domingo, 26 de novembro de 2006

MÁRIO CESARINY 1923 - 2006

O Álvaro gosta muito de levar no cu
O Alberto nem por isso
O Ricardo dá-lhe mais para ir
O Fernando emociona-se e não consegue acabar.

O Campos
Em podendo fazia-o mais de uma vez por dia
Ficavam-lhe os olhos brancos
E não falava, mordia. O Alberto
É mais por causa da fotografia
Das árvores altas nos montes perto
Quando passam rapazes
O que nem sempre sucedia.

O Fernando o seu maior desejo desde adulto
(Mas já na tenra idade lhe provia)
Era ver os hètèros a foder uns com os outros
Pela seguinte ordem e teoria:
O Ricardo no chão, debaixo de todos (era molengão
Em não se tratando de anacreônticas) introduzia-
-Se no Alberto até à base
E com algum incómodo o Alberto erguia

[...]

Mário Cesariny de Vasconcelos
9 de Agosto de 1923 - 26 de Novembro de 2006

7 Comments:

At 27 de novembro de 2006 às 12:23, Anonymous Anónimo said...

A última entrevista de Mário Cesariny

Na ditadura, Mário Cesariny descobriu com Alexandre O´Neill a revolução surrealista. Foi considerado suspeito de vagabundagem pela Polícia Judiciária e cultivou a homossexualidade sem medo. Viveu para a liberdade, o amor e a poesia, a bandeira dos surrealistas. Galardoado pela obra escrita e pela pintura, aos 83 anos continua na mesma.

Mário nasceu em Lisboa, em 1923. Como era a sua vida familiar?
Era a de uma família respeitável, com quatro filhos. O meu pai era industrial de ourivesaria. Ele e a minha mãe não se davam muito bem. Foi um mau casamento.

Posso contar essa história, que é engraçada. A minha mãe, juntamente com a minha tia Henriette e o meu avô [Pierre Marie] Cesariny Rossi chegaram a Lisboa, de
passagem para a América do Norte. Elas não sabiam uma palavra de inglês, mas queriam ir para lá ensinar não sei o quê.

Nessa altura, havia as chamadas institutrices, raparigas que
tratavam das crianças, mas não como criadas – também eram
professoras, ensinavam línguas e bons modos. A tia Henriette e
a minha mãe fizeram isso em Espanha, durante bastantes anos. Ensinavam Francês e coisas assim.

Chegaram a Lisboa e ficaram por cá. Tornaram-se professoras num colégio, onde conheceram o meu pai e o meu tio. Para casar a minha mãe exigiu uma prenda de infanta. Sim, casava, mas queria uma prenda muito grande.

Um dote?
Queria que fossem viver para Paris. O meu pai concordou.
Casaram e foram, em 1914. Chegaram lá, rebentou a guerra e
voltaram para trás. Nós não nascemos em Paris por causa
da Primeira Guerra Mundial.

Que recordações guarda da sua infância?
O meu pai era de uma família de ourives do Norte. Gostavam
de passar férias de Verão em Moledo do Minho, perto de Caminha, quase na fronteira.

O Norte era muito livre de costumes.
Rapazes e raparigas f.... Só o padre é que ralhava com elas,
à saída da missa. Eu assisti a isso, ele dava-lhes caneladas e
dizia: ‘Vais para o mato com eles...’ Elas riam-se. Não me dei bem com o meu pai, claro. Nenhum de nós se dava bem com
ele.

Quando casou com a minha mãe, gostava muito dela, mas
depois não sei o que aconteceu. Talvez fosse o feitio dele. Batia-lhe. Éramos quatro filhos atrás da mãe, a defendê-la do pai.

Ele chegou a bater-lhe à vossa frente?
Sim, mas gostava dela, à sua maneira. Tenho a impressão de
que a minha mãe casou com ele na mira de ir para Paris.

É verdade que o seu pai queria que fosse ourives?
Pois queria. Isso foi uma grande luta. Depois também não me
deixou seguir música. Quando fazia exercícios ao piano, ele ficava
doido. Tive de desistir.

