O LIVRO DO RUI MARTINS
Para a generalidade dos leitores, o nome de Rui Cardoso Martins (Portalegre n. 1967) não é dissociável do programa satírico Contra-Informação, uma das imagens de marca da RTP.
Os mais atentos reconhecem nele o autor do guião de Zona J, o filme de Leonel Vieira.
Este argumentista das Produções Fictícias, e um dos autores de Conversa da Treta (para rádio, televisão e teatro), foi também co-autor da série dramática Sociedade Anónima.
Por último mas não em último, a crónica que assina no Público é das mais antigas da imprensa portuguesa. Parece que só lhe faltava escrever um livro.
Foi o que fez agora.
Chama-se E se eu gostasse muito de morrer.
Passa por ser um romance.
É mais sensato partir do princípio de que é um conjunto de ficções, dezasseis, para sermos exactos.
Alguns personagens saltam de ficção em ficção. O Carloto, por exemplo. O Carloto, mais a sua camisa de cornucópias castanhas e verdes, aparece muito. Isso cria uma ilusão de continuidade. A genealogia de E se eu gostasse muito de morrer entronca, aqui e ali, com algum Dinis Machado. Embora o imaginário de Rui Cardoso Martins seja menos lúdico, mais adequado ao horizonte de chumbo da pós-modernidade: «Vem o intervalo e fuma-se um cigarro [...] o primeiro a acendê-lo acho que foi o Trombeiro ou o Tonel ou talvez o Besta Porca. O Pardoca, acho, ou o Banana, um deles, tinha chutado a bola para fora num corte que levantou uma rajada de pedrinhas e esfolou a canela do Perneta.» O insert é outro expediente: cartas, notícias de jornal e da rádio, fragmentos de poemas, a minuta de uma participação contra um coveiro, o excerto de um auto de inquirição de testemunha, listas, ladainhas, etc., contribuem para contextualizar o fio da narrativa. A focalização omnisciente (que é como quem diz a reconstituição artificial do tempo da experiência) de que Rui Cardoso Martins não abdica, também ajuda. Contextualizar é capaz de ser um termo extravagante, mas não encontro outro que melhor caracterize o making off da obra. Por vezes, o registo pícaro cede. Tomemos como exemplo a «Operação Marosca», I e II, tendo como Leitmotiv a guerra colonial e, em particular, o massacre de Wiryamu, ocorrido em 1972 na província de Tete, em Moçambique: «crianças rebentadas a sangue-frio, pela tropa portuguesa, com a cabeça contra árvores, como gatos, empaladas em baionetas, uma G3 enfiada na boca de uma miúda de quatro anos a fazer de biberon e pum!» É o lado negro da História. Mas nada é assim tão simples: «Sabe o que é estar anos a fio, desde jovem sacerdote, entre duas frentes de batalha, entre a brutalidade da tropa e a dos guerrilheiros? Sabe o que é ficar lá, depois da independência, e ter de lidar com a emergência dos revolucionários vindos do mato, com toda a sua incompetência marxista, com campos de morte para milhares de outros africanos que estiveram, ou eram apenas suspeitos, de ter estado com Portugal na guerra?! Quem fala desses massacres e fuzilamentos?...» A mim parece-me importante que estas coisas possam ser lidas à luz dos vários ângulos possíveis, mas desconfio da sua eficácia num livro como este. Vejamos: o tema do massacre de Wiryamu, aqui sempre referido como Wiliamo, não começa a ser explorado na «Operação Marosca». Vem de trás. Quando alguém lembra: «Mas o grande acontecimento foi a cena de Wiliamo. [...] Mataram 400 pretos duma vez [...] houve um velho que na explosão furou o telhado de colmo e, quando aterrou, desatou a correr para fazer de coelho de caça, só para isso, com suas nalguinhas de laparoto, foi realmente cómico quando lhe acertaram entre as orelhas.» Digamos que uma tão acentuada deslocação de tom exige outros recursos. Tópico recorrente é o suicídio. Não por acaso, as duas epígrafes do livro reportam ao assunto. Só no Alentejo, em 1998, a taxa de suicídio masculino foi de 32 por cem mil habitantes (o cômputo dos dois sexos faz baixar a taxa para 20, número igualmente preocupante). Uma das estórias melhor esgalhadas é aquela em que ficamos a saber o que aconteceu a Maria Ana, uma rapariga que usava rabo-de-cavalo e «tinha uns óculos que pareciam a herança de uma tia amblíope.» Um dia, a Maria Ana tentou matar-se, há quem diga que por causa do «tipo que andava com a mãe dela», e embora nunca se tivesse provado nada contra o sujeito, «das suspeitas não se livrou.» A Maria Ana cometeu triplo suicídio na forma tentada: tomou comprimidos, deu um tiro no coração e outro na cabeça. Valente rapariga. A bala do coração foi extraída. A da cabeça ficou alojada no crânio. Teve o azar de sobreviver e ficar entrevada para sempre. Essa parte chama-se «A bala incrustada». E se eu gostasse muito de morrer tem um lado Tarantino, versão Alto da Serafina. Mas é a quota de New journalism que formata o conjunto. A cerzidura nem sempre é perfeita. Há momentos de precisão exemplar: «A porra de metafísica que se encontra numa sala a 47 graus centígrados.» E outros de objurgatória: «A única coisa que os famosos homens-bomba querem é ser mártires, matando o máximo de pessoas, incluindo crianças, se as apanharem às nove da manhã num comboio em Madrid, em Londres e mais tarde ou mais cedo em Lisboa, isso é certinho!» O narrador chama-lhe «niilismo terrorista», não poupa a Igreja católica, e mete Dostoievski ao barulho. De resto há vários envios culturais, de Régio a Kurt Cobain, relações estatísticas entre os bombistas-suicidas de Bagdade e as vítimas portuguesas da estrada, e até o que julgo ser uma figura de estilo: a frase «O Isaías, que parecia um prego simpático, magro e marcado, com a mesma cara em novo que há-de ter em velho», aparece pelo menos duas vezes (nas páginas 40 e 181) ao longo do livro. As voltas que o romance dá.
in: MIL FOLHAS
1 Comments:
Muito boa amostragem apurando com detalhes a genealogia da tradicional familia Rui Martins.
Agora por favor, me diga a onde começa exatamente a origem da familia Cardoso Ponte, pois segundo informações vagas, dá conta sua origem em Portugal. Como posso ter com exatidão um perfil da genealogia da origem "Cardoso Ponte", sem custo adicional. Aguardo suas valiosas considerações.
Fraternalmente
Fco.Cardoso Ponte Jr.
E-mail cardosoponte@gmail.com
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