sexta-feira, 2 de maio de 2008

O ANO DOS SONHOS TORNADOS POSSÍVEIS

A década de 60 pôs em causa a ordem das coisas.
Os dois sistemas de mundo equilibravam-se no terror, e o compromisso dos intelectuais estabelecia-se na admissão de uma das partes e na negação da outra.
Não há terceira via, nem outra escolha.

A neutralidade é cobarde.
Na Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, a agitação não propõe outra coisa senão que tudo seja virado do avesso.

Direitos dos negros, assunção das responsabilidades morais e cívicas dos professores, dos escritores, dos cineastas, por aí fora.
Uma mistura de Marcuse com Camus, de Marx com Rimbaud.

Sartre escreverá que algo de surpreendente está a registar-se no outro lado do Atlântico.

A eclosão dos movimentos nacionalistas africanos é a lógica decorrência do explorado contra o explorador [Franz Fanon], e o renascimento da dignidade sufocada pelo peso do imperialismo [Henri Aleg].
Um pouco por todo o lado a contestação a um mundo velho, ao eurocentrismo, ao capitalismo norte-americano e à esfera soviética, atingem aspectos por vezes violentos.
Todas as manifestações sociais e artísticas possuem um fundo – se não político, pelo menos politizado.

A América Latina está em polvorosa.
Cuba é a medalha inoxidável de uma esperança à altura do homem.
Um pacto estratégico, designado pelo acrónimo Pacto ABC (Argentina, Brasil e Cuba) põe em sobressalto a Administração dos Estados Unidos, cuja política externa é semelhante, estejam no poder Republicanos ou Democratas.

Países cujos governos foram democraticamente eleitos, mas que questionam a hegemonia do vizinho do Norte, são alvo de golpes de estado patrocinados pela CIA.
A lista de invasões subtis [Darcy Ribeiro] é impressionante, como impressionantes são os assassínios, as torturas, as perseguições a quem se lhes opõe.

Em nome da liberdade, os serviços secretos e as agências de espionagem dos EUA jugulam qualquer tipo de antagonismo à sua imperial vontade.

Os levantamentos populares em países da esfera soviética suscitam apreensões das mais graves.

Os processos políticos movidos contra dissidentes atingem proporções inauditas.
Começam a surgir livros testemunhais, depoimentos terríveis, polémicas assanhadas, revelações acerca dos goulags, denúncias feitas por nomes respeitadíssimos.
O relatório Krustchev é o culminar de um período e o patamar para o nascimento de outro.

Em 1962, a academia portuguesa manifesta-se.

Em 1969 a agitação adquire outras dimensões.
O esquerdismo ambiciona destituir os partidos comunistas tradicionais, demasiado enfeudados às estratégias de Moscovo.
Mas em Portugal, os ecos dessas convulsões são muito ténues.
A censura aperta a vigilância e as cadeias estão repletas de presos políticos.
Para fugir à guerra colonial.

Milhares e milhares de portugueses fogem clandestinamente ou desertam. Fixam-se em França (a maior parte), em Inglaterra, na Suíça e na Suécia.
A emigração legal é discretamente estimulada por Salazar, que beneficia dos envios de dinheiro.


O Maio de 68, em Paris, não obtém, em Portugal, a expressão que a sua grandeza justifica, devido às draconianas limitações de informação e de liberdade.
A censura chega a cortar, literalmente, páginas inteiras de Le Monde;
Le Figaro, diário de Direita, é, amiúde, proibido de circular em Portugal; L’Express é tido como revista afecta aos comunistas!


É-nos ocultado o que, realmente, ocorre na guerra de África.
A morte de soldados é atribuída, amiudadas vezes, a acidentes de viação.
Os serviços cartográficos do Exército filmam episódios terríveis, situações dilacerantes, severamente ocultados aos portugueses.

A Imprensa dá maior ênfase à guerra do Vietname (e, mesmo assim, com as restrições que o regime impõe) do que aos conflitos africanos.
Nos cafés discute-se o que se escuta em rádios clandestinas, o que se lê nos jornais ilegais, as novidades trazidas por quem foi a Paris ou a Londres.
Viajar não é fácil.
Primeiro porque o dinheiro não abunda; depois, porque a obtenção de passaportes torna-se cada vez mais difícil.
Conhecemos de nome e de obra os cantores da Resistência, exilados no estrangeiro.
Pouco mais.