Chegou a estudar com o Fernando Lopes-Graça…
O Graça dava-me lições de graça. O paizinho não pagava isso.

A relação com o seu pai era, portanto, complicada.
Era impossível. Tudo o que ele me propunha, eu não queria.

E com a sua mãe, como era?
A mãe foi uma santa. Devo-lhe tudo, protegeu-me sempre.

O Mário teve três irmãs.
A Henriette, a Carmo e a Luísa.

Além de ser o mais novo, era o único rapaz…
Era. E ainda por cima saí homossexual, imagine.

Acha que o seu pai soube?
A minha mãe protegeu-me sempre, nunca se falou nisso com o
meu pai. Mas acho que sabia. Uma vez mandou-me às p... e eu
não fiz nada.

Muitos anos depois, o meu cunhado mandou-me
a uma menina e eu portei-me bem, mas vim de lá com
uma dúvida horrível. Dei duas de seguida, sem prazer nenhum,
e pensei que talvez acontecesse o mesmo às pessoas que
iam comigo.

Depois da primária, foi para a Escola António Arroio...
Antes disso, estive um ano no Liceu Gil Vicente, mas não era
para seguir carreira, era para o meu pai saber se eu era estúpido
ou não, se tinha boas notas.

E tinha?
Tinha. Depois ele tirou-me de lá.

Como é que o Mário chegou à Escola António Arroio?
O meu pai primeiro pôs-me lá para tirar o curso de cinzelagem.
E tirei. Depois mudou-se isso para um curso de habilitação às Belas-Artes, por minha iniciativa. A escola tinha um bom director, o Falcão Trigoso, um velhote de barbicha que pintava amendoeiras floridas e coisas assim, mas que nos defendeu
da mística do Salazar.

Quando, por fim, o Salazar o pôs na rua, no dia seguinte entraram os uniformes da Mocidade Portuguesa, a separação dos sexos, as aulas de moral... Mas nós já estávamos precavidos por esse director.

Foi na António Arroio que conheceu a trupe surrealista?
Quase toda. O António Maria Lisboa não andou lá, nem o Pedro
Oom, nem o Risques Pereira. O Cruzeiro Seixas, sim, o Fernando José Francisco, sim. Não me lembro de mais…

Foi lá que desenvolveram as primeiras actividades?
O Café Hermínius é que era a nossa academia.

Como é que surgiu o movimento surrealista em Portugal?
Não havia bem movimento, havia um grupo. Movimento não
se podia ter, por causa do Salazar. Foi uma época difícil para
quem pintava. Foi difícil para toda a gente, com a ditadura,
não é?

Não havia galerias para expor, a não ser a do Estado – o
Secretariado Nacional de Informação – e a dos velhotes conservadores – a Sociedade de Belas Artes. Nenhum desses salões nos convinha. A pintura passou a ser uma coisa pessoal,
para nós. Nem pensávamos em expor.

Era sobretudo uma manifestação da vossa liberdade…
Lembro-me que, uma vez, na primeira exposição que fizemos,
em 1949, resolvemos fazer uma noite dos poetas, num aposento
muito engraçado, todo forrado com figuras, que era da
Pathé-Baby, ali ao pé da Sé Catedral. Lemos poemas do Victor
Brauner, do André Breton, do Antonin Artau e alguns nossos.

Com uma certa encenação. Estilhaçámos uma data de vidros
no chão e deitámos tinta. Mas a encenação, grande ou pequena,
era só para nós, porque não foi lá ninguém, nem nós queríamos que fosse. Fechámos a porta à chave. E assim continuámos.

A imprensa de Lisboa não dedicou uma linha à nossa exposição, mas a do António Pedro e do então Grupo Surrealista de Lisboa causou um escarcéu desgraçado. Até apareceu no jornal sonoro. O António Pedro tinha muitos conhecimentos, assustava muita
gente, nós não assustávamos ninguém …

A ideia de fazerem para vocês tinha só a ver com o ambiente
da época ou, no fundo, queriam mesmo que fosse assim?
Nós fizemos uma revolução. Mas acho que implodimos, não
explodimos. E andámos sempre clandestinos por aí. Clandestinos
no sentido lato: fazer uma coisa num sítio e desaparecer, depois aparecer noutro e desaparecer… Até que houve as célebres sessões na Casa do Alentejo, em que fomos dizer ao povo o que era o surrealismo.

