PARA ACABAR COM...
Ataque ao Estado Social
O Estado social não é apenas de esquerda, mas também de direita, não é apenas social-democrata e socialista, mas também liberal e conservador.
Os intelectuais da direita liberal, incluindo vários amigos e ex-alunos que muito aprecio, têm protagonizado um forte ataque ao Estado social. A sua crítica articula afirmações factuais com princípios programáticos. “Factos: construído pela esquerda, o Estado social absorve os recursos do país e conduz ao empobrecimento da sociedade. Programa: para que Portugal adquira um novo rumo, não podemos limitar-nos a reformar o Estado social – temos de optar por um novo modo de vida, sem a muleta protectora do Estado, e só a direita o pode fazer.” Um dos aspectos mais interessantes desta tese é o seu radicalismo. Ela não afirma que é necessário reformar o Estado social (sobre isso, estaríamos de acordo). O que ela afirma é a necessidade de acabar com ele.
O primeiro problema da tese referida é a sua falta de base histórica. O Estado social não é uma construção da esquerda. É consensual considerar-se que ele começou a ser criado através da introdução da segurança social pelo governo conservador e autoritário de Bismarck, na Prússia. No Reino Unido, o Estado social foi introduzido pelos governos liberais de Asquith e Lloyd George, a partir das ideias de Beveridge e Keynes. Na Suécia foi mais desenvolvido pelos sociais-democratas. Mas não devemos confundir o Estado social com o modelo sueco. Este é apenas um dos vários modelos de Estado social. Os exemplos poderiam multiplicar-se e levam à conclusão de que o Estado social não é apenas de esquerda, mas também de direita, não é apenas social-democrata e socialista, mas também liberal e conservador.
Em Portugal, o Estado social começou a emergir no tempo do marcelismo, com a evolução da despesa em educação, saúde, assistência e segurança social. Mas foi apenas depois do 25 de Abril de 1974 que este Estado, ainda débil, se desenvolveu. Não podemos dizer que foi a esquerda a fazê-lo. O recente Estado social português foi sendo construído tanto por governos da esquerda como da direita. Não há qualquer base histórica para colocar a responsabilidade pelo Estado social português no lado da esquerda, ou para colocar o projecto do desmantelamento do mesmo do lado da direita.
O segundo problema da tese acima exposta é a ideia de que o Estado social conduz ao empobrecimento da sociedade. Como se pode concluir de alguns dos exemplos de Estado social referidos, muitos dos países com um Estado social bem alicerçado são também dos mais ricos do mundo. O caso dos países nórdicos é exemplar, com a conciliação entre uma alta protecção social e os maiores índices de bem-estar económico e desenvolvimento humano. Mas a receita não vale apenas para os mais ricos. O prémio Nobel da Economia Amartya Sen tem demonstrado que uma despesa social criteriosa pode alavancar o próprio desenvolvimento dos países mais pobres.
O terceiro problema da tese apresentada é a sua falta de apelo moral. Nos idos de 1974, o filósofo americano Robert Nozick tentou conferir apelo moral à ideia libertária de oposição ao Estado social apresentando-a como uma Utopia – um conceito que, até aí, parecia ser monopólio da esquerda socialista. Mas, para a maior parte das pessoas, essa utopia não é muito convincente. Ela corresponde a uma sociedade de risco máximo, no qual o dinheiro tudo compra, com excepção das liberdades básicas. Nesta Utopia, os mais pobres, fracos ou azarados são abandonados à sua sorte. Esta sociedade utópica, com enormes desigualdades, é também mais instável, agressiva e insegura – o que não é bom para ninguém, nem mesmo para os mais ricos.
O quarto problema da tese acima exposta é o seu desfasamento em relação aos partidos e ao eleitorado da direita. A base sociológica da direita em Portugal e na Europa é favorável à manutenção e ao aprofundamento do Estado social. O discurso da direita liberal ou libertária quase nunca vingou na Europa, com a notável excepção dos tempos de Margaret Tatcher. Mas tratou-se mesmo de uma excepção, contrária à tradição do Partido Conservador e também ao seu presente. Por fim, a governação de Tatcher, tão importante para liberalizar a economia e relançar o dinamismo da sociedade inglesa, em nada afectou na prática a manutenção do Estado social.
Entre o eleitorado de direita em Portugal, porventura ainda mais do que à esquerda, não cabe na cabeça de ninguém deixar de ter uma reforma garantida pelo Estado – por pequena que seja –, deixar de poder recorrer ao centro de saúde ou à urgência do hospital, não ter comparticipação nos medicamentos, etc. Por isso, não admira que os partidos de direita – incluindo o CDS – tenham sido tão ou mais contundentes do que a esquerda na crítica às recentes declarações do ministro da saúde favoráveis ao fim do princípio da gratuidade do Serviço Nacional de Saúde.
