GUANTÁNAMO OU O ESPLENDOR DA HIPOCRISIA
É preciso, pelos vistos, começar por lembrar o óbvio: Guantánamo não foi nem é uma prisão como outra qualquer. Guantánamo é o território zero dos direitos humanos, maravilha fatal da nossa idade. Os que lá estiveram e estão presos não foram condenados por qualquer tribunal, não foram mandados prender por nenhum juiz, não foram interrogados por qualquer magistrado, não foram defendidos por nenhum advogado, não recebem visitas da família nem de ninguém. Não são presos comuns nem gozam do estatuto de prisioneiros de guerra e também não são sequer presos políticos, ao abrigo de uma qualquer legislação de excepção. Juridicamente, os presos de Guatánamo inauguraram uma nova condição penal de que não havia registo desde os mais fundos tempos da barbárie, incluindo os «goulags» estalinianos: são não-existentes. O Exército e o Presidente dos Estados Unidos reservam-se o direito de não dizerem, nem às famílias, quem é que têm preso, desde quando, por que razões e por quanto tempo. O fundamento ético e jurídico para isto é a “luta contra o terrorismo” - essa infinita nebulosa do direito inaugurada após o 11/9. Mas, pelo menos de acordo com as regras fundadoras da democracia, tal como as conhecemos, isto não é uma forma de luta contra o terrorismo: é, sim, uma luta entre terrorismo de um lado e terrorismo do outro lado.
Para transportar os presos americanos com destino a Guantánamo, desde o Afeganistão ou outros países da Ásia e do Médio-Oriente, os aviões da CIA tiveram de sobrevoar e fazer escala pelo caminho em território europeu. O que o Parlamento Europeu tentou apurar nos últimos meses é quais foram os governos europeus que concederam autorização para tal, em que condições e com que fundamento. Porque a ninguém passa pela cabeça que pelo menos 1245 voos da CIA já detectados tenham sobrevoado e aterrado em aeroportos europeus sem que os respectivos governos tivessem tido a curiosidade de indagar qual era a sua missão. Queria-se, pois, apurar o que terá levado governos europeus - entre os quais, o português, que autorizou pelo menos 118 voos da CIA - a tornarem-se coniventes com a infâmia de Guantánamo. E, já agora, queria-se também uma explicação para o facto de o terem feito em total secretismo, longe da vista e da opinião pública, depois de alguns deles, entre os quais o português, já se terem tornado também no passado coniventes do embuste montado pelo «staff» de Bush para justificar a desastrada invasão do Iraque.
Dêem-se as voltas que se derem ao texto, não há questão mais política e mais pertinente do que esta. Eu sei, todavia, que há sempre lugar para invocar as ‘razões de Estado’ a fim de silenciar o que não convém e apelar ao silêncio sobre as ‘questões sensíveis’. Na argumentação sibilina e subliminar utilizada contra os dois deputados portugueses que no Parlamento Europeu tentaram forçar o Governo português a contar o que se tinha passado, não faltou mesmo a insinuação de falta de patriotismo. Eu sei que é bem mais conveniente que os terroristas islâmicos nuca venham a conhecer a fundo a verdadeira dimensão do envolvimento de Portugal com algumas coisas que, justamente por isso, foram mantidas secretas. Mas há outra maneira de ver as coisas, a maneira democrática: Portugal, sob a liderança leviana de Durão Barroso, comprometeu-se, quer com a invasão do Iraque quer com os voos da CIA para Guantánamo, muito para lá do que era do interesse nacional e da opinião da maioria dos portugueses: isso, sim, pôs em perigo a nossa segurança, para já não falar da independência da nossa política externa. Vi há tempos Durão Barroso ser confrontado, numa entrevista televisiva, com o seu papel na aventura do Iraque. Naquele seu tom de ‘estadista’ que sabe e alcança muito mais do que o comum dos mortais, respondeu, em tom displicente que, de facto, nem tudo no Iraque tinha corrido como ele tinha previsto e que se sabem hoje coisas que então se não sabiam. Mas, concluía ele, para salvar a face, com as informações então disponíveis hoje teria decidido comprometer-nos por igual. Ora, isto, como sabemos, é falso: Durão Barroso jurou então ter visto “provas” conclusivas sobre, nomeadamente, a existência de armas de destruição maciça no Iraque. Mas essas “provas” foram então negadas pelas inspecções no terreno, pelas Nações Unidas e pela grande maioria dos governos. E hoje sabemos que, pura e simplesmente, não havia armas, pelo que não podia haver “provas”. Afirmar hoje - depois de centenas de milhares de mortos, com o Iraque numa situação sem saída, o Médio-Oriente pior do que nunca e a ameaça terrorista tornada exponencial devido ao Iraque - que decidiria da mesma maneira com as “informações” que então tinha é de uma leviandade absoluta. E é a prova, essa sim, decisiva, de que o secretismo das tão invocadas ‘razões de Estado’ serve muitas vezes para esconder a incompetência, a leviandade ou a agenda pessoal e inconfessável dos governantes. Por isso é que a questão da cumplicidade europeia com Guantánamo não é uma questão menor nem uma questão que deva ser remetida ao silêncio em nome dos “superiores interesses nacionais” ou europeus. É, antes, uma questão determinante em termos de política externa e reveladora em termos de conhecimento do carácter de quem nos governa. Perguntem a Luís Amado, enquanto cidadão, o que acha ele de Guatánamo, e ele vai responder que acha intolerável; mas perguntem-lhe o mesmo, enquanto ministro dos Estrangeiros, e ele vai jogar com as palavras, vai deliciar-se em jogos florentinos de linguagem diplomática e vai acabar a mentir de óptima consciência. Porém, face ao que se passou no Iraque e não só, sabemos já que isto não faz parte da inevitabilidade da natureza da política: faz parte da consequência natural da política que se oculta por ser má.
