sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A FOME, A MISÉRIA E A POBREZA

Não vejo um resquício de generosidade, uma minúscula fatia de sensibilidade humana nas últimas declarações do eng.º Francisco Van Zeller, patrão dos patrões da CIP. Pesarosamente o escrevo. O senhor surgia como um avô bondoso, voz limpa e pausada, voz sorridente se assim me posso exprimir. Agora, não. Parece outro homem. Até perdeu a dignidade do porte, Deus lhe perdoe. O eng.º Van Zeller opõe-se a quase tudo, menos aos interesses da classe que representa.

Opôs-se a que o novo Governo fizesse acordos com a Esquerda. Não se opôs a que os assinasse com o CDS. Vivemos num regime constitucional, republicano, cuja natureza exige a separação do poder económico do poder político. Às vezes, é verdade, o poder político volteia às cegas e recebe mais ordens do que toma decisões. Essa circunstância explica a desagregação da virtude e já chegámos a desinteressar-nos de discutir os princípios da liberdade e da democracia.

Notoriamente, o eng. Van Zeller aproveita-se deste vazio cívico, desta ausência ideológica e cultural para opinar sobre o que não deve, esquecendo-se do recato a que as suas nobres funções o devem obrigar.

Agora, opõe-se a que haja o menor aumento nos ordenados de quem trabalha. Quem trabalha que se aguente, dando continuidade a esse defeito nativo, à nossa vocação lacrimejante de sermos vítimas. Há dois milhões de portugueses na faixa da miséria: a expressão pobreza é um eufemismo apressadamente lançado à circulação quotidiana por políticos de baixa estirpe.

Conheço algumas famílias, e haverá certamente mais, cujos pais trabalham e os ordenados que recebem não chegam para as três refeições diárias. Acaso o deseje, sr. eng.º Van Zeller, acompanhá-lo-ei numa visita guiada aos redutos da miséria. Mas pode ir à Caritas, ou às outras várias organizações não governamentais (os Governos não se metem nisto) que socorrem milhares e milhares de portugueses.

António Perez Metello não ocultou, na TVI, a indignação que lhe causaram as ingerências dos patrões: ele não nomeou o engenheiro; disse: "o patronato", mas ferrou em público a indignidade. Os aumentos almejados são tão mínimos, tão escassos, tão módicos que qualquer objecção que se lhes faça soa a infâmia.

O eng.º Francisco Van Zeller, muito caritativo e assaz preocupado, manifestou a sua intensa solidariedade para com as pequenas e médias empresas, coitadas!, na síntese do opinante, que ficariam completamente desguarnecidas e até, talvez, tivessem de encerrar as portas. Ó eng. Van Zeller, ó eng.º Van Zeller, isso não são argumentos, são esconderijos esburacados de quem é, apenas e somente, o que sempre foi. Parece mal disfarçar-se com a capa da bondade quando está a defender o absolutamente indefensável.

Em 1845, Garrett escreveu, nas "Viagens na Minha Terra", o que custava um rico a um país: a ruína no trabalho, a dissolução moral, a miséria mais escanzelada. Garrett não era comunista.

Seria, agora, acusado dessa nefasta maldade. Só três anos depois de Garrett ter escrito aquela obra-prima, exactamente em 1848, é que foi editado o "Manifesto do Partido Comunista", de Marx e Engels. Será difícil admitir que o grande escritor tenha, por absurda antecipação, tomado as teses do "Manifesto" antes de ele ser publicado.

O eng.º Van Zeller foge à ideia que de ele fazia. O "bonhomme", elevado e atento, dissolveu-se a si mesmo. O patronato português, geralmente, é de um reaccionarismo bolorento. Além de demonstrar uma ignorância e uma incultura atrozes. Dir-me-ão: para ser bom empreendedor não é preciso saber quantos cantos tem "Os Lusíadas." Não é preciso, mas ajuda. O dr. Cavaco, por exemplo, não sabe. "Ao menos que sejam virtuosos os que não são instruídos", escreveu Ramalho Ortigão. A verdade é que nem isso. A virtude implica a consciência do que cada um de nós tem do dever e da honra. Ora, quem vive num plano alto da sociedade possui a responsabilidade ética de zelar e defender os interesses dos mais desprotegidos. Tirar-lhes o pouco que estes têm, compromete, inteiramente, quem o pratica.

Nenhum destes patrões conhecidos domina, pela admiração, as nossas curiosidades. O ressentimento é natural que nasça naqueles que sobrevivem nos tormentos das dificuldades e sabem que há "gestores" a auferir, mensalmente, vinte mil, trinta mil e dez mil euros, a beneficiarem de bónus vultuosíssimos e a pavonearem-se nos campos de golfe e nas festanças do jet-set (como é feia, aquela gente!).