Em suma: o ataque ao Estado social, apesar do brilhantismo da direita liberal que o tem protagonizado, não é realista nem mobilizador.
João Rosas
Os intelectuais da direita liberal, incluindo vários amigos e ex-alunos que muito aprecio, têm protagonizado um forte ataque ao Estado social. A sua crítica articula afirmações factuais com princípios programáticos. “Factos: construído pela esquerda, o Estado social absorve os recursos do país e conduz ao empobrecimento da sociedade. Programa: para que Portugal adquira um novo rumo, não podemos limitar-nos a reformar o Estado social – temos de optar por um novo modo de vida, sem a muleta protectora do Estado, e só a direita o pode fazer.” Um dos aspectos mais interessantes desta tese é o seu radicalismo. Ela não afirma que é necessário reformar o Estado social (sobre isso, estaríamos de acordo). O que ela afirma é a necessidade de acabar com ele.
O primeiro problema da tese referida é a sua falta de base histórica. O Estado social não é uma construção da esquerda. É consensual considerar-se que ele começou a ser criado através da introdução da segurança social pelo governo conservador e autoritário de Bismarck, na Prússia. No Reino Unido, o Estado social foi introduzido pelos governos liberais de Asquith e Lloyd George, a partir das ideias de Beveridge e Keynes. Na Suécia foi mais desenvolvido pelos sociais-democratas. Mas não devemos confundir o Estado social com o modelo sueco. Este é apenas um dos vários modelos de Estado social. Os exemplos poderiam multiplicar-se e levam à conclusão de que o Estado social não é apenas de esquerda, mas também de direita, não é apenas social-democrata e socialista, mas também liberal e conservador.
Em Portugal, o Estado social começou a emergir no tempo do marcelismo, com a evolução da despesa em educação, saúde, assistência e segurança social. Mas foi apenas depois do 25 de Abril de 1974 que este Estado, ainda débil, se desenvolveu. Não podemos dizer que foi a esquerda a fazê-lo. O recente Estado social português foi sendo construído tanto por governos da esquerda como da direita. Não há qualquer base histórica para colocar a responsabilidade pelo Estado social português no lado da esquerda, ou para colocar o projecto do desmantelamento do mesmo do lado da direita.
O segundo problema da tese acima exposta é a ideia de que o Estado social conduz ao empobrecimento da sociedade. Como se pode concluir de alguns dos exemplos de Estado social referidos, muitos dos países com um Estado social bem alicerçado são também dos mais ricos do mundo. O caso dos países nórdicos é exemplar, com a conciliação entre uma alta protecção social e os maiores índices de bem-estar económico e desenvolvimento humano. Mas a receita não vale apenas para os mais ricos. O prémio Nobel da Economia Amartya Sen tem demonstrado que uma despesa social criteriosa pode alavancar o próprio desenvolvimento dos países mais pobres.
O terceiro problema da tese apresentada é a sua falta de apelo moral. Nos idos de 1974, o filósofo americano Robert Nozick tentou conferir apelo moral à ideia libertária de oposição ao Estado social apresentando-a como uma Utopia – um conceito que, até aí, parecia ser monopólio da esquerda socialista. Mas, para a maior parte das pessoas, essa utopia não é muito convincente. Ela corresponde a uma sociedade de risco máximo, no qual o dinheiro tudo compra, com excepção das liberdades básicas. Nesta Utopia, os mais pobres, fracos ou azarados são abandonados à sua sorte. Esta sociedade utópica, com enormes desigualdades, é também mais instável, agressiva e insegura – o que não é bom para ninguém, nem mesmo para os mais ricos.
O quarto problema da tese acima exposta é o seu desfasamento em relação aos partidos e ao eleitorado da direita. A base sociológica da direita em Portugal e na Europa é favorável à manutenção e ao aprofundamento do Estado social. O discurso da direita liberal ou libertária quase nunca vingou na Europa, com a notável excepção dos tempos de Margaret Tatcher. Mas tratou-se mesmo de uma excepção, contrária à tradição do Partido Conservador e também ao seu presente. Por fim, a governação de Tatcher, tão importante para liberalizar a economia e relançar o dinamismo da sociedade inglesa, em nada afectou na prática a manutenção do Estado social.
Entre o eleitorado de direita em Portugal, porventura ainda mais do que à esquerda, não cabe na cabeça de ninguém deixar de ter uma reforma garantida pelo Estado – por pequena que seja –, deixar de poder recorrer ao centro de saúde ou à urgência do hospital, não ter comparticipação nos medicamentos, etc. Por isso, não admira que os partidos de direita – incluindo o CDS – tenham sido tão ou mais contundentes do que a esquerda na crítica às recentes declarações do ministro da saúde favoráveis ao fim do princípio da gratuidade do Serviço Nacional de Saúde.