E o que era o surrealismo?
Éramos nós [risos]. Lemos textos, poemas, e uma declaração chamada 'Afixação Proibida'. A assistência gostou muito e depois
da sessão queria que explicássemos o que era o surrealismo.

Para o Mário, como começou o surrealismo?
Estávamos eu e o Alexandre O’Neill muito incomodados com os neo-realistas e ele, uma vez, trouxe-me um livro em francês e disse: ‘Lê isto’. Era a História do Surrealismo, do Maurice Nadeau, que, no final do volume, dizia que os surrealistas
já tinham dado o que tinham a dar. Mas o nosso começo
foi aí.

Em que altura foi isso, mais ou menos?
Em 1947.

É também nesse ano que foi a Paris e conheceu o André Breton…
É. Mas eu já ia surrealista, não fui lá ser surrealista. Queria
era conhecê-lo!

Como é que se deu esse encontro?
Fui a casa dele, bati à porta e ninguém respondeu. Ele tinha um letreiro à porta a dizer: ‘Não quero entrevistas, não quero isto, não quero aquilo’.

Eu deixei lá um papel: ‘Não quero entrevistas, não quero isto, não quero aquilo. Quero falar consigo’. Então, à segunda vez que lá fui, recebeu-me e combinei umas coisas com ele, que o António Pedro tratou de destruir, porque foi lá depois. Eu tinha a ideia de uma pequena publicação, uma coisa modesta, porque não havia
muito dinheiro, nem havia razão para fazer muito barulho, por causa da polícia.

O António Pedro falou com o Breton, pôs este projecto de parte e propôs a reedição da Variante, uma revista que ele fazia em grande luxo, com o surrealismo de todo o mundo e não sei o quê.

Depois, não fez. Quer dizer, não houve a minha coisa modesta nem a coisa espampanante dele. Primeiro, pedimos colaborações para Nova Iorque, para Paris, para toda a
parte. Depois de nos entregarem as coisas, ele decidiu que não havia dinheiro. Era mentira. Tivemos a lata de devolver tudo. Coisas dessas fizeram a minha saída do Grupo Surrealista de Lisboa…

… E acabaram por conduzir à formação do grupo dissidente,Os Surrealistas.
Pois… Uma parte do nosso grupo andava na António Arroio –
tanto do grupo dissidente, como do oficial. Estava o Fernando
Azevedo, o Vespeira, o Júlio Pomar... Quanto a nós, estávamos
eu, o Cruzeiro Seixas, o Pedro Oom… Depois, estes três ou quatro trouxeram o Fernando José Francisco e fizemos uma exposição, em que entrou também o Carlos Calvet.

A própria escolha do nome, Os Surrealistas, foi uma provocação, como quem diz: ‘Nós é que somos os verdadeiros’. A nossa simples existência já era uma provocação e quando a afirmámos publicamente, isso então foi um grande sarilho. Até que eles desistiram.

Fecharam a loja sabe com que álibi?
Com o da ‘discrepância de horários’. A gente também lhes fazia a vida negra, na Casa do Alentejo, naquelas sessões… Acabaram com o grupo e foram fazer teatro para o Apolo.

Depois das primeiras exposições, houve uma altura em
que esteve algum tempo fora de Portugal...
Onde estive mais tempo foi em Inglaterra. Com as idas e vindas,
estive sete anos em Londres, na década de 60. Estava farto de latinos e fiquei a gostar dos anglo-saxónicos. Chamam-lhes hipócritas, mas eles não são. São actores. Estão sempre
a representar Shakespeare.

Um vagabundo chega à tabacaria e pede: ‘May I have a box of matches, please?’ Isto é linguagem de príncipe. ‘May I have’... ‘Poderei eu ter ...Uma caixa de fósforos’. Um vagabundo. Os outros são iguais ou ainda mais sofisticados.