Naturalmente, declarações deste jazes e estilo causam, naqueles que existem na miséria e no sofrimento, a maior das indignações. Homens e mulheres que trabalharam uma vida inteira e vivem em tugúrios, comem mal ou não comem, vêem-se impossibilitados de mandar os filhos para os estudos, esses homens e essas mulheres, muitos e muitos milhares, sentem-se ofendidos quando conhecem que há "gestores" com reformas de três mil e seiscentos contos mensais (moeda antiga) depois de seis meses de "funções" administrativas
.

B.B.

Etiquetas: , , , , , , ,

3 Comments:

At 23 de outubro de 2009 às 23:30, Anonymous Anónimo said...

Ao ler o artigo sobre a pobreza e miséria que temos no nosso País (será que ainda é nosso?Com a dívida externa que temos duvido!), em que se mencionam as vergonhosas reformas dos administradores públicos, lembrei-me da situação que vivi no Centro de Saude de Ponte Sor.Como sou diabético vivi ontem uma situação complicada.Tive os níveis de glicémia a 57 e fui ás urgencias. O médico de serviço (Drº Spínola ) prestou-me o primeiro socorro (e muito bem.O meu obrigado desde já) enviou-me para Hosp.Portalegre e recuperei bem felizmente.Hoje fui ao meu médico de familia e, antes de ser atendido por ele, passei pelo gabinete da enfª assistente que me pesou e mediu a tensão arterial.Para confirmar o teste que fiz em casa pedi-lhe para ver a glicémia.Recebi como resposta,com muita simpatia, que não podia porque tinham máquina mas não tinham tiras de teste.Fiquei sem palavras.Um centro de saúde com serviço de urgências e as enfermeiras nas consultas externas não tem tiras para fazer o teste?Como é que os médicos,sem saberem os níveis de glicémia que os doente têem,naquele momento, passam as receitas se for necessário?
Se baixassem o valor das reformas atrás citadas é provável que houve dinheiro para as ditas e necessárias tiras.Ao cuidado de quem de direito.

 
At 24 de outubro de 2009 às 16:32, Anonymous Anónimo said...

O Governador brincalhão
Vítor Constâncio declarou hoje, no Funchal, que "se não houver realismo salarial haverá mais desemprego" em Portugal.
Quase podia dar o seu próprio caso como um exemplo de desprendimento: é que, em 2008, não quis o aumento do seu vencimento enquanto Governador do Banco de Portugal.
O problema é que depois tinha de explicar que nesse ano ganhou cerca de 250 mil euros. Ou seja, quase 20 mil euros por mês…
Porreiro, pá!

 
At 25 de outubro de 2009 às 16:01, Anonymous L. Carvalho said...

O doutor Van Zeller está contente com Vieira da Silva e Teixeira dos Santos no governo. Um amigo meu todo PPD, da ala cavaquista (mas desiludido com ele!), está confiante no governo Sócrates (R) de recauchutado.

Mas o doutor Van Zeller está possesso por uma sindicalista, mesmo da ala amarela, ir mandar
(ou ser mandada) no Ministério do Trabalho. O cabecilha dos patrões até evoca o vermelho nome em vão dos comunistas do PREC. Não o faz por menos e perfila-se agora,não como o defensor do aeroporto na Margem Sul ( porquê?), mas como o ponta de lança do cavaquismo de Belém.

A pose de Van Zeller está cada vez mais óbvia no retrato, e não há fotógrafo que lhe consiga tirar outra pose menos cara de pau (nem eu!!).

Portanto: a direita está contente com a equipa de Sócrates. No essencial o patronato manobrador, aquele que vive de empreitadas públicas e subsídios agrícolas, está em boas mãos. E nem Ferreira Leite, nem aquele rapaz que marca passos para ser chefinho dos laranjas desavindos, conseguiriam um team tão jeitoso para satisfazer o patronato. Esse mesmo que gera despedimentos em vez de trabalho, que promove os baixos salários e a desqualificação, esse mesmo patronato cuja maioria (85 por cento) mal tem a quarta classe, mal sabe gerir, nem inovar, mas que está sempre com a ponta afiada para a lamuria, o desânimo, tudo em nome da crise. E o Doutor Van Zeller é o rosto dessa classe medíocre que não soube adaptar-se aos novos tempos, aos desafios da globalização, à inovação do comércio digital.

Por isso ficam tão irritados porque uma sindicalista vai para a Praça de Londres, olhar pela luta de classes do alto do 20º andar do arranha -céus do antigo Ministério das Corporações de Marcelo Caetano.

Só falta ao patronato erguer uma estátua a Vieira da Silva, o autor do nefasto código do trabalho e o mentor da reforma da Segurança Social, essa que mudou as regras no fim da vida contributiva fazendo do Estado uma entidade desonesta, sem ética, nem moral. Tudo aquilo que o patronato do século passado gosta.

Viera da Silva, que tirou a quem desconta, pode agora dar a quem conta: ainda há uns milhões do QREN para distribuir pelos famintos. A venda de Ferraris vai melhorar.

 

Enviar um comentário

<< Home