segunda-feira, 30 de abril de 2007

FERIADOS VIVOS E MORTOS


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O discurso presidencial na Assembleia da República no dia 25 de Abril repetiu mais uma vez um tema recorrente nesse tipo de discursos: o que fazer com este dia para ele parecer "vivo" e não morto?
Ao longo dos anos, esta Câmara tem-se reunido em sessão solene para assinalar a passagem do dia 25 de Abril. Esta cerimónia tem vindo a repetir-se durante as últimas décadas, ano pós ano, sem grandes alterações de fundo. Creio que é chegado o tempo de nos confrontarmos com algumas interrogações. De tão repetida nos mesmos moldes, o que resta verdadeiramente da comemoração do 25 de Abril? Continuará a fazer sentido manter esta forma de festejarmos o Dia da Liberdade, ou será tempo de inovar? Estas dúvidas trazem consigo uma outra pergunta: não estarão as cerimónias comemorativas do 25 de Abril a converter-se num ritual que já pouco diz aos nossos concidadãos? Preocupo-me sobretudo com o sentido que este Dia da Liberdade possui para os mais jovens, para aqueles que nasceram depois de 1974. É deles o futuro de Portugal. O que dirá este cerimonial às gerações mais novas? É uma pergunta que não posso deixar de colocar à reflexão dos Senhores Deputados à Assembleia da República.


(Discurso de Cavaco Silva)

O que fazer com o 25 de Abril para não parecer mais um dia em que não se trabalha e se vai para o Algarve? A pergunta já fora feita por Eanes, Soares e Sampaio, quer a propósito do 25 de Abril, quer a propósito do 5 de Outubro. O que é que leva os presidentes a interrogar-se sobre o sentido do seu papel nas sessões solenes da Assembleia da República todas as vezes que têm de falar num feriado com origem histórica e cívica, já que nunca vi nenhum presidente interrogar-se sobre os feriados religiosos? Mais: por que razão essa interrogação se concentra nas cerimónias do 5 de Outubro e, em particular, nas do 25 de Abril e não se coloca com a mesma acuidade no 10 de Junho e muito menos no 1º de Dezembro? A razão é contra-intuitiva, mas é bem simples: é que o 25 de Abril ainda é um feriado vivo e, por isso, divide e é controverso.



Quando um presidente se interroga sobre o 25 de Abril e a sua eficácia comemorativa, está a fechar os olhos a uma evidência que passa a meia dúzia de metros da Assembleia: a "manifestação popular" do 25 de Abril que o PCP, a Intersindical, o BE, uma mão-cheia de pequenos grupos da extrema-esquerda que ainda existem e a ala esquerda do PS patrocinam com considerável sucesso na Avenida da Liberdade. Este ano até com um sucesso maior, dado que a "rua" tem estado bastante cheia de manifestações com grande quantidade de pessoas, devido ao agravamento da situação económica e social portuguesa. Mas esta manifestação é uma não-entidade, um curioso caso de como uma coisa que existe não existe nem para os media, nem para o Presidente, nem para a mecânica da opinião pública e publicada. Só a transformação deste 25 de Abril "popular", ou seja, da "esquerda", numa fantasmática irrealidade é que permite que o Presidente e os seus ecos governamentais digam, com absoluta calma e naturalidade, aquilo que, pelo menos para esta data, não é verdadeiro: que existe um problema de interesse e mobilização à volta do feriado do 25 de Abril. Bem pelo contrário, o 25 de Abril é um dos poucos feriados "vivos" que ainda existem, contrastando com a morte do 5 de Outubro (para todos menos os mações e os monárquicos) e dos outros feriados cívicos.


Várias fotos das "manifestações populares" do últimos anos, incluíndo a de 2007. Numa demonstração suplementar do carácter de não-acontecimento destas manifestações está a enorme escassez de fotografias disponíveis em linha, e dos resultados das pesquisas de imagem no Google.
Basta ver os blogues, que têm uma linguagem menos politicamente correcta, para se perceber que mesmo entre os jovens politizados ele está mais "vivo" que na própria Assembleia da República. Na Rede, uma parte da "direita", incluindo os jovens lobos da clientela de Paulo Portas, ou o seu espelho perfeito, os aderentes radicais chic pós-25 de Abril do BE, mantém uma enorme carga de politização do 25 de Abril, um 25 de Abril já completamente abstracto mas que ainda funciona como grande divisor na procura quase doentia de identidade que têm os grupos radicais.
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A sua convocatória apelava " à participação activa num acto de resistência à farsa Nazionalista, que terá início na Praça da Figueira, depois da manifestação do 25 de Abril ter terminado. Acreditamos que a impunidade e o à vontade com que os vários grupos “nazis” “fascistas” ou ditos “nacionalistas” agem tem de ser combatida aqui e agora, e sabemos que esse não é nem será nunca a tarefa de qualquer polícia ou instituição estatal, pelas suas afinidades e cumplicidades. A nossa denúncia é popular, não judicial.

