segunda-feira, 11 de junho de 2007

JUSTIÇA DE MASSAS

Os jornais e a televisão interessam-se muito pelo crime e pela justiça.
Para já não falar do romance e do cinema, para os quais o crime é uma inspiração ilimitada.
Creio que sempre foi assim.
No século XIX, os jornais dedicavam a um e a outra longas páginas e relatos pormenorizados dos julgamentos, dos protagonistas e das circunstâncias dos crimes.
No século XX também, com excepção das décadas de Estado Novo, pois toda a informação sobre crimes e equiparados poderia comprometer a ficção do país em paz a viver habitualmente na reverência ao chefe e no temor a Deus.
Mas a democracia, é conhecido, cedo se interessou pelo crime e pela justiça.
Com o crime, em princípio, o que está em causa é o bem e o mal.
O que não quer dizer que, por vezes, o mal não seja mais atraente.
O crime revela o que há de pior em toda a gente, nos directamente envolvidos, nas testemunhas, nos observadores, nos mirones e no público em geral. E o que há de pior em toda a gente é, muitas vezes, o que mais interessa a toda a gente.
O crime traz tudo consigo.
Sexo, dinheiro, inveja e traição.
Poder, herança e ciúme.
Os condimentos são picantes, da ambição à rivalidade entre famílias, da vingança à luta de classes.
Quanto mais sórdido, maior a atenção geral. E toda a gente se interessa.
Não é apenas, como se diz nos meios urbanos chiques, o povo. Só que este se interessa por todos os crimes, enquanto as classes altas preferem os que afectam os da sua própria raça.
Com a democracia vieram novidades.
Primeiro, o crime aumentou.
Em número e em variedade.
Depois, a liberdade de imprensa tornou tudo mais visível, o que faz com que pareça que o aumento da criminalidade tenha sido ainda maior.
Finalmente, nas guerras das audiências, os jornais, as rádios e, sobretudo, as televisões lançaram-se sobre o crime e a justiça como rapinas esfomeadas.
Perante isto, a justiça e o legislador, no seu conjunto, reagiram às apalpadelas.
É indiscutível que a justiça, para o ser, tem de ser pública.
Mas o modo de tornar real este imperativo é mais controverso.
A possibilidade de os jornalistas poderem ter acesso a processos, salas de julgamento, testemunhas e protagonistas é matéria polémica.
Daí, aliás, o permanente debate sobre o segredo de justiça, as fugas de informação e o sigilo da instrução. A justiça em geral, mas muito particularmente a portuguesa, com poucas horas de voo democrático, receia a liberdade de expressão e o direito à informação.
O que não se verifica apenas pelas más razões.
Na verdade, o excesso de exposição corre o risco de desnaturar a justiça, transformando-a em justiça popular.
Mas também é certo que o segredo em demasia retira à justiça uma das suas fontes, o espírito do tempo, tornando-a ainda mais vulnerável às pressões ilegítimas, à força dos poderosos e ao arbítrio dos operadores de justiça.
Não é por acaso que a justiça, hoje, é administrada em nome do povo.
Na verdade, estamos perante um conflito de interesses e de legitimidades nem sempre fácil de resolver.
A pior ilustração deste conflito foi vista esta semana.
Em Santa Comba Dão, distrito de Viseu, um antigo agente da GNR começou a ser julgado. É arguido pela alegada autoria de três crimes de homicídio. As vítimas eram três raparigas, pouco mais do que adolescentes.
O arguido terá confessado os crimes. As provas pareciam de peso: restos de sangue no carro do arguido, traços identificadores e outras evidências eram abundantes. O processo anunciava-se fácil.
Na véspera de se iniciar o julgamento, a televisão emite uma série de programas e de documentos que surpreendem.
O arguido é entrevistado, dentro da prisão. Nega as confissões, que disse ter feito sob coacção policial, incluindo sob ameaça de arma de fogo. Acusa a Polícia Judiciária de violência no interrogatório. Um agente desta polícia presta igualmente declarações e defende-se. Dois advogados intervêm também. A televisão edita o material em forma de debate de adversários, uns contra os outros. O arguido insiste na sua inocência e nos maus tratos da polícia.
Vai mais longe: acusa um vizinho de todos os crimes.
Com nome.
Aquele que é assim acusado não surge nos ecrãs, não se sabe se porque não quis ou se por não ter sido entrevistado.
A opinião pública fica chocada.
A vila e os vizinhos perplexos. E, que se saiba, nada aconteceu.
Com a cumplicidade activa de várias instituições e o silêncio cúmplice de outras, partes interessadas no conflito ou um punhado de jornalistas sedentos montaram uma paródia judicial, um aperitivo ao gosto da mais miserável imprensa, para eventual júbilo dos mirones.
A pouco mais de 24 horas do julgamento, a televisão organiza um arremedo de justiça que nada deve à liberdade de expressão, nem ao direito à informação, mas que tudo tem de tosca pantomina.
A televisão procura as massas, a justiça ficou indiferente.
Houve juízes que autorizaram a entrevista?
Directores de prisão que a permitiram?
Dirigentes da Polícia Judiciária que autorizaram as declarações dos seus agentes? Tudo leva a crer que as respostas a estas perguntas sejam afirmativas.
Se o não tivessem sido, teria havido castigos ou comunicados oficiais.
Esta farsa de justiça não mereceu, até à data, uma actuação pronta dos Conselhos Superiores das Magistraturas, nem da Ordem dos Advogados, nem da Direcção Geral dos Serviços Prisionais.
Muito menos do Ministro da Justiça.
Nem do Procurador-geral da República.
Que se passa neste país adormecido, anestesiado, para que ninguém, com competência e dever, se tenha pelo menos comovido com esta aberração e tenha imediatamente tomado uma atitude na defesa da justiça e da decência?
É assim que, meticulosamente, impunemente, se destrói a justiça.


António Barreto

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