sexta-feira, 20 de outubro de 2006

OS CADERNOS

Dentro de si, naquele momento, ele era como o xerife John Chance, exactamente da maneira como John Wayne o interpretou em Rio Bravo. A sua sombra era a personagem de Dean Martin nesse mesmo filme. Ali, na sala, aquele momento da manhã estava para um final de tarde de Outubro da mesma maneira que Le Père Goriot, de Balzac, está para o Rei Lear, de Shakespeare. A mãe dele, na penumbra das portadas, tinha um olhar que facilmente se poderia imaginar no rosto de Napoleão no Inverno de 1814. Apesar disso, havia um ambiente que arrastava o tempo de um prelúdio de Debussy (possivelmente Le Vent dans la Plaine) porque, afinal, eram filho e mãe. Afinal, ele era um homem que, antes do início da sua vida, tinha estado dentro daquela mulher, a partilharem sangue, ar e pensamentos.
Então, as palavras começaram a suceder-se na voz dele. Foi como se tanto ele, de pé, misturado com o lusco-fusco, como ela, na poltrona zangada de veludo, apenas ouvissem. Para ele, foi como se a sua própria voz não lhe pertencesse, como se existisse o seu corpo, existisse a sua alma e, depois, ao lado, dentro de outro molde, existisse a sua voz. Em tom de pesar, disse que foi ele que roubou os cadernos do pai. Disse que a mãe podia parar de acusar a menina Leonilde. Tinha vendido os cadernos em troca de quase nada para pagar dívidas de jogo. Dentro dessa palavra, jogo, estava um candeeiro a condensar luz em blocos maciços de fumo de cigarros numa sala de janelas fechadas, trancadas. Ele pousou as pálpebras sobre os olhos para ver essa imagem.
A mãe não disse nada logo nesse instante. Esperou. Esse instante, foi uma vertigem em que várias memórias se precipitaram sobre ela. Cravou as unhas nos braços da poltrona e viu o rosto do marido na madrugada em que o sentiu gelado e morto na cama. Tinham passado poucos meses sobre essa madrugada. Poderiam passar décadas, vidas completas. Ao mesmo tempo, com os dentes cerrados, viu a sucessão de todas tardes em que o marido se sentou na varanda, com cadernos pousados no colo. Ao longo dos anos, a pouco e pouco, os cadernos encheram todas as prateleiras do escritório, desde o chão até ao tecto. Quando era vivo, mesmo até à véspera de acordar morto, o marido costumava dizer o seu próprio nome de família, composto, sublinhado, parava para ouvir o seu eco, e costumava dizer que os cadernos haveriam de pertencer aos seus netos e aos netos dos seus netos. Depositava grande fé nessa convicção. Alimentava-a com todos os auto-incentivos porque era assim que se justificava a si próprio. Precisava de acreditar que os anos em que não tinha visto o filho crescer, ou os voos das aves sobre o jardim no princípio de cada primavera, ou os bailes quando ainda podia, ou as noites, ou as horas de sol que tinha perdido, eram largamente compensados pela aprovação dos homens futuros. Às vezes, deixava escapar pedaços dos seus sonhos: seria referido em enciclopédias, seriam publicados compêndios sobre a sua obra. Os cadernos tinham sido o trabalho que o animara desde a adolescência. Casara-se por acaso. Tivera um filho sem saber como. Almoçava e jantava. Nos cadernos, com entusiasmo vivo, tirava notas de todos os livros que lia, de todos os filmes que via, de todas as músicas que ouvia. Milhares de livros, milhares de filmes, milhares de horas de música. Nas páginas, havia nomes e datas, citações e referências.
Depois, a mãe teve a noção aguda daquele momento presente. O passado enorme e o futuro infinito perderam a importância e, dentro de si, no silêncio, cresceu uma possibilidade de melodia que não reconheceu, mas que era decalcada de uma lembrança da Suite número 2, do opus 4, de Béla Bartók. Só ela podia ouvi-la, mas não pensava nisso porque procurava palavras que, se as tivesse encontrado, seriam semelhantes às que Jean Gabin imortalizou em Pépé, Le Moko, sempre que falava de Paris. O filho esperava e entretinha-se enredando raciocínios que, na forma, coincidiam exactamente com a erudição do pai de Tristram nas páginas de Tristram Shandy, de Laurence Sterne. Na aparência, no entanto, aquele instante de mãe e filho em absoluto silêncio, imóveis, tinha a leveza gentil de uma cena qualquer, qualquer, de Laura, filmado em 1944 por Otto Preminger e por Rouben Mamoulian.
A tensão inicial tinha sido totalmente dissolvida na pele dos seus rostos. O filho aceitaria tudo o que a mãe poderia ter para lhe dizer. Nenhum ressentimento, por mais profundo, poderia ultrapassar a culpa que quase o tinha destruído na última semana. Assistir ao modo como a mãe, por momentos, deixara de ser senhora para insultar a menina Leonilde, fora apenas uma parte pequena da tristeza ácida que desgastava o seu silêncio repetido. Ali, estava pronto. Que viesse um destino.
A mãe tossiu pausadamente para limpar a garganta. Antes da primeira palavra, houve um momento de fronteiras nítidas que foi igual ao compasso que antecedeu as primeiras palavras do presidente Truman na Conferência de Potsdam, foi um momento feito de Liszt (concertos para piano 1 e 2), foi uma descrição inteira de Henry James em Retrato de uma Senhora, foi todos os meses de Trés Riches Heures, dos irmãos Paul, Hermann e Jean Limbourg.
E a mãe disse simplesmente que não fazia mal, que compreendia. A sua voz era sumida como as palavras gastas nas páginas de um livro fechado há muitos anos. Logo a seguir, o filho não entendeu os seus próprios movimentos. Abriu a janela e a claridade inundou as paredes vazias da sala. As cortinas desapareceram. Mãe e filho sorriram um para o outro, de novo dentro de um silêncio confortável. Não houve um vinco mínimo ou uma única prega na transparência daquela manhã. O filho respirou, saiu e pensou que noutro dia, em breve, lhe contaria que foi também ele que levou o serviço de chá.

José Luis Peixoto
JL