UTOPIA
Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo mas irmão
Capital da alegria
Braço que dormes
nos braços do rio
Toma o fruto da terra
E teu a ti o deves
lança o teu
desafio
Homem que olhas nos olhos
que não negas
o sorriso a palavra forte e justa
Homem para quem
o nada disto custa
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio este rumo esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
na minha rota?
José Afonso
6 Comments:
Numa viagem que fiz a Coimbra apercebi-me da inutilidade de se cantar o cor-de-rosa e o bonitinho, muito em voga nas nossas composições radiofónicas e no nosso musichaIl de exportação. Se lhe déssemos uma certa dignidade e lhe atribuíssemos, pela urgência dos temas tratados, um mínimo de valor educativo, conseguiríamos talvez fabricar um novo tipo de canção cuja actualidade poderia repercutir-se no espírito narcotizado do público, molestando-lhe a consciência adormecida em vez de o distrair. Foi essa a intenção que orientou a génese de "Vampiros", entidades destinadas ao desempenho duma função essencialmente laxante ao contrário do que poderá supor o ouvinte menos atento. A fauna hipernutrida de alguns parasitas do sangue alheio serviu de bode espiatório. Descarreguei a bilis e fiz uma canção para servir de pasto às aranhas e às moscas. Casualmente acabou-se-me o dinheiro e fiquei em Pombal com um amigo chamado Pité. A noite apanhou-nos desprevenidos e enregelados num pinhal que me lembrou o do rei e outros ambientes brr herdados do Velho Testamento.
No céu cinzento
Sob o astro mudo
Batendo as asas
Pela noite calada
Vem em bandos
Com pés veludo
Chupar o sangue
Fresco da manada
Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada
A toda a parte
Chegam os vampiros
Poisam nos prédios
Poisam nas calçadas
Trazem no ventre
Despojos antigos
Mas nada os prende
Às vidas acabadas
São os mordomos
Do universo todo
Senhores à força
Mandadores sem lei
Enchem as tulhas
Bebem vinho novo
Dançam a ronda
No pinhal do rei
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada
No chão do medo
Tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos
Na noite abafada
Jazem nos fossos
Vítimas dum credo
E não se esgota
O sangue da manada
Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada
Zeca Afonso
Ronda dos Paisanos
Ao cair da madrugada
No quartel da guarda
Senhor general
Mande embora a sentinela
Mande embora e não lhe faça mal
Ao cair do nevoeiro
Senhor brigadeiro
Não seja papão
Mande embora a sentinela
Mande embora a sua posição
Ao cair do céu cinzento
Lá no regimento
Senhor coronel
Mande embora a sentinela
Mande embora e deixe o seu quartel
Ao cair da madrugada
Depois da noitada
Senhor capitão
Mande embora a sentinela
Mande embora o seu guarda-portão
Ao cair do sol nascente
Venha meu tenente
Deixe a prevenção
Mande embora a sentinela
Mande embora e tire o seu galão
Ao cair do frio vento
Primeiro sargento
Junte o pelotão
Mande embora a sentinela
Mande embora e cale o seu canhão
Ao cair do sol doirado
Venha meu soldado
Largue o seu punhal
Vá-se embora sentinela
Vá-se embora que aí fica mal
Vá-se embora sentinela
Vá-se embora que aí fica mal
Zeca Afonso
CANÇÃO DE EMBALAR
Dorme meu menino a estrela d’alva
Já a procurei e não a vi
Se ela não vier de madrugada
Outra que eu souber será pra ti
Outra que eu souber na noite escura
Sobre o teu sorriso de encantar
Ouvirás cantando nas alturas
Trovas e cantigas de embalar
Trovas e cantigas muito belas
Afina a garganta meu cantor
Quando a luz se apaga nas janelas
Perde a estrela d'alva o seu fulgor
Perde a estrela d'alva pequenina
Se outra não vier para a render
Dorme quinda à noite é muito menina
Deixa-a vir também adormecer
Zeca Afonso
Como gosto mais de vinho aquí deixo um poema do José Afonso do LP Venham Mais Cinco
Orfeu, 1973, LP-33 rpm | Músicos: Michel Cron, Alain Noel, André Garradot, Michel Bergés, Janine de Waleyne, Jean Claude Dubois, Jean Claude Naude, Michel Buzon, Michel Grenu, Marcel Perdignon, Michel Delaporte e José Mário Branco :
Venham mais cinco,
duma assentada que eu pago já
Do branco ou tinto,
se o velho estica eu fico por cá
Se tem má pinta,
dá-lhe um apito e põe-no a andar
De espada à cinta,
já crê que é rei d’aquém e além-mar
Não me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que é já tempo d' embalar a trouxa
E zarpar
A gente ajuda, havemos de ser mais
Eu bem sei
Mas há quem queira, deitar abaixo
O que eu levantei
A bucha é dura, mais dura é a razão
Que a sustem só nesta rusga
Não há lugar prós filhos da mãe
Não me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que é já tempo d' embalar a trouxa
E zarpar
Bem me diziam, bem me avisavam
Como era a lei
Na minha terra, quem trepa
No coqueiro é o rei
A bucha é dura, mais dura é a razão
Que a sustem só nesta rusga
Não há lugar prós filhos da mãe
Não me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que é já tempo d' embalar a trouxa
E zarpar
E se por um dia a revolta
Saísse de novo à rua
E fosse voz, grito e bandeira?
E se por um dia de todas as bocas
Em todas as ruas
Em todas as praças
Ecoasse a palavra liberdade
E livre voasse a esperança
E livre fosse a cidade inteira?
E se por um dia o homem na rua
Olhasse a miséria de frente
E à miséria desse rosto
E à indignação desse voz
E a voz fosse cantiga
Como as que o Zeca cantava?
Utopias…
Zeca, pá, Abril morreu
Hoje os cravos são sintéticos como a liberdade
A malta não tem memória
Esqueceu a história e não vai em revoluções
O povo Zeca, já não ordena
O povo esqueceu a fraternidade!
(Porque faz hoje anos que morreu Zeca Afonso. Uma voz que não esqueço, uma presença que não apago, uma referência constante)
Censura:
http://walkinthebridge.com.sapo.pt/zeca/zeca.htm
Biografia:
http://www.azeitao.net/zeca/
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