quarta-feira, 26 de abril de 2006

FINGIR

Cavaco Silva foi ontem ao Parlamento fingir um discurso à esquerda.
Assim mesmo: fingir.
José Sócrates agradeceu e o país que votou em Alegre e Soares gostou.
Mas Cavaco precaveu-se.
No caminho para esse Portugal socialmente mais justo deixou pistas que lhe permitem forçar uma mudança de direcção política.
Parece coisa pouca, mas é coisa grande.

Primeiro: a ideia de Cavaco não é virar à direita.
É bem mais complexa: consiste em exigir que o Estado passe a concentrar as suas energias nos verdadeiramente desfavorecidos - desafiando assim o paradigma da universalidade - ao mesmo tempo que transfere uma fatia do seu anterior poder directamente para os cidadãos.

Segundo: isto implicou (ao longo do discurso) a defesa de dois conceitos que são estranhos à esquerda tradicional.
A recuperação da família como veículo primário de um Estado Social (e de responsabilização individual) e a defesa de uma transferência de poder para as instituições privadas de solidariedade social.
Elas serão, segundo Cavaco, a forma de chegar a um Portugal mais justo - ou seja, não é exclusivamente do Estado que depende a justiça social.

Terceiro: levando as ideias de Cavaco Silva ao limite poder-se-ia dizer que elas introduzem em Portugal conceitos neoconservadores - essa doutrina que ficou conhecida por ser a principal influência de George W. Bush.
É lá que se encontra a recuperação da família como centro nevrálgico de uma reforma social.
Mas há mais referências: o desafio aos conceitos de universalidade - tão estranho à esquerda portuguesa - parece recuperar as ideias reformistas do primeiro-ministro britânico Blair quando este pediu soluções ao ministro Frank Field - e este criou um sistema em que a universalidade era privilégio apenas dos mais desfavorecidos (para todos os outros existia o “welfare to work”, ou seja, recebiam os que estavam dispostos a trabalhar).

Quarto: Se Cavaco quiser de facto seguir os caminhos que ontem anunciou, eles sugerem que a sua batalha em torno da justiça social é apenas um caminho para chegar onde o seu “economês” já o levaria.
Isto é, a um Estado magro que concentra as suas energias a responder às necessidades dos verdadeiramente necessitados.
O resto faz o mercado, ou seja os indivíduos - organizados em torno daquilo a que Cavaco chamou o Compromisso Cívico.
Dito de outra forma, o Estado a cuidar dos mais fracos, a família (e as instituições privadas de solidariedade) a olhar pelos remediados e, finalmente, cada um a olhar por todos.

Quinto: Sócrates festejou antes do tempo.
Cavaco, se desejar mesmo o que ontem sugeriu querer, está a tentar dizer que tem um caminho alternativo ao que a esquerda propõe.
Ou melhor: o PSD.

M. A. Figueiredo

3 Comments:

At 27 de abril de 2006 às 08:54, Anonymous Anónimo said...

YO NO CREO EN BRUXAS PERO QUE LAS HAY... LAS HAY

É um princípio inquestionável da nossa Constituição, a igualdade dos cidadãos perante a lei. Mas não é bem assim, há uma aldeia ‘gaulesa’ que resiste, o Fisco, aí há uns que são mais iguais do que outros. No mesmo país onde o governo decidiu divulgar os nomes dos que devem ao fisco, o mesmo governo decidiu também que há uns quantos que não correm esse risco e, como se isso não bastasse, até estão dispensados de pagar a totalidade das dívidas, basta-lhes pagar 5% desse montante para entrarem no Reino dos Céus.

O esquema da fraude detectado pela operação furacão revelado pela comunicação social era simples. Um empresário com elevados lucros que quer fugir ao fisco pede apoio de consultadoria a um banco. O banco constitui uma empresa fictícia num paraíso fiscal, em nome do candidato a burlão. Esta empresa emite facturas ao dito empresário de valor igual ao lucro. Esse lucro é reduzido a zero. Essas facturas são pagas pelo empresário à empresa fictícia que é dele. O dinheiro é efectivamente transferido para o tal paraíso fiscal e fica ao abrigo de qualquer imposto porque nesse paraíso fiscal não se pagam impostos. De seguida o banco coloca em nome do empresário, numa conta do estrangeiro, investe-a em acções, em obrigações ou outros valores mobiliários. O banco recebe uma comissão e o empresário, ganharam ambos com a fraude.

Em 2004 o fisco detecta em Braga este esquema e o Ministério Público (supõe-se que em colaboração com o fisco, como a comunicação social revelou) uma investigação.

Em 29 de Julho de 2005 é publicado o orçamento rectificativo pelo governo Sócrates. Nesse diploma (Lei 39-A/2005) é aprovado o RERT - Regime Especial de Regularização Tributária, que descriminaliza as operações de fraude fiscal, desde que seja apresentada uma declaração, se transfira o dinheiro para Portugal e se pague uma taxa de 5% sobre o montante dos capitais fugidos ao fisco.