O Maio de 68 traz, no bojo, um projecto de transmutação cultural [Edgar Morin] e uma espécie de bandeira desfraldada no seguinte conceito: Quando se critica radicalmente, constrói-se.

A guerra de Argel é, para os contestatários da Sorbonne, o despertar de uma particular consciência política.
Evidentemente, as ondas provocadas pelos estudantes reflectiram-se, amenamente embora, pelos motivos atrás aduzidos, na contestação portuguesa de 1969.
De súbito, havia a presciência de que algo de novo existia sob o imediatamente visível.
Tem-se aqui conhecimento de que Cohen-Bendit não só enfrenta a polícia (há fotos famosas) como insulta Aragon, por cumplicidade com os crimes de Estaline.
As razões da cólera poderão, eventualmente, possuir, neste caso, um reflexo importante.
As reflexões e interpretações que possamos fazer revelam a riqueza do movimento, que provocou as maiores perplexidades nos intelectuais aparentemente mais qualificados para o esclarecer.

Quarenta anos volvidos que resta do Maio de 68?
A noção de que tudo é possível e de que o impossível não existe quando a força da liberdade se ergue sem temor.

A Imprensa, por exemplo, nunca mais foi a mesma: seria impensável voltar atrás.
Mesmo os jornais mais conservadores tiveram de acertar o passo pelo novo figurino.
Claro que há algo de inacabado e um certo gosto a cinzas no paladar dos que esperam sempre mais do que o mais.
Mas valeu a pena.
Uma geração teve a coragem de negar o que lhe era rudemente imposto. Uma geração fabulosa, numa época que a desafiou a criar uma aventura fabulosa.
Aprendemos que, por debaixo do pavimento, havia praias.
Foi a década de todos os sonhos e o ano de todas as esperanças.


B.B.

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2 Comments:

At 3 de maio de 2008 às 13:25, Anonymous Anónimo said...

Maio explicado a um filho

Querido filho,

Perguntas-me o que foi o Maio de 68. Desta vez, confesso, apanhaste-me de surpresa. Não é de repente que se fala dele. Mas posso dar-te umas pistas. Depois vai ao Google e terás muitas pontas por onde pegar. Mais do que as barricadas, ocupação de universidades e confrontos com a polícia - impressionei-me com o dia em que as porteiras (será que alguma era portuguesa?) desfilaram em Montmartre. Empunhavam cartazes onde se lia: "Nós também temos direito à palavra!" Fiquei a pensar. O Maio de 68 foi um tremor de terra que até levou as concierges para a rua.

Ao que parece tudo começou na universidade de Nanterre, ali perto, porque os estudantes queriam liberdade sexual. Depois o movimento alastrou à Sorbonne - fica no Quartier Latin -, um dos bairros onde se acolhiam intelectuais e estudantes. A Sorbonne é fechada, estudantes são presos. Seguiram-se manif's e barricadas. Em Paris só se andava a pé. Não havia gasolina nem transportes públicos. A polícia apanhou com muitas pedras retiradas das calçadas, deixando à vista a areia de Paris. A praia...Houve muitas centenas de estudantes e polícias feridos e carros incendiados. Na noite mais violenta os estudantes montaram dezenas de barricadas.

A certa altura os sindicatos entraram na festa dos estudantes. A greve geral deixa a pouco e pouco França num caos. Fábricas e empresas fecharam. Dez milhões sem trabalhar. Mas a simpatia inicial com que se ouvia os estudantes dizer " é proibido proibir", "não mudemos de emprego, mas o emprego da vida", "ter tempo para amar e para aprender a amar" -, acabou.

Quase no fim do mês os sindicatos conseguem aumentos e mais férias. Largam a estudantada, que os acusam de traidores. A maioria silenciosa gaullista faz uma imensa manif, sinal tudo estava a terminar. Mas o que parecia a derrota entrou nos costumes. As pessoas aprenderam a contestar, a ter autonomia, a respeitarem a diferença, a viverem a revolução sexual. E outras coisas. Olha, estou atrasada, há muito mais, mas tenho de ir trabalhar. Não te esqueças de ir ao Google. Deixo-te com uma das palavras de ordem: "Nem deus, nem dono". Que achas? Escreve-me. Mãe.

 
At 3 de maio de 2008 às 14:58, Anonymous Anónimo said...

Em ponte de sor devia de haver O MAIO 2008

 

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