Já os americanos são uma espécie de ingleses a
quem tiraram a inquietação, a metafísica. De maneira que
eles andam muito contentes, ‘How are you?’, ‘Fine, thank
you’. Com imensas dores de estômago porque a comida é muito
má.

O Mário também costuma falar de uma estada emParis, financiada com a venda de um quadro da Vieira da Silva…
É verdade. Eu escrevi-lhe a dizer: ‘Maria Helena, estão a
apertar muito o rabo do gato’. A polícia fazia-me lá ir como
suspeito de vagabundagem. Então, a Vieira da Silva, através
do Manuel Cargaleiro, deu-me um quadro dela, muito bonito.
Eu só pedia dinheiro para a passagem, mas aquilo rendeu
imensa massa, que eu fui conspicuamente gastar lá para fora.

Como é que conheceu a Vieira da Silva?
Ela veio a Lisboa, e eu escrevi um artigo a falar nela, porque
ela era desconhecida por cá. Aconselhava-a a não se demorar
muito, porque ainda ficava estragada. Ela gostou e quis conhecer-
me. Fui conhecê-la ao ateliê dela e do Arpad Szenes, ali nas Amoreiras.

A partir daí, ficaram muito amigos. De resto, o Mário,
sempre foi assim: capaz de grandes amizades, grandes
amores e grandes ódios...
... Grandes nevoeiros...

Foi o que aconteceu com o próprio grupo surrealista dissidente. Muitos de vós seguiram caminhos diferentes, com algumas rupturas pelo meio.
A partir de certa altura, este grupo também se desfez. O
Cruzeiro Seixas foi para África, o António Maria Lisboa
morreu tuberculoso... Deixámos de nos procurar.

E o Mário ficou isolado como representante do surrealismo
em Portugal.

Não pensava nisso. Nem as pessoas acreditavam. Para elas, o
António Pedro continuava a ser o grande surrealista. Com a democracia, esfuma-se a história do surrealismo.

O Mário continuou a escrever e a pintar, mas já sem aquele espírito de grupo.
O José Escada, o pintor, fazia umas coisas em papel vermelho,
e fez uns cravos, os cravos do 25 de Abril, com uma dedicatória
bonita: ‘Ao Mário, que há muito tempo desconhece o perfume’.

Diz que a liberdade devia estar acima de tudo. É essa a essência do surrealismo?
A liberdade, o amor, a poesia. É esta a tríade do surrealismo,
que vem colocar-se ao lado, ou à frente, da liberdade, igualdade,
fraternidade, da Revolução Francesa. Era essa a nossa bandeira.

E o Mário passou com a mesma paixão por todas essas três coisas…
Como já lhe disse, a nossa descoberta do surrealismo não fez
uma explosão, fez uma implosão. Também não era tempo de
andar a falar alto. Íamos para a choça, o que não nos agradava
muito. Os neo-realistas ficavam muito honrados quando
iam presos. Nós não achávamos graça nenhuma [risos].

Diz que, para si, a pintura é mais terapêutica do que a poesia. Porquê?

Na poesia tens de escrever se estás zangado, se estás optimista,
se estás apaixonado. Coisas que na pintura não existem. Embora não seja, parece uma coisa mais impessoal. Não fala das dores de estômago ou das dores de cabeça, das dores de corno. O pincel não dá isso.

O que é que o pincel dá?
Dá uma realização da pessoa, de que o quadro é a prova.

Faz sentido perguntarem-lhe o que é que tem mais peso para si, se a pintura, se a escrita?
À medida que fui agarrando mais a pintura… ou, ao contrário,
à medida que ia deixando mais a poesia escrita, ia-me ocupando mais com a pintura. Com a poesia pintada, se quiser. A poesia morde mais o fígado: se odeia, odeia, se não odeia não odeia. A pintura parece uma coisa objectiva, fora de nós. Suja as mãos, limpa-se o pincel, há o cavalete e a tela. A poesia não. É apenas entre a nossa cabeça e o papel.

