INOCENTE
Pelo que tenho lido, Souto Moura vai abandonar as suas funções de procurador-geral da República sentindo-se amargurado e injustiçado. As suas queixas vão desde a incompreensão sobre o que foram as suas funções e o seu trabalho até ao massacre de que terá sido vítima por parte da comunicação social, passando pela falta de verbas com que se debateu e que terá levado inclusive a que o seu automóvel de serviço se tenha avariado, por falta de manutenção, a caminho de uma cerimónia oficial. Tudo conduzindo a esta afirmação em que ele resume o essencial dos seus seis anos à frente do Ministério Público: se pudesse voltar atrás, o que ele faria de diferente era contratar uns duzentos profissionais para se ocuparem da sua imagem e relações com a imprensa. Nada mais.
Ora, não me parece que o dr. Souto Moura tenha má imagem, em termos públicos. Olha-se para a cara dele, como me ensinaram a fazer em pequeno, e vê-se um homem sério, culto, com valores, com sentido de serviço público e empenhado em fazer o melhor que pode. É certo que não tem grande jeito para falar à imprensa, sobretudo ‘a quente’ e sobre as questões ‘quentes’. Mas isso não é determinante: não se pode confundir a maneira como se transmite a mensagem com o próprio conteúdo da mensagem. O problema com Souto Moura é que ele não fala bem mas também não teve nada de bom para nos dizer, durante seis anos. Herdou uma PGR transformada em instrumento de combate político pelo seu antecessor e deixou as coisas correrem assim, porque confundiu o autoritarismo, de que não gosta, com o exercício da autoridade, que se lhe impunha.
O Ministério Público que Souto Moura deixa em herança é um corpo autónomo e exógeno à sociedade democrática, que funciona sem rei nem roque, sem autoridade interna ou externa que defina a sua orientação e prioridades, que limite os seus abusos e que penalize o mau trabalho. Não contesto a independência e a irresponsabilidade das decisões judiciais dos magistrados do Ministério Público, a grande maioria dos quais não duvido que sejam profissionais sérios e competentes. Mas contesto a total autonomia e irresponsabilidade funcional em que vive, como se não fosse um corpo hierarquizado e não devesse satisfações a ninguém. Perante a complacência e demissão de Souto Moura, o Ministério Público deixou de ter por fim primeiro a representação do Estado e do interesse público para passar a ser uma corporação que, primeiro que tudo, se representa a si própria e aos seus interesses, que actua como se fosse um poder constitucional autónomo, em pé de igualdade com os restantes, e que é comandado não pelo procurador mas pelo Sindicato.
Por deformação profissional ou por distracção - não por má-fé -, escaparam a Souto Moura coisas muito graves que se passaram naquela casa durante o seu mandato. É verdade que tudo principiou com o caso Casa Pia, mas não é verdade, ao contrário do que ele diz, que só porque ‘notáveis’ começaram a ser incomodados é que se passou a ouvir críticas. Os ‘notáveis’ tiveram a vantagem de expor publicamente os métodos de investigação e actuação do Ministério Público, que até aí nunca tinham sido verdadeiramente escrutinados pela opinião pública: foi uma excelente oportunidade para o Ministério Público poder mostrar como funcionava bem ou, inversamente, para nos deixar por vezes espantados com a leviandade dos seus métodos. Aquela afirmação de Souto Moura, aliás, tem tanto de demagógica quanto de insensível: há alturas em que ser ‘notável’ é uma desvantagem e não uma vantagem - e uma acusação de pedofilia é uma delas. Pessoalmente, acho que, perante crime tão abjecto, ninguém sobrevive sequer às suspeitas, mesmo que venha a ser inocentado. Mas uma coisa é ser um Zé Povinho que, declarado inocente ou culpado, pode sempre mudar de terra depois e recomeçar a vida onde ninguém o conheça; outra coisa é ser um Carlos Cruz, que, mesmo que consiga provar a sua inocência, tem as vidas pessoal e profissional destruídas para sempre. Veja-se Ferro Rodrigues, cuja carreira política foi sepultada pelas suspeitas, nunca confirmadas e veiculadas para a imprensa pelos investigadores.
Neste campo, houve um incidente gravíssimo, que Souto Moura nunca percebeu que tinha de ter consequências disciplinares, e se calhar criminais, graves. Refiro-me ao episódio da caderneta dos ‘notáveis’ - onde constavam apenas fotografias de políticos e jornalistas (nenhum magistrado, claro!) - exibida às vítimas da Casa Pia, a ver se estas, por acaso e ainda que por vaga semelhança, identificavam alguém que tivesse abusado delas. Um método de investigação de ‘pesca por arrasto’, cuja probabilidade de incriminar um inocente é de tal forma chocante que quem quer que se tenha lembrado dele não pode, simplesmente, continuar a exercer funções de investigador e acusador em processo-crime.
Já no caso do ‘Envelope 9’, mais uma vez Souto Moura não quis perceber que o grave não foi que um jornal tenha denunciado o facto de todas as altas instâncias políticas do país terem a sua lista de telefonemas pessoais junta ao processo Casa Pia, por simples pedido de um magistrado do Ministério Público e sem que se entendesse a lógica disso. Não percebeu que a gravidade estava no facto em si mesmo e não na denúncia dele, conforme era dever do jornal. E, por isso, entendeu a cominação de Jorge Sampaio como um pretexto para perseguir os jornalistas e não para esclarecer o assunto e punir os responsáveis. E entendeu a ‘urgência’ exigida por Jorge Sampaio não como uma exigência do Estado democrático mas como um prazo judicial, para ir protelando sucessivamente, conforme costuma fazer o Ministério Público. À vista de todos, desobedeceu tranquilamente ao Presidente e afrontou a opinião pública, certo de que, como em tudo o resto, a corporação a que pertence goza de total impunidade e irresponsabilidade.
Nem duzentos consultores de imagem lhe poderiam explicar que o que falhou não foi a imagem mas a substância e o personagem.
Miguel Sousa Tavares
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