Contra Carlos Coelho e, sobretudo, contra Ana Gomes, levantou-se um coro hipócrita do ‘patrioticamente correcto’ que conseguiu inverter os termos da equação: estava certo, não quem queria saber a verdade, mas quem queria ocultá-la. Socialistas eternamente disponíveis para todo o serviço, medíocres e carreiristas de todas as horas, caíram em cima de Ana Gomes como se ela fosse um vende-pátrias ou uma louca inimputável. O relatório do Parlamento Europeu, esta semana divulgado, vem dar razão a Carlos Coelho e a Ana Gomes. Mas fica, como ele próprio reconhece, claramente aquém do apuramento de toda a extensão dos factos. Por ora, ficámos a saber apenas que uma série de governos europeus foram consciente e voluntariamente cúmplices dessa ignomínia que é a prisão de Guantánamo. O que quer dizer que apregoam valores e princípios que, na hora das escolhas, não perfilham. Dormem tranquilos, obviamente indiferentes à sorte de um qualquer Ahmed capturado algures no Afeganistão e sepultado vivo em Guantánamo: uma simples abstracção, que não lhes tira o sono. Mais tarde, talvez quando forem desclassificados os documentos da CIA, eu suspeito que ficaremos a saber que a conivência de Portugal foi muito para além do que até agora se descobriu.
Miguel Sousa Tavares
Dêem-se as voltas que se derem ao texto, não há questão mais política e mais pertinente do que esta. Eu sei, todavia, que há sempre lugar para invocar as ‘razões de Estado’ a fim de silenciar o que não convém e apelar ao silêncio sobre as ‘questões sensíveis’. Na argumentação sibilina e subliminar utilizada contra os dois deputados portugueses que no Parlamento Europeu tentaram forçar o Governo português a contar o que se tinha passado, não faltou mesmo a insinuação de falta de patriotismo. Eu sei que é bem mais conveniente que os terroristas islâmicos nuca venham a conhecer a fundo a verdadeira dimensão do envolvimento de Portugal com algumas coisas que, justamente por isso, foram mantidas secretas. Mas há outra maneira de ver as coisas, a maneira democrática: Portugal, sob a liderança leviana de Durão Barroso, comprometeu-se, quer com a invasão do Iraque quer com os voos da CIA para Guantánamo, muito para lá do que era do interesse nacional e da opinião da maioria dos portugueses: isso, sim, pôs em perigo a nossa segurança, para já não falar da independência da nossa política externa. Vi há tempos Durão Barroso ser confrontado, numa entrevista televisiva, com o seu papel na aventura do Iraque. Naquele seu tom de ‘estadista’ que sabe e alcança muito mais do que o comum dos mortais, respondeu, em tom displicente que, de facto, nem tudo no Iraque tinha corrido como ele tinha previsto e que se sabem hoje coisas que então se não sabiam. Mas, concluía ele, para salvar a face, com as informações então disponíveis hoje teria decidido comprometer-nos por igual. Ora, isto, como sabemos, é falso: Durão Barroso jurou então ter visto “provas” conclusivas sobre, nomeadamente, a existência de armas de destruição maciça no Iraque. Mas essas “provas” foram então negadas pelas inspecções no terreno, pelas Nações Unidas e pela grande maioria dos governos. E hoje sabemos que, pura e simplesmente, não havia armas, pelo que não podia haver “provas”. Afirmar hoje - depois de centenas de milhares de mortos, com o Iraque numa situação sem saída, o Médio-Oriente pior do que nunca e a ameaça terrorista tornada exponencial devido ao Iraque - que decidiria da mesma maneira com as “informações” que então tinha é de uma leviandade absoluta. E é a prova, essa sim, decisiva, de que o secretismo das tão invocadas ‘razões de Estado’ serve muitas vezes para esconder a incompetência, a leviandade ou a agenda pessoal e inconfessável dos governantes. Por isso é que a questão da cumplicidade europeia com Guantánamo não é uma questão menor