Costuma falar muito do ambiente, de como a Lisboa de hoje já não é a mesma, queixa-se da falta dos cafés...
A Lisboa do nosso tempo acabou. Os cafés onde a gente se reunia desapareceram, começaram por pôr lá a televisão.
Ora, é impossível não olhar para uma televisão ligada. Já não podíamos estar à vontade. Estávamos ali metidos para perder a vida, para não trabalhar em escritórios e aturar o patrão nojento.

Éramos, de facto, todos vagabundos. Embora eu é que tenha merecido a honra de ser considerado suspeito de vagabundo pela polícia. No fundo, só o 25 de Abril é que acabou com isso.
Em compensação, também dissipou a atmosfera de encontro
que havia dantes. Hoje está cada qual no seu buraco.

Como é que lida com o reconhecimento que tem recebido
nos últimos anos?
Não dou muita atenção a isso, sabe? Recebi com alegria a Ordem da Liberdade, porque era a Ordem da Liberdade. Liberté
chérie! Agora vivo num deserto. Tenho alguns amigos, muito poucos. Mas realmente não há onde ir, em Lisboa. Quer dizer, para mim, porque a gente mais nova junta-se nos pubs, com a música muito alta, para não terem de falar eles. Nem falar, nem pensar.

Em Outubro vai editar um livro de serigrafias, em homenagem a Timothy McVeigh, condenado àmortepelo atentado em Oklahoma. O que pensa da pena de morte?
Não devia ser permitida. Ele também não devia ter morto 700 pessoas. Mas olho por olho, dente por dente é a selvajaria.

Abriu no dia 20 de Setembro, no Círculo de Belas Artes, em
Madrid, uma retrospectiva dedicada à sua obra. Como se
sente em relação a isso?
A minha perna não me deve deixar ir lá, o que é uma chatice,
mas por outro lado é bom. Eles que se distraiam uns aos outros. É claro que fico contente por ter uma exposição em Madrid, mas por outro lado não ligo nenhuma.

Estou-me bastante nas tintas. Não digo isto aos organizadores, mas é a verdade. Quero lá saber!

Já o ouvi dizer qualquer coisa do estilo: está o poeta, o artista, no pedestal, e depois volta para casa sozinho. O Mário sente-se só?
Acho que sim. Sinto-me só, com as minhas ideias, que me fazem companhia, e com um ou outro amigo que ainda existe, com quem fizemos batalhas, como o Cruzeiro Seixas ou o Fernando José Francisco…

Ou o Mário Henrique Leiria, que morreu, o António Maria Lisboa, que morreu, o Pedro Oom, que morreu, o Henrique Risques Pereira, que morreu, o Fernando Alves dos Santos, que morreu... Tenho de me sentir sozinho. Estava escrito que eu ia durar até aos 80 e tais.

Como lida com a idade, como envelhecimento do corpo?
A idade põe-me uma série de chatices físicas que me impedem de atingir a metafísica. São coisas várias que me ocupam e me impedem de circular normalmente.

Mas a cabeça está óptima…
Acha?

E o Mário, o que acha?
A cabeça tem um órgão vital à disposição, chamado Eros, a vida erótica, que me faz falta, porque essa vida para mim acabou. Se o cérebro ainda pia alguma coisa, é muito de admirar [risos] …

Fica a liberdade e a poesia…
Fica… Já não é pouco…

O Mário apaixonou-se muito?
Acho que a vida sem paixão é um deserto.

Mas o grande amor, aquele de que falam os poetas, encontrou- o? Talvez tenha encontrado e não tenha dado por isso. Houve realmente um amor importante, com uma pessoa que já morreu. Um amor que acabou muito mal, com a PIDE metida na
nossa cama, uma coisa horrível.

Acho que depois disso, dados os resultados concretos, troquei a Grécia por Roma. Sabe o que eu quero dizer? Há o Eros mental e depois há o que se espalha pelo corpo, que é outra coisa.

Não quer explicar melhor?
A Grécia foi um amor que eu tive com um moço. Ele depois
foi para a tropa e escreveu-me uma carta que a PIDE leu. Ele
ia indo parar a África por causa disso, porque dizia: ‘Não sei
quando saio da tropa. Os nossos patrões, os americanos, é
que devem saber’.

