaram. Mas, soltem-se as poucas e frágeis amarras legais que ainda defendem o Alentejo, e o Alentejo todo - litoral e interior - seguirá o mesmo caminho, de Tróia a Sagres, do Alqueva à serra de S. Mamede. Porque é essa a nossa vocação natural e o nosso cluster económico: destruir o que temos de bom, sacrificar a sustentabilidade a longo prazo pelo lucro especulativo imediato. Por isso abandonámos a floresta endémica e a pastorícia e substituímo-la pelos eucaliptos e pinheiros, que servem para alimentar as celuloses e pegar fogo ao país; por isso, deixámos que Bruxelas comprasse com um só cheque a nossa agricultura para que possa continuar a subsidiar os agricultores franceses ou espanhóis, enquanto nós abandonamos o interior e construímos barragens para regar greens de golfe assistidos por cadies ucranianos; por isso, sacrificamos o património natural do litoral e das reservas, como a ria Formosa ou a ria de Alvor, para que uns quantos espertalhões, assistidos por advogados especializados em tráfico de influências políticas e mancomunados com autarcas incompetentes ou corruptos, façam grandes negócios imobiliários que o povo confunde alegremente com a chegada do "progresso".
Este Verão passei uns dias no Norte, entre o horror dos incêndios e o espanto por constatar que, enquanto o fogo ameaçava uma aldeia, a aldeia vizinha continuava despreocupadamente a atirar foguetes para o ar, para celebrar sabe-se lá o quê. Estive suficientemente perto dos incêndios para me dar conta do estado de espírito reinante entre aqueles que viam as matas de eucaliptos e pinheiros pegarem fogo umas às outras, sucessivamente. Vi os bombeiros, aparentemente imunes à exaustão e ao medo, fazerem o seu trabalho, com determinação e calma; vi os autarcas locais, na primeira linha de combate aos fogos e, esses sim, admirei-os e respeitei-os; mas vi também o sentimento dominante das pessoas, que se traduzia em comentários do tipo "não há nada a fazer, vai arder tudo, o país inteiro". Tal como no Algarve, onde os comentários dos banhistas nas praias, olhando os prédios e as torres que avançam como incêndio incontrolável, também comentavam que "não há nada a fazer, vai tudo a eito!".
Essa sensação de que já não há nada a fazer por este país, eu sei situá-la exactamente no tempo recente: começou num dia de Julho, quando o ministro das Finanças, Campos e Cunha, foi obrigado a demitir-se e a fazer-se substituir por um yes man do PS por ter ousado manifestar publicamente as suas dúvidas sobre a utilidade para o país da Ota e do TGV, esquecendo a necessidade institucional de dar acolhimento à vontade das clientelas partidárias do mundo dos grandes negócios. E continuou, quando o novo ministro das Finanças inaugurou a sua entrada em funções, gastando quase meio milhão de contos de indemnizações para substituir parte da administração da Caixa-Geral de Depósitos por gente tão acreditada quanto o aparatchick Armando Vara. Aí, o que restava ainda de ilusões rendeu-se à evidência da fatalidade de um Estado dominado pelos interesses partidários e pelo rasteiro desígnio de acorrer aos seus e satisfazer os que financiam campanhas eleitorais. O descrédito final e a desesperança instalaram-se de vez, quando o país começou a arder e se tornou cruamente evidente que nada e ninguém estava preparado para tal, apesar dos milhões gastos, da experiência acumulada e dos estudos feitos e comissões nomeadas.
E assim chegámos, num ápice, ao estado de desânimo e descrença actual. Nunca, em mais de vinte e cinco anos que ando a observar de perto a política nacional, vi um governo desbaratar tão rapidamente o seu capital de esperança; nunca vi uma tamanha sensação de impotência e inutilidade instalada nas expectativas de todos; mas faltava ainda realizar que o que nos propõem de esperança se resume no regresso ao passado simbolizado ou em Cavaco Silva ou em Mário Soares, para que, de forma atabalhoada e confusa, se comece a instalar a ideia de que não há saída sem mudança de regime.
Nunca estivemos tão em baixo, nunca estivemos tão descrentes. Olhamos de cima a baixo, do Presidente da República ao mais obscuro funcionário do Estado, e a sensação é de que estamos próximos do "salve-se quem puder". E, no meio de tanto motivo de tristeza, acho que é justo fazer uma homenagem a quem tem tentado remar contra a maré do "deixa andar": a Marques Mendes, cuja luta pela moralização da vida interna do PSD tem sido a única luz de lucidez, coragem e higiene democrática à vista. Infelizmente, em termos de resultados palpáveis e imediatos, ele vai perder e os trafulhas vão ganhar. Chamado a decidir, o povo vai querer Valentim, Fátima Felgueiras, Isaltino e Ferreira Torres. E se é isso que o povo quer e é isso que os políticos lhe dão, o problema não é a democracia. O problema são os portugueses.
Miguel Sousa Tavares
2 Comments:
Mas não há-de ser possível as pessoas mais honestas e competentes tomarem conta do país?
Um português
"Chamado a decidir, o povo vai querer Valentim, Fátima Felgueiras, Isaltino e Ferreira Torres. E se é isso que o povo quer e é isso que os políticos lhe dão, o problema não é a democracia. O problema são os portugueses."
Aqui tem a resposta
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