domingo, 15 de outubro de 2006

BASTA

Em política, gosto daquelas frases curtas, incisivas, que, por dizerem o suficiente e o necessário, ficam para a história: o “obviamente, demito-o”, de Humberto Delgado acerca de Salazar, ou o ‘basta’ que Sócrates foi agora dizer à Madeira, sobre o eterno Carnaval financeiro de Alberto João Jardim. Como escreveu Eduardo Prado Coelho, foi um ‘basta’ recebido com alívio por todos os portugueses. Eu acrescentarei que não foi por todos (para minha grande surpresa, há portugueses do continente que parecem votar ao dr. Jardim uma espécie de indulgência plenária, como se a sua intangibilidade e irresponsabilidade fizessem parte do museu da República). Mas os outros, entre os quais me incluo, também não receberam a frase de Sócrates apenas com alívio: receberam-na com a satisfação de ver que pela primeiríssima vez parece haver quem se disponha a fazer aplicar o princípio de que todos são iguais perante a lei, pondo fim ao estatuto de excepção em que Jardim governa e a Madeira vive. Como se fosse, não uma ilha, mas um clube à parte.

Creio, sinceramente, que os que manifestam tanta indulgência com o sistema-Jardim de governo não devem ser grandes pagadores de impostos. Tanto lhes faz que, ano após ano, ele gaste o que não tem, que despreze todos os compromissos financeiros que assina com o Governo da República, que se esteja nas tintas para o que diz o Tribunal de Contas, que reclame do Estado o pagamento das dívidas que vai acumulando e que exija subsídios de região pobre, sem o ser já. Pouco lhes importa, porque seguramente o dinheiro para os desmandos financeiros do dr. Jardim não sai dos seus bolsos nem é fruto do seu trabalho. Esses, que acham que exigir responsabilidades financeiras ao governo da Madeira é atentar contra a autonomia constitucional da Região, representam a mentalidade instalada na maioria dos portugueses e que é hoje, talvez, o principal factor do nosso atraso: a crença de que o Estado deve tudo a todos, mesmo que não receba de todos o que lhe é devido; que em todas as regiões, todas as autarquias, todos os sectores socioprofissionais, todas as actividades culturais ou desportivas, existem sempre excelentes razões atendíveis para não negar o dinheiro do Estado; até porque o dinheiro do Estado, sendo de todos, não é de ninguém, e provém de uma fonte misteriosa e inesgotável, como o petróleo dos árabes, e que apenas é alimentada em parte pelo dinheiro de alguns idiotas que declaram todos os rendimentos e pagam os impostos até ao último tostão. Seguramente que aqueles que acham muita graça ao dr. Jardim não estão habituados a sofrer com os impostos.

Felizmente para o país e infelizmente para Jardim, as coisas parecem estar agora finalmente a mudar. Não é mais possível, a este e a nenhum governo, ter a carga fiscal ao nível que já temos, exigir sacrifícios para pôr na ordem as contas públicas e terminar com a iniquidade geracional que é ter um país com a dívida pública sucessivamente agravada, e ao mesmo tempo continuar a consentir, por razões de oportunidade política, na imoral gestão financeira da Madeira, de algumas autarquias e de sectores da administração pública. Todos instalados numa espécie de estranho direito adquirido a poderem gastar livremente o que bem entendem e depois reclamar que os outros lhes paguem as contas.

A partir de agora, e muito bem, a Região Autónoma da Madeira (e os Açores) receberá as verbas de solidariedade que, além de contemplarem o factor de distância e de isolamento, correspondam ao seu nível actual de riqueza, que é 21% acima da média nacional; deixará de ter as suas dívidas cobertas pelo aval da República, o que obrigará a banca a ter cautelas que até aqui dispensou; e, se se endividar para lá do que a lei permite, perderá no ano seguinte verbas do Governo central correspondentes a esse montante. Terminam assim os tempos em que o dr. Jardim, chantageando com os votos dos seus deputados-marionetas na Assembleia da República ou nos congressos do PSD, obtinha dos governos o perdão da dívida, com a solene promessa de ser a última vez - para logo recomeçar no ano seguinte, ao ponto de ter dobrado a dívida entre 2001 e 2005. Terminam os tempos em que, de três em três meses, o dr. Jardim vinha a Lisboa sacar ao ministro das Finanças uns dinheiros avulsos para despesas extra-orçamento e, uma vez com o dinheiro no bolso, regressava ao Funchal para destilar ameaças e insultos dirigidos ao ‘continente’, naqueles comunicados terceiro-mundistas que gosta de redigir, em acumulação com os seus editoriais no ‘Jornal da Madeira’ - o último jornal público do país, que existe para servir a propaganda do dr. Jardim, com os prejuízos a serem pagos pelo ‘continente’, como ‘custos de insularidade’.

A partir de agora, o invejável estilo ‘chinês’ de governação de Jardim (um país, dois sistemas: o regime tem o pior do capitalismo, o Estado tem o pior do socialismo), vai ter de se habituar a viver com as regras do mercado e as da gestão de coisa pública. E agora, agora sim, é que se vai ver se ele sabe governar ou se não passa de um diletante. Agora é que se vai ver se ele é capaz de ganhar eleições sem poder aliciar os eleitores com o saco sem fundo de dinheiro que sempre teve ao dispor.