A PIDE pegou naquilo e meteu-o na cadeia. Mas a carta era também uma carta de amor, sabe? De maneira que era demasiado horroroso ter a PIDE na cama connosco. E assim começou a Roma: mais sexo do que amor.

Nunca mais se encontraram?
Encontrei-o esporadicamente, já sem elo amoroso.

Voltou a ter esse elo com alguém?
Não.

É por isso que diz que trocou a Grécia por Roma.
Não imagina a quantidade de pessoas que eu fiz.

Há até uma frase sua, em que diz: ‘Rapazinhos por dia, dois,
marinheiros, três’.
[risos] Eu tinha um amigo espanhol que estava cá, o Francisco
Aranda, que conhecia um inglês, daqueles muito sofisticados,
aristocratas, mas muito inteligentes. Ele veio cá e o Aranda apresentou-mo. Estávamos na conversa, eram cinco e meia: ‘Tea Time’. É hora do chá. Eu pensei: ‘Espera aí que já te dou o chá’. Então, fomos com esse amigo inglês assistir à saída da Marinha.

Sabe o que aconteceu? No dia seguinte voltou para Londres – não teve nenhum caso, foi só de ver – arrumou as coisas dele e veio viver para cá. Nessa altura, os marinheiros recebiam o fardamento e iam à costureira para o ajustar bem. Quase se via o
contorno do sexo. Eles tinham vaidade nisso, além de que havia
gente bonita.

Nessa altura, sendo tudo tão escondido, eram assim tão fáceis os contactos sexuais entre homens?
Cheguei a publicar num jornal uma coisa que hoje não se entende:
Portugal era o país mais homossexual do mundo. E não era só a Marinha. O 25 de Abril, com a libertação dos homossexuais, também libertou a Marinha desse hábito. Passaram a considerar-se uns homenzinhos que não fazem essas coisas.

Agora fazem entre eles ou com um tenente qualquer. Não sei o que os chefes lhes disseram, mas realmente não apareceram mais os marujos. Mas apareceram os comandos. Todos os dias havia passagem de comandos na estação do Rossio, para engate.

Qual é a sua opinião sobre as manifestações do orgulho
gay, hoje em dia?
Acho feio, porque em vez de aparecerem como pessoas normais,
põem umas mamas, pintam-se, ficam uns verdadeiros abortos. E saem assim para a rua. Eu, que sou homossexual, se encontrasse aquilo na rua, passava para outro passeio, porque em vez de angariarem simpatia, ofendem.

Quando é que o Mário tomou consciência da sua homossexualidade?
Nos meus tempos da António Arroio, já sabia.

Mas nessa altura não era uma coisa que fosse falada. Como
é que lidou com essa descoberta?
Lidei conforme podia. O que fazia era em segredo, sempre. Tem a ver com a Lisboa dessa época. Havia urinóis espantosos, que eram sítios de encontro. Estavam sempre cheios. Muitas vezes, quem queria mesmo mijar, ficava aflitíssimo, porque as pessoas não saíam de lá [risos].

Que idade tinha quando teve as primeiras experiências?
Foi para aí em 1942 ou 43.

Chegou a confessar a sua homossexualidade
às autoridades. Quer contar como foi?
Isto era assim: três vezes apanhado na rua com outro senhor,
dava direito a ser mandado para a Polícia Judiciária. Depois, a Judiciária teve-me como suspeito de vagabundagem todo o tempo que quis. Não queriam provas, queriam a suspeita, porque a suspeita podia continuar sempre.

Então, um dia, perdeu a paciência, foi lá...
... e disse: ‘Sim senhor, sou homossexual’.

Eles perguntaram:
‘Com quem?’. E eu respondi: ‘Não lhes posso dizer, porque quando faço coisas, vou a um cinema e às vezes nem vejo a cara da pessoa que está envolvida comigo’. Quando ameaçaram pôr um agente a seguir-me na rua, disse-lhes: ‘Esse é o vosso trabalho, mas eu conheço muita gente que não é homossexual e vocês ainda vão ter algum desgosto’. Era assim, uma coisa absurda. Na verdade, a polícia tinha razão. É que eu era mesmo
um vagabundo, sem emprego certo.

