quarta-feira, 4 de outubro de 2006

OBVIAMENTE, DEMITO-O



Na história da oposição ao regime, há o antes e o depois de Delgado".
O historiador José Manuel Tengarrinha não o faz por menos, ao analisar as mudanças produzidas pela candidatura presidencial do "General sem medo", em 1958.
A partir de então, alterou-se o paradigma dos movimentos oposicionistas. E o salazarismo foi obrigado a blindar-se, para evitar novos sustos.


Humberto Delgado, cujas comemorações do centenário do nascimento terminam hoje no Panteão Nacional, tornou-se o condutor de um vasto movimento de oposição, apesar de ter pouca preparação política. A que tinha, aliás, era a menos recomendável poucos anos antes, dera loas ao chefe do Governo e ocupara lugares de confiança do regime. Contudo, corporizou uma torrente popular que surpreendeu mesmo quem o rodeava.

Muito antes da famosa frase "Obviamente, demito-o", proferida numa conferência de Imprensa, em resposta à pergunta sobre o que faria com Oliveira Salazar se vencesse as eleições, já o staff de campanha pressentira que escapava aos cânones tradicionais de actuação. "Ninguém teve a noção de que a candidatura ganharia as proporções que ganhou", reconhece Tengarrinha, então jornalista do "República" e ele próprio membro de uma comissão de apoio.


Corajoso e determinado, o mais jovem general do país saiu dos salões para as ruas. Um evidente contraste com as duas experiências frustradas de via eleitoral para derrubar o Estado Novo, protagonizadas por Norton de Matos e Quintão Meireles, que se acentuaria com o facto de a candidatura de 1958 ir até ao fim.


Delgado andou pelo país no meio do povo. Camponeses analfabetos, recorda Tengarrinha, interceptavam o seu carro para lhe beijar a mão, "vendo nele um salvador".
Nas cidades como nas aldeias, perdeu-se o medo da repressão.
As ruas encheram-se de gente, num ímpeto tão espontâneo quanto incontrolável.

A campanha daria assim vazão ao descontentamento social que, desde o pós-guerra, grassava no país.
À insatisfação da classe média urbana e da lavoura, que viera ao de cima, avulsamente, em greves e protestos - ou através de vagas de imigração - juntava-se a fragilização interna do regime, que enfrentava dissidências.
Como a do próprio militar convertido em porta-voz do anti-salazarismo, que se foi transformando ao longo da campanha. "A população convenceu-se de que, desta vez, era possível a viragem".
Não foi, mas nada ficou como dantes.



Repressão mais feroz

O regime tratou, na ressaca das fraudulentas eleições, de alterar a Constituição, para introduzir o sufrágio indirecto na candidatura presidencial.
A repressão de opositores políticos tornou-se ainda mais feroz.
No campo da "Situação", acentuaram-se as divisões, sobretudo entre os militares, que não gostaram da forma como um dos seus foi compulsivamente afastado.
O "golpe Botelho Moniz", em 1961, é desse sentimento a expressão.

A candidatura de Delgado teve também o condão de mudar o perfil da oposição, que a partir de 1958 seria qualitativamente diferente.
Desapareceram os inconsequentes golpes palacianos.
Quem lutava contra o regime convenceu-se de que se atravessava uma situação pré-insurrecional.
Isto é de que estariam maduras as condições para que um levantamento popular apeasse Salazar.

Na década de 60, sucederam-se tentativas de golpe mais estruturadas.
A guerra colonial abateu-se sobre o regime, agora desafiado também pelo movimento estudantil e por grupos de acção directa.

O general, forçado ao exílio, não se libertará jamais do que José Manuel Tengarrinha caracteriza como "voluntarismo vulcânico".
Sem perceber que a emoção da campanha eleitoral não seria reproduzível noutro contexto, convenceu-se de que "bastaria regressar a Portugal à frente de uma pequena força para que o povo aderisse".

O "voluntarismo vulcânico" de Delgado, uma permanente sede de acção, ajuda a explicar os conflitos em que se envolveu com as correntes políticas agrupadas na Frente Patriótica de Libertação Nacional ou o regresso clandestino ao país, para se juntar aos conspiradores de Beja.
Numa certa ingenuidade política, por outro lado, se inscreve a pouca sensata deslocação a Espanha, apesar dos avisos, que acabaria por custar-lhe a vida.


Paulo Martins