nem uma questão que deva ser remetida ao silêncio em nome dos “superiores interesses nacionais” ou europeus. É, antes, uma questão determinante em termos de política externa e reveladora em termos de conhecimento do carácter de quem nos governa. Perguntem a Luís Amado, enquanto cidadão, o que acha ele de Guatánamo, e ele vai responder que acha intolerável; mas perguntem-lhe o mesmo, enquanto ministro dos Estrangeiros, e ele vai jogar com as palavras, vai deliciar-se em jogos florentinos de linguagem diplomática e vai acabar a mentir de óptima consciência. Porém, face ao que se passou no Iraque e não só, sabemos já que isto não faz parte da inevitabilidade da natureza da política: faz parte da consequência natural da política que se oculta por ser má.
Miguel Sousa Tavares
4 Comments:
Guantanamo não é em Cuba? E enquantas prisões de Cuba são respeitados os direitos humanos?
A Merda é a mesma as moscas é que mudam...
O que aquí está em causa, são as mentiras do Fujão José Manuel Durão Barroso e do José Pinto Sócrates, o primeiro aliado dos EUA e Fujido para Bruxelas e outro apaniguado do Blair e por sua vez apaniguado do Bush.
É simples...
Só não vê quem não quer ver...
O que lá vai, lá vai
Vamos começar com uma citação de um velho conhecido nosso:
"Começa a ser caricata a guerra entre Ana Gomes e Luis Amado sobre os voos da CIA, como se daí surgisse um grande espanto nacional ou um imenso escândalo internacional. Aviões alugados pela CIA passaram pela Base das Lajes e outros aeroportos nacionais? Obviamente que sim, como eventualmente todos os dias passam por muitos países europeus. Levavam prisioneiros para Guantanamo ou outros locais? Vá lá saber-se, mas olhar e analisar a História em retrospectiva é sempre um exercício ridículo e perda de tempo e dinheiro. Convém ter os pés assentes na terra, por poucas vezes que seja: a CIA não é propriamente uma polícia política de uma ditadura, sem controlo nem vigilância dos poderes instituídos e constitucionais da democracia mais estabilizada do mundo. Será que não temos mais nada que fazer?",
pergunta-nos Luis Delgado, na sua diatribe semanal no DN, entre outros disparates do mesmo quilate (o senhor desta vez estava inspirado, parecia mesmo como nos bons velhos tempos).
Gostei particularmente da frase "olhar e analisar a História em retrospectiva é sempre um exercício ridículo e perda de tempo e dinheiro". De facto, como todos sabemos, deve-se analisar a História entrando numa máquina do tempo e dirigindo-nos para o futuro.
Este belíssimo artigo lembrou-me de toda esta história dos voos da CIA. E, algo que me era relativamente indiferente há uns tempos, deixa de o ser quando vejo o completo embaraço que toma conta de PSD, CDS e, espante-se, PS, quando a questão vem à baila.
Estava no poder a coligação, depois de o José Barroso ter servido as bicas nos Açores, então por que raio o PS se mija todo quando se fala no assunto? Será que o Sócrates, esse grande esquerdalho, também tem algo a esconder?
Por outro lado, por que razão o Governo não autoriza o envio para o Parlamento Europeu, que o solicitou, da informação detalhada sobre esses voos e os seus protagonistas? Quando Ana Gomes, essa histérica que devia andar ocupada a ser só feminista e a abolir os soutiens e a depilação, questiona exactamente isso - por que razão o envio dos dados ao PE foi impedido à última da hora pelo ministro Luis Amado - este limita-se a ser deselegante e a acusar a coleguinha do PS de "não ter sentido de Estado" e de querer fazer "chicana política", o que quer que isto seja. Por que raio não se limita a responder à pergunta, sem vir com mais retórica de merda?
Quem não deve não teme, creio eu.
Só uns rabetas como estes ministros me conseguiriam levar a dar razão a Ana Gomes..
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