Para que não fiquem dúvidas o RERT diz expressamente que se aplica aos "depósitos, certificados de depósito, valores mobiliários e outros instrumentos financeiros" fugidos para o estrangeiro. Que simpatia este fisco…

Entregue a declaração, transferido o dinheiro para Portugal e paga a taxa de 5%, o RERT explicita que:

1. Extingue-se toda a responsabilidade criminal

2. Extinguem-se todas as obrigações fiscais

Em português médio isso significa que o governo Sócrates amnistiou do crime de fraude fiscal e perdoou as dívidas fiscais a todas as pessoas que fugiram ao fisco e colocaram capitais no estrangeiro. Mesmo que se prove essa fraude, está aprovada a amnistia.

E como se tanta bondade não bastasse, estes burlões mereceram tratamento VIP, a declaração e a taxa dos 5% não são entregues ao fisco, mas antes ao Banco de Portugal, que garantirá total confidencialidade, isto é, nem o fisco fica a saber quem são os que fogem ao fisco em Portugal. Os outros portugueses, não necessariamente burlões pois nem todas as dívidas resultam de burlas, vão ver os seus nomes escarrapachados na Internet, e com ficha nos serviços, serão contribuintes de risco.

No final de 2005 o Ministério Público e a Polícia Judiciária lançam a operação Furacão que teve grande impacto na comunicação social, que por aquilo que se tem ouvido tende a tornar-se em Suão.

Nessa data já estava em vigor o RERT, que amnistiou a fraude. No Sábado passado o Público traz a notícia de uma amnistia anunciada. Diz o Público que o processo da operação furacão ia ser arquivado.

Temos que respeitar os princípios e partir do princípio de que se trata de pura coincidência, como nos filmes teremos que aceitar a regra de que “qualquer coincidência com a realidade era pura coincidência”. O governo não sabia nem da investigação nem dos nomes dos investigados, o segredo de justiça é assim.

Mas esta é mais uma daquelas situações em que apetece ser espanho e dizer “yo no creo en bruxas pero que las hay... las hay”.

 
At 27 de abril de 2006 às 14:55, Anonymous Anónimo said...

Ao contrário do que (quase) todos previram e escreveram, a entrada em cena de Cavaco Silva não representa, no curto prazo, nenhum risco de maior para a oposição de direita. Mais do que PSD e CDS foi o PCP e o Bloco quem revelou desconforto com o discurso do Presidente da República no 25 de Abril.
Marques Mendes percebeu que, enquanto Cavaco estiver indisponível para conflitos, ele só tem que aproveitar. Procurando marcar pontos. Mendes, um político experiente e conhecedor da matéria, não terá escolhido por acaso o dia de ontem para dar uma entrevista a um jornal económico a assumir a impopular defesa de despedimentos na Função Pública como meio indispensável para endireitar as contas do Estado. Fê-lo nesta altura por saber que a sua oportunidade de afirmação no confronto com o Governo expirará quando Cavaco passar da fase pedagógica da «cooperação estratégica» à fase pró-activa. E isso pode durar, se não todo o primeiro mandato presidencial, pelo menos parte dele. É nesse pressuposto que Mendes encontra em Cavaco um aliado para a gestão da sua acção política. Sabendo que é ele o primeiro a ir a votos.

 
At 28 de abril de 2006 às 17:52, Anonymous Anónimo said...

Quando Cavaco disser o que pensa das finanças públicas, do estado do Estado e da real capacidade do Governo para inverter o crónico “monstro”, a sua autoridade na matéria não deixará espaço para muito mais.
Quando Cavaco disser o que pensa das finanças públicas, do estado do Estado e da real capacidade do Governo para inverter o crónico "monstro", a sua autoridade na matéria não deixará espaço para muito mais.

Marques Mendes sabe-o e por isso mesmo não terá ficado agastado por Cavaco não lhe seguir a agenda no discurso do 25 de Abril. O Presidente não falou de Justiça, nem da crise económica e ignorou os avisos negros dos recentes relatórios do Banco de Portugal, FMI e OCDE.

Ainda bem. Via verde para o líder da oposição ir apresentando contrapontos e soluções, enquanto é tempo, enquanto Cavaco não esgotar o prazo estratégico da sua "cooperação estratégica". Já a esquerda vai ter que puxar pela imaginação. Com Cavaco a falar directamente aos que não têm voz, Jerónimo, Louçã - e até Sócrates - vão ter, provavelmente, o aliado com que menos sonhavam.

É que Cavaco não se limitou a roubar ao primeiro-ministro e à esquerda em geral a bandeira do social - deu pistas discretas mas concretas sobre a forma de resolver as graves disparidades do tecido social português. Para o novo Presidente, o caminho passa por se perceber que não pode ser o Estado a resolver tudo. Algo que o PCP e o Bloco nunca perceberão. E que o PS dificilmente deixará Sócrates perceber.

 

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