O pretexto oficial da sua entrevista logo à noite na RTP é fazer o balanço de dois anos de governo. Mas o pretexto verdadeiro é outro - e é esse que motiva a principal curiosidade dos portugueses, que esperam ouvi-lo falar, finalmente, sobre o atribulado folhetim das suas qualificações académicas. É um sinal dos tempos que um caso aparentemente anedótico e exterior ao seu desempenho como primeiro- -ministro acabe por sobrepor-se à apreciação da actividade governativa. Mas a história das democracias está cheia de episódios assim, por mais que lhe custe (e nos custe) admiti-lo. Goste-se ou não, o que está neste momento a ser escrutinado não é a qualidade de um Governo mas a qualidade de carácter do seu chefe. E o juízo feito sobre esse carácter acabará por influenciar decisivamente a confiança que os cidadãos depositam em si e no seu Governo.
O sr. primeiro-ministro deixou arrastar demasiado tempo um episódio que deveria ter esclarecido assim que ele se tornou público, seguindo aquele sábio princípio de quem não deve não teme (ou outros semelhantes, como o da mulher de César). A sua vitimização como alvo de uma campanha de assassínio de carácter não só não o ajudou como envenenou ainda mais o clima de suspeição que já pairava à sua volta. As canhestras tentativas de pressão de alguns dos seus assessores junto de certos media para impedir a difusão do folhetim, somadas às sucessivas correcções do seu currículo académico no site do Governo, só pioraram - só podiam ter piorado - as coisas. E à medida que se iam conhecendo novos porme- nores obscuros e pouco compreensíveis do caso, a dificuldade de explicar o que deveria ser transparente tornou-se ainda maior. Receio, por isso, que seja já tarde para uma explicação que dissipe definitivamente as nuvens que se têm avolumado.
Segui com atenção a conferência de imprensa do ministro da Ciência e Ensino Superior na passada segunda-feira, em que divulgou o despacho provisório de encerramento compulsivo da Universidade Independente (UnI). José Mariano Gago foi sagaz e inteligente, como seria de esperar dele, nomeadamente na defesa vigorosa do exemplo dado pelo agora chefe do Governo - que "voltou à escola" e se preocupou em enriquecer o respectivo percurso académico quando nada o obrigava a isso. Só que também essa intervenção apareceu tardiamente e por demais "colada" à entrevista desta noite na RTP. Além disso, tirando a explicação fornecida sobre o "buraco" existente no seu ano de licenciatura na UnI, continuámos sem perceber muitos outros pormenores bizarros e incompreensíveis do imbróglio. Permanece misterioso o facto de uma universidade que no último ano acumulou tantas situações de descalabro e se transformou num caso de polícia tenha merecido, num passado ainda muito recente, apreciações positivas por parte das inspecções escolares. Como se compreende este mergulho súbito no abismo, quando não existiam oficialmente indícios anteriores de que isso poderia ocorrer? Há aqui, com efeito, excessivas contradições e numerosas peças que não encaixam no puzzle.
O sr. primeiro-ministro vai ser entrevistado esta noite por dois jornalistas com um percurso profissional acima de toda a suspeita. Infelizmente, isso não impede que essa entrevista pareça ter sido agendada politicamente em seu exclusivo benefício e num território controlado por si. Admito que se trate de uma suposição injusta, mas é o preço da suspeita que se instalou e, também, da sua obsessão permanente em domesticar a agenda mediática - obsessão que agora se vira contra si.
Se há um lugar onde é mediada a relação entre governantes e governados, esse lugar é a Assembleia da República. E no momento em que por iniciativa do PS se anuncia uma reforma que pretende revitalizar o Parlamento, por maioria de razão deveria ser aí o sítio certo para o sr. primeiro-ministro proceder ao balanço dos dois anos de Governo e esclarecer todas as dúvidas sobre o caso que, queira-o ou não, ameaça manchar a sua credibilidade.
Quando fui seu colega como deputado do PS, propus a realização de um debate entre políticos e jornalistas, onde cada uma das partes assumisse frontalmente as suas razões e responsabilidades respectivas. Talvez se tratasse de uma iniciativa ingénua, mas teria pelo menos o mérito de clarificar os campos e separar as águas. Você e alguns dos seus amigos viram isso com maus olhos, porque, para si, há no jornalismo uma natureza pérfida que não pode ser deixada à rédea solta e tem de ser ferreamente enquadrada pelo poder político. Eu, que sempre combati o corporativismo jornalístico e a promiscuidade entre o poder político e os media, constato agora que a sua incompreensão do papel do contrapoder jornalístico numa sociedade democrática não é estranha à súbita derrapagem da sua agenda mediática. Espero, muito sinceramente, que tire conclusões proveitosas desse facto. Seria útil para si, para o seu Governo e para a saúde da democracia portuguesa.