Em suma: o ataque ao Estado social, apesar do brilhantismo da direita liberal que o tem protagonizado, não é realista nem mobilizador.
João Rosas
1 Comments:
Os governos deverão financiar pacotes de “serviços clínicos essenciais” e definir a lista de serviços tendencialmente gratuitos.
Reconheçamos que é difícil satisfazer as expectativas de todos os ‘stakeholders’ no que diz respeito às reformas preconizadas para o Serviço Nacional de Saúde (SNS). As críticas de origem política, profissional e económica às actuais propostas e dinâmicas far-se-ão ouvir de forma crescente nos próximos meses.
Por isso, é importante que façamos um esforço no sentido de promover a disseminação de conceitos e parâmetros comuns para que o debate construtivo possa ter lugar. Ou seja, não é intelectualmente honesta a exigência de soluções para problemas que não são sequer claramente bem compreendidos entre todos os protagonistas. Neste sentido, proponho que iniciemos o esclarecimento de algumas premissas fundamentais que, na perspectiva internacional, legitimam um debate sério sobre a política de saúde nacional.
Uma primeira premissa, que poderá chocar alguns gestores da Saúde portugueses, é que a Organização Mundial de Saúde (OMS) está a ser, gradualmente, substituída pelo Banco Mundial (BM) na definição das prioridades das políticas globais de Saúde. Trata-se de uma mudança de paradigma das políticas de Saúde promovida, entre outros fenómenos, pela consequência lógica da comparação entre três modelos tradicionais de financiamento: 1) o modelo de reembolso é vulnerável às falhas de controlo de custos; 2) o modelo integrado, em que o Estado é prestador e financiador, é vulnerável às falhas de micro-eficiência; 3) o modelo da contratualização parece oferecer potencial para combinar eficiência macro e eficiência micro.
Foi a partir da comparação entre modelos de financiamento da Saúde que se deu a génese das reformas da política de Saúde em vários países desde 1990. Dos EUA ao Reino Unido, passando pela Holanda, Espanha, Itália e pela Alemanha, surgiu a prática discursiva da “reinvenção” da governação, a criação de novas instituições e, sobretudo, de novas responsabilidades e papeis para os sectores público e privado em igualdade de circunstâncias. Assim, foram introduzidas dinâmicas de “concorrência gerida” no sector da prestação de cuidados de Saúde, ou seja, introduziram-se formas de “mercado interno no SNS” aberto, em diferentes graus e formatos, à presença dos agentes privados com fins lucrativos.
Embora esta dinâmica de mercado esteja ainda na sua infância, a verdade indiscutível é que a atenção do debate sobre as políticas de Saúde começa a afastar-se da crítica ao “aumento descontrolado de custos” e passa a centrar-se nos “resultados obtidos com a despesa da saúde”. Ou seja, o debate passa a centrar-se na criação de valor resultante do investimento nos SNS nacionais. Ora, o BM está, claramente, muito interessado nesta segunda dinâmica de desenvolvimento das políticas de Saúde e propõe alguns princípios que, depois de aceites, deverão redefinir, profundamente, as políticas e os sistemas de Saúde, sendo certo, porém, que os princípios paradigmáticos delineados pela OMS para as políticas de saúde continuam, ainda assim, a alimentar esforços e discursos a este nível.
Porém, há sinais claros de que a agenda da OMS é pressionada pelo BM, nomeadamente no contexto das suas premissas para o desenvolvimento económico e respectivas reformas estruturais em que, no que diz respeito à Saúde, o BM define as seguintes estratégias:
a) A promoção de ambientes que contribuam para a melhoria da saúde das famílias deve realizar-se através do crescimento económico e educação (e não de mais serviços de saúde)
b) A despesa pública na Saúde deverá promover a redução da “má” despesa em saúde (a que promove poucos ganhos em saúde) e os governos deverão financiar pacotes de “serviços clínicos essenciais” e definir a lista de serviços tendencialmente gratuitos.
c) Os governos deverão promover diversidade e concorrência na provisão dos serviços clínicos não essenciais através de estímulos aos seguros de saúde, aos sectores público e privado de prestação e publicar as comparações de ‘performance’ dos prestadores do SNS.
E em Portugal, quando debateremos a definição de “serviços clínicos essenciais”? E a definição de estratégias de promoção de diversidade e concorrência na lógica de redução da “má despesa em saúde”?
Enviar um comentário
<< Home