Como sobrevivia?
Gastando o mínimo. A minha mãe ajudou-me muito.

O Mário ainda tem família, fruto dos casamentos das
suas irmãs?
Sobrinhos. Ainda tenho algum contacto com eles.

A sua irmã Henriette morreu há dois anos e meio. Tinha uma relação especial com ela, não tinha?
Amávamo-nos muito. Quando lhe morreu o marido, voltou
para casa dos pais. O nosso pai, entretanto, tinha ido para o
Brasil com uma amante. Eu e a Henriette vivemos muito tempo
juntos, numa verdadeira irmandade.

O Mário pensa na morte?
Não muito. Penso mais nas doenças.

Acredita na imortalidade?
Não sei. Quando lá chegar, eu telefono [risos]…

 
At 27 de novembro de 2006 às 12:54, Anonymous Anónimo said...

Para animar isto mais poemas do Cesariny:

Calçada do Cordeal


Pequeno tambor orgia modesta
o lago tranquilo a descoloração
tintura de brancos e verdes floresta
o lago tranquilo a prostituição
candura doçura nos olhos em festa
mão no coração


A bola de vidro rola vis-a-vis
com as flores que altas são no jardim.
Há justos e réprobos porque o Senhor quis
vingar-se de nós porque sim


Mário Cesariny

O navio de espelhos


O navio de espelhos
não navega cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

(E no mastro espelhado
uma espécie de porta)

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo


Mário Cesariny

You are welcome to Elsinore


Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras noturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar


Mário Cesariny

Pastelaria


Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra


Mário Cesariny

 
At 27 de novembro de 2006 às 17:09, Anonymous Anónimo said...

Não sendo um adepto da sua maneira de ser e de estar - que respeito - quero aqui prestar singela homenagem a um criador de cultura, de arte, de conceitos, a um subversor do que está - trazendo algo de novo.
Nesse sentido, Mário Cesariny foi um inovador incessante que esteve à frente do seu tempo.
Mas como era um homosexual assumido talvez nem todos os secretários de Estado da Cultura e até ministros da pasta - e indivualidades do Estado com relevo na área se fizeram representar.
Nestas questões da Cultura os agentes políticos que tiveram tutela na área ainda não conseguiram fazer uma distinção simples:
Cultura é Cultura, costumes e modos de vida à parte...

 
At 27 de novembro de 2006 às 17:18, Anonymous Anónimo said...

antecipando a morte do Cesariny o governo resolveu constituir uma medida surrealista de homenagem....

se você chegar a um hospital e conseguir provar que conhece intimamente a pessoa que lhe deu um encherto de porrada que a deixou num molho de bróculos e várias costelas junto aos artelhos então não paga nada.... se por outro lado foi agredida na rua por um gajo que nunca viu que lhe deixou o baço perfurado os rins junto ao apêndice duas dúzias de ossos partidos...é melhor levar o cartão de débito para pagar as taxas moderadoras.... posteriormente pode recorrer aos tribunais para reçeber de volta o dinheiro do agreçor (coisa de duvidosa eficácia e que lhe pode garantir nova ida ao hospital....)....

não é preciso um gajo ser adepto do surrealismo nem ter o sentido de humor do Cesariny para apreciar a vida neste país .... mas ajuda...

Neste País é carnaval todos os dias...