Como tal, acreditamos que devemos exercer e expandir a autodefesa contra qualquer tipo de agressão por parte desses grupos que fazem o trabalho sujo que os capitalistas não querem fazer. (...) Esta manifestação, que é proposta por grupos libertários e autónomos, è aberta à participação de todas as pessoas e ideias que, de uma forma não partidária, desejam expressar a sua revolta e determinação, numa manifestação popular e unitária. Queremos deixar bem claro que somos e seremos capazes de nos organizar para agir e reagir sempre que necessário. Desejamos que a manifestação seja uma prova de força e determinação, chegando até ao seu final sem problemas nem distúrbios. Mas nunca renunciaremos ao nosso direito de autodefesa."

O problema é que a "vivacidade" do 25 de Abril, nas manifestações "populares" ou nos grupos radicais à direita e esquerda, é politicamente inconveniente e não é assimilável pelo discurso oficial que hoje une o Presidente com o primeiro-ministro e o PS, grande parte do PSD, e que obtém o lip service complexado do CDS-PP. Por isso têm que o matar para pretender ressuscitá-lo como outra coisa: um feriado morto, que se ensine nas escolas com a distância da viagem de Vasco da Gama e a unanimidade da opulência manuelina. No fundo a queixa é, digamos assim, pedagógica, as escolas não ensinam bem a "liberdade", como não ensinam bem a "boa educação", mudemos pois as coisas senhores deputados, em nome do 25 de Abril.

Tudo o que aqui digo sobre o 25 de Abril se aplica ao 1º de Maio, que também é um feriado "vivo", mas comemorado do lado não-existente. Pode aparecer um milhão de pessoas nas manifestações que a intelligentsia mediática aborrece-se com o evento com a mesma sensação de inutilidade que lhe dá a imprensa "económica" cheia de yuppies: são restos do Portugal "velho" que não quer reformas, nem progresso económico, nem dinamismo e flexibilidade empresarial, logo não existe para a política do presente. Para esta forma de "pensamento único" a nulificação do 25 de Abril e do 1º de Maio é uma forma de combate político, como para o PCP o é a sua afirmação nas ruas como componente do discurso comunista.

A ideia que a comemoração do 25 de Abril deve ser dirigida aos "jovens", essa outra entidade mítica da política moderna num país que tem cada vez menos jovens e cada vez mais velhos, é, bem vistas as coisas, um pouco absurda. Dirigi-la aos velhos teria certamente mais sucesso, porque para eles a data significa muito, muito bem ou muito mal, mas muito. Os retornados, os opositores ao regime de Salazar-Caetano, a elite que apoiava e beneficiava com a ditadura, o povo comum que nos primeiros dias depois de 25 de Abril "viveu" de forma existencialmente intensa uma revolução, as vítimas do PREC, todos os mais velhos têm alguma coisa a dizer sobre o 25 de Abril. Para os mais novos é em grande parte mais um TPC, mais umas aborrecidas aulas sobre o sinistro Salazar "que matou muita gente" e sobre a "liberdade", algo de tão abstracto porque felizmente ainda existe como o ar que se respira, ou seja, não se dá por ela a não ser quando não se tem.

Nos jovens, o 25 de Abril já está no mesmo catálogo de ignorância, irrelevância e indiferença que o feriado cívico que veio substituir, o 5 de Outubro. Já ninguém se recorda, mas o 5 de Outubro já esteve há uns anos tão "vivo" como hoje ainda está o 25 de Abril, quando os gritos dos republicanos, o que significava na prática a Maçonaria, de "viva a República" eram dados com lágrimas nos olhos e na expectativa da carga policial à porta dos cemitérios ou dos monumentos que lembravam os próceres da República. Depois, pouco a pouco, as "romagens" aos cemitérios foram tendo cada vez menos gente, que se gritava emocionada "viva a República" era da campa ao lado e não os ouviam os vivos. Mas, convém lembrar, o Portugal de 2007 ainda não é o Portugal dos jovens sem história, nem demográfica nem socialmente.

O 1º de Dezembro e o 10 de Junho são feriados ambíguos, porque os eventos que lhes deram origem já se apagaram de todo da memória colectiva. Esses sim estão completamente mortos, tanto mais mortos que ninguém pergunta sequer como os "transmitir aos jovens". Não estou a imaginar uma turba a atirar Pina Moura pela janela como fez a Miguel de Vasconcelos, nem camoneanos saudosos nas "comunidades" a recitar o vate pátrio e a mobilizar-se para a cerimónia das condecorações. A única parte "viva" do 10 de Junho é também aquela que escondemos: a memória dos militares mortos nas guerras coloniais, duplamente esquecidos, porque a sua memória choca com a parte "viva" do 25 de Abril e porque somos um dos poucos países que, tendo tido uma guerra recente, não temos sequer a dignidade da lembrança para oferecer aos que nela morreram, porque temos pouco respeito por nós próprios.

Resta pois o único feriado "vivo" de carácter histórico e cívico, o 25 de Abril, porque continua controverso e divisor, politicamente pouco neutro e mexendo com a paixão ou a repulsa das pessoas que o viveram e que ainda são muitas. Mas, como em tudo, é só esperar que o tempo o mate. A entropia fará o serviço de reduzir o 25 de Abril ao 5 de Outubro, como reduziu o 5 de Outubro ao 10 de Junho e o 1º de Dezembro a nada. Ficou alguma coisa? Ficou e muita, mas perderá a data como referência e ainda bem, porque significa que teve sucesso depois de estarmos todos mortos.

José Pacheco Pereira

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