domingo, 24 de setembro de 2006

NÃO APAGUEM A MEMÓRIA [parte II]

Em 24 de Janeiro de 1964 sou preso pela 5.ª vez, quando me encontrava a almoçar na pensão "A Ponte"em que estava obrigado a residir em Ponte de Sor, distrito de Portalegre.

Conduzido para Lisboa, sou encarcerado de novo nas masmorras do Aljube.
Ali permaneço durante dez dias, sem qualquer interrogatório, sem qualquer acusação formal.
Entretanto sou chamado a direcção da P.I.D.E., e o inspector Sachetti obriga-me a escrever pelo próprio punho e assinar uma declaração comprometendo-me a aceitar nova residência fixa e não abandonar o local de residência em que fosse fixada «sob pena de suspensão de ordens sacras e impossibilidade de celebrar missa, conforme o acordo firmado entre o Ministério do Ultramar e a Nunciatura Apostólica de Lisboa».

Recuso-me a escrever a declaração, cujos termos considerava inaceitáveis.
O inspector Sachetti responde-me se não escrevo tal declaração, terei de ficar definitivamente na prisão.
Mantenho a minha recusa e ponho mesmo em dúvida a existência de tal acordo.
[...]
Insisto finalmente em falar com o Núncio Apostólico ou com algum secretário da Nunciatura.
Quando o secretário da Nunciatura chega à P.I.D.E., o inspector Sachetti roga-me que não fale mais na questão do pretenso acordo entre a Nunciatura e o Ministério do Ultramar.
Insisto em levantar a questão e exponho o caso ao secretário da Nunciatura, monsenhor Rotuno.
Este afirma-me, na presença do inspector da P.I.D.E., que tal acordo nunca existiu!

Em 3 de Fevereiro de 1964 sou posto em liberdade (?), mas conduzido a Vilar do Paraíso (concelho de Vila Nova de Gaia), ficando com residência fixa no Seminário da Boa Nova, dos Padres das Missões Ultramarinas.

Movimentos limitados ao concelho de Gaia.
Telefone vigiado, correspondência censurada e visitas controladas.
Agentes da P.I.D.E. e outros colaboradores vigiando dia e noite as portas do seminário e seguindo-me os passos aonde quer que eu fosse.
Nestas condições permaneço em Vilar do Paraíso durante três anos (1964-1967).

Em consequência de uma intervenção pessoal do Papa Paulo VI junto do Presidente da República Portuguesa, aquando da sua peregrinação a Fátima, sou finalmente autorizado a circular livremente por todo o País, sendo-me todavia vedado o regresso à minha terra ou a saída para o estrangeiro.

Joaquim da Rocha Pinto de Andrade

1 Comments:

At 25 de setembro de 2006 às 18:40, Anonymous Anónimo said...

Chiado, Lisboa. Meados do Séc. XX.


Na Rua Garrett, em Lisboa, o Café Chiado é uma gruta mágica.
Para além da estudantada, ali abancam os surrealistas Cesariny de Vasconcelos, António Maria Lisboa, Alexandre O’Neill e Mário Henrique Leiria. Também os artistas plásticos Ribeiro Pavia, João Abel Manta, António Alfredo, o escultor José Dias Coelho. E ainda dois pretinhos angolanos, o Agostinho Neto que estuda Medicina e o Mário Pinto de Andrade que estuda Filologia Clássica, juntamente com o seu irmão Joaquim.
O Agostinho é cara de pau, estou em crer que os seus lábios jamais ameaçaram sorrir. Justamente o contrário do Mário, que dá tudo o que pode por uma boa gargalhada. A este faço a vontade. Estamos em Janeiro de 1951 e faz muito frio. Digo, para quem me queira ouvir:



- Quem vir um sobretudo pelo de camelo a andar sozinho pela Rua Garrett, detenha-o e espreite lá para dentro. Verá, todo encolhido, um pretinho que atende pelo nome de Mário Pinto de Andrade.



À minha volta, o Mário e a restante malta desmancham-se a rir. Excepto o Agostinho, obviamente.



Insisto, quero verificar as diferenças até ao fim. Há um frequentador do Café, um homem de meia idade, com físico e cara de Buda. Tem um parafuso desapertado. Se ninguém lhe dá palavra, fica as tardes a contemplar uma chávena vazia de café. Chamo-lhe Sr. Engenheiro mas não sei se engenheiro ele é. Meto conversa, gosto das suas respostas que, normalmente, perdem o norte.



- Então, Sr. Engenheiro, onde é que foi ontem?

- Ontem fui à Feira Popular.

- Fazer o quê?

- Fui à montanha russa.

- E depois?

- Aquilo subiu, subiu, subiu e, lá no alto, parou.

- E depois?

- Depois começa a descer, a descer, a descer, ai que aflição.

- E depois?

- Depois chego cá abaixo e como um bife com batatas fritas.



Gargalhadas, o Mário mais que todos. O Agostinho continua impávido, rigidez.



Sussurro ao ouvido do Alexandre O’Neill:

- Estes dois angolanos são muito diferentes um do outro. Um dia destes ainda vão andar à batatada, é inevitável.

- Fernando, lá estás tu com a mania de adivinhar o futuro...

- A ver vamos se é mania ou intuição...

 

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