 
At 27 de novembro de 2006 às 17:30, Anonymous Anónimo said...

eu em 1951 apanhando (discretamente) uma beata(valiosa)
num café da baixa por ser incapaz coitados deles
de escrever os meus versos sem realizar de facto
neles, e à volta sua, a minha própria unidade
- fumar, quere-se dizer.
esta, que não é brilhante, é que ninguém esperava
ver num livro de versos. Pois é verdade. Denota
a minha essencial falta de higiene (não de tabaco)
e uma ausência de escrúpulo (não de dinheiro)notável.

o Armando, que escreve à minha frente
o seu dele poema, fuma também,

Fumamos como perdidos escrevemos perdidamente
e nenhuma posição no mundo (me parece) é mais alta
mais espantosa e violenta incompatível e reconfortável
do que esta de nada dar pelo tabaco dos outros
(excepto coisas como vergonha, naturalmente,
e mortalhas)

(que se saiba) é esta a primeira vez
que um poeta escreve tão baixo
(ao nível das priscas dos outros)

aqui, e em parte mais nenhuma,
é que cintila o tal condicionalismo
de que há tanto se fala e se dispõe
discretamente (como quem as apanha).

sirva tudo de lição aos presentes e futuros
nas taménidas (várias) da poesia local
Antes andar por aí relativamente farto
antes para tabaco que para cesariny
(mário) de vasconcelos.

Mário Cesariny

 
At 29 de novembro de 2006 às 09:16, Anonymous Anónimo said...

Cesariny

"Ele andou, toda a vida, associado a umas quantas bizarrias, que fizeram, no imaginário do século XX, o charme e a perdição do surrealismo. Viveu como pôde, disse o que muito bem entendia, amou a quem amou, e aos costumes disse nada. Até muito tarde, desconfiou-se daquela exuberância com que o génio lhe transbordava para fora dos livros e dos quadros e entrava pela realidade adentro, sem que ele parecesse fazer grande distinção entre uma coisa e outra. Depois, quando a rebeldia se banalizou e confundiu com verniz social, entrando no rol de virtudes para meninos e meninas casadoiras, houve histórias suas que passaram a fazer parte da mitologia urbana. Era, já então, para muita gente, uma personagem. Não sei se haveria assim tantos a dar pelo artista que habitava dentro dessa personagem e que usava o mesmo nome: Mário Cesariny de Vasconcelos.Cesariny, diz-se, foi o surrealismo português. Tal afirmação, todavia, não sendo totalmente falsa, também não é totalmente justa para o poeta, nem mesmo para o pintor, pese embora o tom elogioso com que se lhe apresenta. É possível que, sem a autenticidade que ele emprestou à literatura e à arte em geral, sem o vigor e a coerência com que ele afirmou publicamente a "liberdade livre", o movimento nunca teria ido muito além de um simples epifenómeno do surrealismo francês.
Cesariny, porém, está para lá de qualquer movimento ou escola. E se, a partir de certa altura, o surrealismo lhe tomou conta da imagem e da própria escrita, a ponto de se confundirem um com o outro, não foi por simples questão de moda ou de vanguardas: foi porque, consciente ou inconscientemente, ele encontrou no movimento inspirado por Breton a armadura conceptual e afectiva de que precisava para desafiar uma literatura ocupada pelo gigantismo de Pessoa e uma cultura em que, apesar dos modernismos, persistiam arcaísmos com mais de dois séculos.
Bem vistas as coisas, toda a obra de Cesariny decorre entre esses dois marcos pessoanos que são o já longínquo Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos e o mais recente O Virgem Negra. Do ponto de vista da literatura portuguesa, aí é que era Rodes, aí é que era preciso saltar. Quanto ao resto, como ele escreveu, "Sim consumada a obra sobram rimas/pois ela é independente do obreiro/no deitar a língua de fora, no grande manguito aos Autores/é que se vê se a obra está completa".


Diogo Pires Aurélio
IN: Diário de Noticias

 
At 8 de dezembro de 2006 às 03:12, Anonymous Anónimo said...

O cesariny era um comuna que - além de pensar mal, como todos os outros - escrevia mal. Mais nada.

O excerto aqui apresentado, mesmo sendo pequeno, apresenta ridiculamente um plágio flagrante de Camilo José Cela (também já falecido), na sintaxe.

Dou como exemplo a frase

"Em não se tratando de anacreônticas) introduzia-
-Se no Alberto até à base
E com algum incómodo o Alberto erguia".

Isto é grosseiramente retirado de "Mazurca para 2 mortos", de Cela, escrito muito antes deste "surrealismo".

 

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