MUSEU INTERIOR
Quando me deitei no sofá e comecei a pensar em escrever este texto, achei que devia chamar-lhe “Recordação afectuosa da visita a um museu, seguida de breve reflexão sobre a memória”. Esse era um título impraticável. Razões de espaço – demasiadas palavras (caracteres) – e razões de tom – completamente deslocado do tom geral do texto. Continuando a pensar, pareceu-me que seria interessante ter um título que se afastasse do próprio texto, que enganasse. Talvez, actualmente, os títulos já não tenham a obrigação de sintetizar ou sequer de se relacionarem com o texto que identificam. Talvez, actualmente, a literatura rejeite toda a espécie de obrigações. Ainda assim, o problema do tamanho mantinha-se. Então, pensei em chamar-lhe “Sem título”, copiando a ideia de tantos quadros, esculturas, instalações que se podem encontrar em museus. Quando percebi que o tempo das ironias pouco sofisticadas já lá vai, decidi preocupar-me com o título apenas depois de escrever o texto e de explicar esse dilema num parágrafo introdutório. Aqui está ele a terminar.
Não sei qual foi o primeiro museu que visitei. Sei qual foi o primeiro museu que me lembro de ter visitado: Museu dos coches, excursão da segunda classe.
Passávamos o ano inteiro à espera dessas excursões. Na véspera, custava-nos adormecer. Acordava muito cedo e a esta hora a que escrevo – sete da manhã – já avançava pelas ruas a caminho da escola. Nesse dia, não usava bata e, em vez da mala amarela que o meu pai me deu quando fiz seis anos, levava uma mala cor-de-laranja a tiracolo, que a minha tia tinha trazido da Inglaterra e que a minha mãe tinha enchido com sandes (fiambre ou tulicreme) embrulhadas em guardanapos de pano, uma caixa de plástico com ovos mexidos e salsichas cortadas às rodelas, um garfo embrulhado num guardanapo de pano, fruta e duas ou três latas de leite com chocolate. Esse era o tempo em que havia latas de leite com chocolate. Esse era também o tempo em que havia latas de sumos compal. Tutti fruti. Nesse dia, a minha mãe dava-me uma nota de cinquenta escudos e eu levava algumas das moedas – vinte e cinco tostões, cinco escudos – que amealhava numa bolsa que, curiosamente, a minha mãe tinha costurado com o tecido que sobrara da minha bata da escola e que se fechava com um cordão que a minha irmã – mana – mais velha (estás a ler isto, Zira?) tinha entrelaçado. Quando chegava à escola, a camioneta estava já parada em frente ao portão, os meus colegas e alunos de outros anos já a rodeavam. As meninas bem-comportadas juntavam-se à volta das professoras e olhavam com descrição mal simulada os meus amigos a empurrarem-se junto à porta. Depois da voz das professoras, corríamos pelo corredor da camioneta, como se alguma coisa séria dependesse do lugar onde nos sentávamos. Havia o querermos ficar à janela e havia a enorme diferença entre sentarmo-nos à frente ou atrás. A camioneta tinha um cheiro quente e agoniante – napa amolecida pelo sol. Durante o caminho, cantávamos canções que só se ouviam nessas ocasiões – “Senhor chófer, por favor,/ ponha o pé no acelerador./ Se bater, não faz mal/ vai a malta pró hospital.” – e enjoávamos. As professoras ficavam sentadas nos bancos da frente e era demasiado tarde quando algum aluno chegava ao pé delas e dizia “minha senhora, o fulano está com ânsias”. (Tratávamos as professoras por “minha senhora”) Não faço questão em ser escatológico, mas a verdade é que, passado pouco tempo, em todas as excursões, havia sempre regadeiras de vómito a escorrerem pelo corredor da camioneta e por baixo dos nossos pés. Esses avisos atrasados eram a única justificação que as professoras permitiam para nos levantarmos do lugar. Tirando esses momentos, só nos podíamos levantar quando a camioneta parava na berma da estrada. Os rapazes faziam chichi juntos. As raparigas afastavam-se e faziam chichi juntas. Era assim.
No Museu dos Coches, caminhávamos de mãos dadas e admirávamo-nos com tudo o que as professoras diziam sobre reis, acreditávamos em tudo. Para descrever aquilo que era para nós estarmos ali naquele lugar solene, a olhar para aqueles coches que tinham transportado reis, seriam necessárias muitas metáforas que, agora, neste momento, não me apetece discorrer. Era importante e tenho a certeza de que nos mudou a todos. A seguir, almoçámos – ovos mexidos, salsichas – num banco do Jardim Zoológico. Nesse momento de mais liberdade, alguns rapazes aproximaram-se de um homem que jogava ténis por trás de uma vedação e um dos meus colegas perguntou-lhe se já tinha ganho muitos jogos. Respondeu que já tinha ganho muitas vezes e que já tinha perdido muitas vezes. Houve também de um homem que estava sentado num banco e que nos perguntou de onde éramos. Fui eu que respondi e disse que éramos das Galveias. Eu achava que toda a gente conhecia as Galveias. Nessa altura, apenas tinha a pronúncia do Alentejo. Não dizia “as minhas irmãs”, dizia “as nhas ermãs”. Quase que sou capaz de ouvir-me a mim próprio, com sete anos, a contar a esse homem que éramos das Galveias. Éramos galveenos, como diziam os velhos que se sentavam às portas.