À força de abusar no regabofe financeiro e nos insultos em todas as direcções, o dr. Jardim cansou as pessoas. Já não há pachorra para ele, o que diz já não chega às primeiras páginas nem faz rir ninguém, as ameaças veladas de separatismo dos seus patéticos acólitos deixam os portugueses absolutamente indiferentes, os insultos já não ofendem ninguém de tão desclassificado que está o autor, e os seus apelos a quem outrora, de barriga cheia, chamava ‘o sr. Silva’ e ‘o sr. Mendes’, já só inspiram desprezo. Num momento em que os portugueses começam enfim a perceber que não é possível viver eternamente acima das suas possibilidades, o exemplo de más maneiras do dr. Jardim, gastando alegremente o dinheiro dos outros sem travão e sem prestação de contas, chamando a isso ‘autonomia’, e ainda sendo pobre e mal agradecido, deixou de ter graça e de ter desculpa.

E é porque percebeu isso, porque percebeu que, pela primeira vez, está como a jibóia que perdeu o poder hipnótico e não sabe como há-de continuar a caçar, que ele anda manifestamente desesperado. Aqui para nós, e como contribuinte, confesso: só isso, de o ver assim desesperado porque lhe fecharam a torneira dos dinheiros públicos, dá-me tanto gozo que quase me compensa de anos e anos a ajudar a pagar as suas 27 vitórias eleitorais consecutivas
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Miguel Sousa Tavares

4 Comments:

At 15 de outubro de 2006 às 23:46, Anonymous Anónimo said...

Dê-se conhecimento ao visado, com cópia para o secretário-geral da OUA.

 
At 17 de outubro de 2006 às 11:34, Anonymous Anónimo said...

viva salazar

 
At 18 de outubro de 2006 às 14:44, Anonymous Anónimo said...

Grande artigo;parece que fica aqui escrito tudo aquilo que o País pensa sobre a "republica à parte"; que vergonha ainda termos uma situação destas para resolver, mas resolva-se então;
Já o sr.tavares,fica bem na fotografia ao escrever desta forma directa e verdadeira, contrastando muitas vezes com os tiques nortenhos que tem (lembram-se aqui hà 2 anos, quando o fcp começou a perder tudo na champions e no campeonato?era ver o sr. tavares a comentar o torneio de wimbledon!priceless)

 
At 19 de outubro de 2006 às 13:47, Anonymous Anónimo said...

O que é feito da classe operária, a vanguarda do proletariado?

Em pouco mais de uma dúzia de anos os empresários portugueses, que nem são famosos pela sua inteligência, para se ver um sindicalista é necessário que encerre uma fábrica têxtil para que possamos ouvir falar de sindicalistas, e quando isso sucede lá aparece alguém com uma pasta e com ar de caixeiro-viajante a dar a entrevista da praxe.

Não há sinal de uma única luta sindical em empresas privadas, na banca (onde os lucros crescem na proporção inversa dos salários) o ambiente parece ser de harmonia, ó único metalúrgico no activo parece ser Jerónimo de Sousa, dos heróicos trabalhadores rurais da reforma agrária só se ouve falar quando as autarquias os leva a passear de avião, na construção civil (onde vale tudo menos tirar olhos) vive-se em paz laboral. Os grandes sindicatos são agora os dos trabalhadores do Estado.

O PCP tem hoje mais influência entre os polícias do que tinha no meio dos metalúrgicos, tem maior capacidade de mobilização de professores do que de trabalhadores rurais, que quando participam de manifestações é para conduzir os tratores dos proprietários rurais descontentes com o ministro da Agricultura. Mesmo em sectores onde o sector privado convive com o público, só ouvimos falar de sindicatos nas empresas públicas, como se os trabalhadores do sector privado vivessem no paraíso, os trabalhadores das empresas públicas de transportes fazem greve e são os trabalhadores das empresas privadas que conduzem os alternativos.

Os empresários portugueses, que nem são famosos pela inteligência, conseguiram derrotar o PCP e os seus sindicatos? A concentração de esforços do PCP nas estruturas do Estado resulta de um recuo e perda de influência no sector privado, de uma estratégia política ou dos dois fenómenos?

É evidente que é mais fácil enfraquecer governos com greves na Função Pública do que em empresas privadas, que é mais fácil manter estruturas laborais com sindicalistas pagos pelo Estado do que em empresas privadas, que se tem maior protagonismo nos médias provocando instabilidade no Estado do que com uma greve numafábrica de parafusos da Moita. Além disso, a fragilidade das nossas empresas privadas não permite grandes agitações e nos sectores que vivem desafogadamente o PCP (como a banca e os seguros) quase foi banido, nem mesmo numa PT e que nem se sabe qual vai ser o dono se vê grande actividade sindical, para além de umas audiências gentilmente concedidas pela ANACOM.

No Estado não há o risco de a fábrica fechar, nas traseiras do gabinete do ministro há uma imensa máquina de fazer dinheiro que trabalha dia e noite, os contribuintes suportam tudo, e quanto pior estiver a situação financeira maiores serão os motivos para desencadear lutas gloriosas. O Estado tem o patrão mais dócil e simpático, os contribuintes.

Até que venha um governo de direita arrumar a casa, fazer tudo o que o Compromisso Portugal exige, e quase aposto que nessa altura vai suceder ao sindicalismo do Estado o mesmo que já sucedeu na privada. E no fim ainda consegue duas maiorias absolutas, como sucedeu com Cavaco Silva.

É bom lembrar que quando a Manuela Ferreira Leite ameaçou avançar para os despedimentos dos funcionários não faltaram sindicalistas a fazer xixi nas calças e a recomendar calma aos funcionários públicos.

 

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