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Carta aberta a José Sócrates
Senhor primeiro-ministro,
O pretexto oficial da sua entrevista logo à noite na RTP é fazer o balanço de dois anos de governo. Mas o pretexto verdadeiro é outro - e é esse que motiva a principal curiosidade dos portugueses, que esperam ouvi-lo falar, finalmente, sobre o atribulado folhetim das suas qualificações académicas. É um sinal dos tempos que um caso aparentemente anedótico e exterior ao seu desempenho como primeiro- -ministro acabe por sobrepor-se à apreciação da actividade governativa. Mas a história das democracias está cheia de episódios assim, por mais que lhe custe (e nos custe) admiti-lo. Goste-se ou não, o que está neste momento a ser escrutinado não é a qualidade de um Governo mas a qualidade de carácter do seu chefe. E o juízo feito sobre esse carácter acabará por influenciar decisivamente a confiança que os cidadãos depositam em si e no seu Governo.
O sr. primeiro-ministro deixou arrastar demasiado tempo um episódio que deveria ter esclarecido assim que ele se tornou público, seguindo aquele sábio princípio de quem não deve não teme (ou outros semelhantes, como o da mulher de César). A sua vitimização como alvo de uma campanha de assassínio de carácter não só não o ajudou como envenenou ainda mais o clima de suspeição que já pairava à sua volta. As canhestras tentativas de pressão de alguns dos seus assessores junto de certos media para impedir a difusão do folhetim, somadas às sucessivas correcções do seu currículo académico no site do Governo, só pioraram - só podiam ter piorado - as coisas. E à medida que se iam conhecendo novos porme- nores obscuros e pouco compreensíveis do caso, a dificuldade de explicar o que deveria ser transparente tornou-se ainda maior. Receio, por isso, que seja já tarde para uma explicação que dissipe definitivamente as nuvens que se têm avolumado.
Segui com atenção a conferência de imprensa do ministro da Ciência e Ensino Superior na passada segunda-feira, em que divulgou o despacho provisório de encerramento compulsivo da Universidade Independente (UnI). José Mariano Gago foi sagaz e inteligente, como seria de esperar dele, nomeadamente na defesa vigorosa do exemplo dado pelo agora chefe do Governo - que "voltou à escola" e se preocupou em enriquecer o respectivo percurso académico quando nada o obrigava a isso. Só que também essa intervenção apareceu tardiamente e por demais "colada" à entrevista desta noite na RTP. Além disso, tirando a explicação fornecida sobre o "buraco" existente no seu ano de licenciatura na UnI, continuámos sem perceber muitos outros pormenores bizarros e incompreensíveis do imbróglio. Permanece misterioso o facto de uma universidade que no último ano acumulou tantas situações de descalabro e se transformou num caso de polícia tenha merecido, num passado ainda muito recente, apreciações positivas por parte das inspecções escolares. Como se compreende este mergulho súbito no abismo, quando não existiam oficialmente indícios anteriores de que isso poderia ocorrer? Há aqui, com efeito, excessivas contradições e numerosas peças que não encaixam no puzzle.
O sr. primeiro-ministro vai ser entrevistado esta noite por dois jornalistas com um percurso profissional acima de toda a suspeita. Infelizmente, isso não impede que essa entrevista pareça ter sido agendada politicamente em seu exclusivo benefício e num território controlado por si. Admito que se trate de uma suposição injusta, mas é o preço da suspeita que se instalou e, também, da sua obsessão permanente em domesticar a agenda mediática - obsessão que agora se vira contra si.
Se há um lugar onde é mediada a relação entre governantes e governados, esse lugar é a Assembleia da República. E no momento em que por iniciativa do PS se anuncia uma reforma que pretende revitalizar o Parlamento, por maioria de razão deveria ser aí o sítio certo para o sr. primeiro-ministro proceder ao balanço dos dois anos de Governo e esclarecer todas as dúvidas sobre o caso que, queira-o ou não, ameaça manchar a sua credibilidade.
Quando fui seu colega como deputado do PS, propus a realização de um debate entre políticos e jornalistas, onde cada uma das partes assumisse frontalmente as suas razões e responsabilidades respectivas. Talvez se tratasse de uma iniciativa ingénua, mas teria pelo menos o mérito de clarificar os campos e separar as águas. Você e alguns dos seus amigos viram isso com maus olhos, porque, para si, há no jornalismo uma natureza pérfida que não pode ser deixada à rédea solta e tem de ser ferreamente enquadrada pelo poder político. Eu, que sempre combati o corporativismo jornalístico e a promiscuidade entre o poder político e os media, constato agora que a sua incompreensão do papel do contrapoder jornalístico numa sociedade democrática não é estranha à súbita derrapagem da sua agenda mediática. Espero, muito sinceramente, que tire conclusões proveitosas desse facto. Seria útil para si, para o seu Governo e para a saúde da democracia portuguesa.
Vicente Jorge Silva
In:D.N.
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