Depois de vermos os animais – o elefante a levar-nos as moedas de vinte e cinco tostões para tocar a sineta, a tromba a tocar-nos na palma da mão – fomos para a Feira Popular. Apesar de ainda ser de dia, havia já muitas diversões a funcionar. As professoras não nos deixavam andar em quase nenhuma e, além disso, muito poucos tinham dinheiro suficiente. Utilizei a nota e as moedas que tinha para comprar prendas inúteis para a minha mãe e para as minhas irmãs. Lembro-me que comprei um corta-unhas à minha irmã mais nova. Sou mesmo capaz de lembrar-me que o corta-unhas tinha o desenho de uma pequena boneca, com uma blusa vermelha e um turbante – isso mesmo, um turbante – verde. Se quisesse, seria capaz de descrever a minúcia do seu rosto e os seus olhos de duas pintinhas.
Hoje, com esta idade, sou capaz de recordar-me com bastante clareza de todos estes pormenores. Caminho dentro de mim com o mesmo espanto e a mesma comoção com que, nessa altura, passeava pelo museu. Hoje, já fui a muitos museus – cujos nomes omito porque seriam referências absolutamente desnecessárias, pedantes e gratuitas; ao pior estilo dos burgueses de Bourdieu que iam/vão a museus apenas para dizerem mais tarde que foram. (Será a referência a Bourdieu, ela própria desnecessária, pedante e gratuita? Terá essa referência a futilidade que ela própria critica?) Seja como for, aquilo que me interessa dizer agora é que, hoje, com esta estranha idade que tenho, ainda me lembro dos pormenores desse tempo longínquo em que ninguém nos queria mal, ninguém nos odiava, e éramos crianças a descobrir mistérios que se tornaram demasiado simples, evidentes. Éramos rapazes e raparigas, da segunda classe e de outros anos, a sonharmos. Entre eles, estava eu. Sei que ao crescer, perdi muito. A partir daqui, ao crescer mais – agora, começará a dizer-se “ao envelhecer” – hei-de de perder mais ainda. Hei-de mesmo esquecer-me de como era esperar o ano inteiro por essas excursões. Por isso, esta idade é estranha. Lembrar-me ainda e saber que vou esquecer. Essa é a justificação que dou a mim próprio para escrever estas palavras. Um dia, irei precisar delas para voltar a lembrar-me. Um dia, serão um mapa para voltar a encontrar o caminho que, hoje – trinta e um anos –, agora – quase nove horas da manhã – ainda sou capaz de encontrar no meu solene e privado museu interior.
José Luís Peixoto
J L
Não sei qual foi o primeiro museu que visitei. Sei qual foi o primeiro museu que me lembro de ter visitado: Museu dos coches, excursão da segunda classe.
Passávamos o ano inteiro à espera dessas excursões. Na véspera, custava-nos adormecer. Acordava muito cedo e a esta hora a que escrevo – sete da manhã – já avançava pelas ruas a caminho da escola. Nesse dia, não usava bata e, em vez da mala amarela que o meu pai me deu quando fiz seis anos, levava uma mala cor-de-laranja a tiracolo, que a minha tia tinha trazido da Inglaterra e que a minha mãe tinha enchido com sandes (fiambre ou tulicreme) embrulhadas em guardanapos de pano, uma caixa de plástico com ovos mexidos e salsichas cortadas às rodelas, um garfo embrulhado num guardanapo de pano, fruta e duas ou três latas de leite com chocolate. Esse era o tempo em que havia latas de leite com chocolate. Esse era também o tempo em que havia latas de sumos compal. Tutti fruti. Nesse dia, a minha mãe dava-me uma nota de cinquenta escudos e eu levava algumas das moedas – vinte e cinco tostões, cinco escudos – que amealhava numa bolsa que, curiosamente, a minha mãe tinha costurado com o tecido que sobrara da minha bata da escola e que se fechava com um cordão que a minha irmã – mana – mais velha (estás a ler isto, Zira?) tinha entrelaçado. Quando chegava à escola, a camioneta estava já parada em frente ao portão, os meus colegas e alunos de outros anos já a rodeavam. As meninas bem-comportadas juntavam-se à volta das professoras e olhavam com descrição mal simulada os meus amigos a empurrarem-se junto à porta. Depois da voz das professoras, corríamos pelo corredor da camioneta, como se alguma coisa séria dependesse do lugar onde nos sentávamos. Havia o querermos ficar à janela e havia a enorme diferença entre sentarmo-nos à frente ou atrás. A camioneta tinha um cheiro quente e agoniante – napa amolecida pelo sol. Durante o caminho, cantávamos canções que só se ouviam nessas ocasiões – “Senhor chófer, por favor,/ ponha o pé no acelerador./ Se bater, não faz mal/ vai a malta pró hospital.” – e enjoávamos. As professoras ficavam sentadas nos bancos da frente e era demasiado tarde quando algum aluno chegava ao pé delas e dizia “minha senhora, o fulano está com ânsias”. (Tratávamos as professoras por “minha senhora”) Não faço questão em ser escatológico, mas a verdade é que, passado pouco tempo, em todas as excursões, havia sempre regadeiras de vómito a escorrerem pelo corredor da camioneta e por baixo dos nossos pés. Esses avisos atrasados eram a única justificação que as professoras permitiam para nos levantarmos do lugar. Tirando esses momentos, só nos podíamos levantar quando a camioneta parava na berma da estrada. Os rapazes faziam chichi juntos. As raparigas afastavam-se e faziam chichi juntas. Era assim.
No Museu dos Coches, caminhávamos de mãos dadas e admirávamo-nos com tudo o que as professoras diziam sobre reis, acreditávamos em tudo. Para descrever aquilo que era para nós estarmos ali naquele lugar solene, a olhar para aqueles coches que tinham transportado reis, seriam necessárias muitas metáforas que, agora, neste momento, não me apetece discorrer. Era importante e tenho a certeza de que nos mudou a todos. A seguir, almoçámos – ovos mexidos, salsichas – num banco do Jardim Zoológico. Nesse momento de mais liberdade, alguns rapazes aproximaram-se de um homem que jogava ténis por trás de uma vedação e um dos meus colegas perguntou-lhe se já tinha ganho muitos jogos. Respondeu que já tinha ganho muitas vezes e que já tinha perdido muitas vezes. Houve também de um homem que estava sentado num banco e que nos perguntou de onde éramos. Fui eu que respondi e disse que éramos das Galveias. Eu achava que toda a gente conhecia as Galveias. Nessa altura, apenas tinha a pronúncia do Alentejo. Não dizia “as minhas irmãs”, dizia “as nhas ermãs”. Quase que sou capaz de ouvir-me a mim próprio, com sete anos, a contar a esse homem que éramos das Galveias. Éramos galveenos, como diziam os velhos que se sentavam às portas.
Depois de vermos os animais – o elefante a levar-nos as moedas de vinte e cinco tostões para tocar a sineta, a tromba a tocar-nos na palma da mão – fomos para a Feira Popular. Apesar de ainda ser de dia, havia já muitas diversões a funcionar. As professoras não nos deixavam andar em quase nenhuma e, além disso, muito poucos tinham dinheiro suficiente. Utilizei a nota e as moedas que tinha para comprar prendas inúteis para a minha mãe e para as minhas irmãs. Lembro-me que comprei um corta-unhas à minha irmã mais nova. Sou mesmo capaz de lembrar-me que o corta-unhas tinha o desenho de uma pequena boneca, com uma blusa vermelha e um turbante – isso mesmo, um turbante – verde. Se quisesse, seria capaz de descrever a minúcia do seu rosto e os seus olhos de duas pintinhas.
Hoje, com esta idade, sou capaz de recordar-me com bastante clareza de todos estes pormenores. Caminho dentro de mim com o mesmo espanto e a mesma comoção com que, nessa altura, passeava pelo museu. Hoje, já fui a muitos museus – cujos nomes omito porque seriam referências absolutamente desnecessárias, pedantes e gratuitas; ao pior estilo dos burgueses de Bourdieu que iam/vão a museus apenas para dizerem mais tarde que foram. (Será a referência a Bourdieu, ela própria desnecessária, pedante e gratuita? Terá essa referência a futilidade que ela própria critica?) Seja como for, aquilo que me interessa dizer agora é que, hoje, com esta estranha idade que tenho, ainda me lembro dos pormenores desse tempo longínquo em que ninguém nos queria mal, ninguém nos odiava, e éramos crianças a descobrir mistérios que se tornaram demasiado simples, evidentes. Éramos rapazes e raparigas, da segunda classe e de outros anos, a sonharmos. Entre eles, estava eu. Sei que ao crescer, perdi muito. A partir daqui, ao crescer mais – agora, começará a dizer-se “ao envelhecer” – hei-de de perder mais ainda. Hei-de mesmo esquecer-me de como era esperar o ano inteiro por essas excursões. Por isso, esta idade é estranha. Lembrar-me ainda e saber que vou esquecer. Essa é a justificação que dou a mim próprio para escrever estas palavras. Um dia, irei precisar delas para voltar a lembrar-me. Um dia, serão um mapa para voltar a encontrar o caminho que, hoje – trinta e um anos –, agora – quase nove horas da manhã – ainda sou capaz de encontrar no meu solene e privado museu interior.
José Luís Peixoto
J L
1 Comments:
Ola
Jose Luis
Parabens , texto bonito , e que se adapata tao bem ao futuro da nosssa cidade, que na ansia de destruição a que se propoem os eleitos da terra, daqui a uns tempos so temos a memoria.
Que e feito do fossil que estava a entrada da Moagem? Seria sem duvida masi valiosos que o espolio etereo da tal Fundaçao, aas maquinas do Cine Teatro? O espolio do Gama Reis?
e outras coisas mais ja so existem na nossa memoria
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