domingo, 14 de janeiro de 2007

VIAGEM À ÍNDIA



Quando, em 1992, Mário Soares fez a primeira visita de um Presidente português à Índia, o que a opinião pública reteve, até hoje, foi a célebre imagem do casal presidencial baloiçando-se em cima de um elefante (inconvenientemente patrocinado pela Fiat), em Jaipur, a cidade dos marajás. A fotografia ficou como a imagem de marca da viagem e do próprio estilo viajante de Soares - incansável, luxuoso e diletante. Afinal, o tempo encarrega-se de repor algumas coisas no seu justo lugar. Primeiro, desmentindo a lenda de que Soares tenha sido um Presidente incansavelmente viajante: Sampaio viajou mais, sem dar nas vistas. Depois, corrigindo essa mítica ideia que ficou da viagem à Índia. Soares levou uma comitiva de 135 pessoas, jornalistas incluídos; Cavaco leva agora 130 - 15 anos depois e quando o essencial do trabalho de desanuviamento politico-histórico está feito.

As grandes diferenças entre uma e outra viagem residem nas circunstâncias históricas e na composição das comitivas. Eu estive nessa viagem de Soares - não como convidado, mas como jornalista, em trabalho. E tinha lá estado também poucos anos antes, como jornalista, igualmente. Tinha visto e testemunhado o sentimento dominante de desconfiança antiportuguesa, que ficara desde 1961 e que era particularmente sentido no território de Goa, que Salazar ordenara que fosse defendido até ao último homem. O clima não estava fácil para Portugal e, infelizmente, tinha sido agravado por uma desastrada escolha diplomática para a chefia da nossa representação em Deli. Com um embaixador que nunca tinha posto um pé em Goa e com uma forte presença política no Estado dos chamados «freedom fighters», que constituíam o resquício histórico da oposição à presença portuguesa até 61, ninguém poderia garantir que a passagem de Soares por Goa - momento politicamente determinante da viagem - não se saldasse por uma humilhação lusa.

Avisadamente, mas também fazendo uso daquela sensibilidade aguda que sempre teve (ou quase sempre...) nos grandes momentos, Soares optou por levar a Goa não uma simples comitiva mas uma verdadeira embaixada do país. Havia empresários e políticos, claro, até havia militares que tinham defendido Goa contra as tropas de Nehru. Mas havia, igualmente, escritores, artistas, gente que não apenas podia representar o que de melhor Portugal tinha culturalmente que merecesse ser conhecido mas também gente com laços culturais ou com sensibilidade para perceber a Índia e dela dar testemunho. E alguns eu posso garantir que não desperdiçaram a oportunidade. Essa gente que viajou com Soares misturou-se com a gente de Goa ou de Deli, falaram, conversaram, escutaram, ouviram, explicaram. Não foram de Oliveiras da Figueira para vender sabonetes, nem de diplomatas para tentarem vender a eterna ficção da grande influência portuguesa em África e no Brasil. Foram com o verdadeiro espírito dos viajantes, que é o da abertura cultural para a diferença, e fazendo-o, redescobrindo uma Índia que de todo os portugueses ignoravam, deram também a conhecer uma outra imagem que não a do Portugal salazarento que lá existia. Digam o que disserem, foi uma viagem de Estado que serviu Portugal.

O que Cavaco levou à Índia desta vez não tem nada a ver com isso. Vai uma fadista (por acaso, excelente: a Kátia Guerreiro) para dar um concerto em Goa, vai uma comissária de uma misteriosa exposição de pintura a ter lugar em Deli, vão os presidentes de três Fundações e vão 80 empresários. Cavaco vai a negócios - assumidamente.

Não vem mal ao mundo e pode ser até altamente louvável que o Presidente se ocupe também da ‘diplomacia económica’ nas suas viagens de Estado. Embora no caso da Índia - com uma economia pujante, a crescer 7,5% ao ano em toda a última década e com indústrias na área da tecnologia e inovação que fazem corar de vergonha as nossas (quem diria!) - o mais lógico fosse ter levado os empresários em visita de estudo e não em viagem esperançadamente de negócios. Por outro lado, a próxima visita de Sócrates à Índia, em Outubro, também parece que poderia servir para deixar para o Presidente uma função apenas complementar nessa matéria. Mas em Belém explica-se que a jogada é conjugada: Cavaco prepara os negócios, Sócrates fecha-os. Sim, e os indianos, tal como há cinco séculos atrás, estão sentados à espera que lá vá o rei e depois o vice-rei dos portugueses para lhes abrir a porta do comércio mundial...

Faz-me confusão que o Presidente visite a Índia sem levar na sua comitiva ninguém que represente a cultura portuguesa. Faz-me confusão que esta seja a segunda visita de Estado de Cavaco e que a situação se volte a repetir. Tanto mais que, segundo se depreende da entrevista que ele deu ao ‘Hindustan Times’, o grande argumento comercial que Cavaco Silva levou para a Índia é o mítico mercado dos 500 milhões de seres que, em África e no Brasil, falam português e em relação aos quais nós seremos o tal interlocutor, intérprete e intermediário privilegiado. Dando de barato que, para fazer negócios com o Brasil ou com Angola, seja preciso falar português (!), não deixa de ser contraditório constatar que, a um tempo julgando que o grande trunfo da nossa diplomacia é a língua, Cavaco se abstenha de levar consigo, entre 130 pessoas, um escritor ou um editor que seja. Tenho pena que numa viagem de Estado, que é das raras que tem um verdadeiro carácter de representação nacional, o Presidente não leve consigo alguém que pudesse representar o que de melhor o país tem no domínio cultural: a Agustina, o Mário Cláudio, o Vasco Graça Moura, o António Barreto, o João Bénard, a Maria Filomena Mónica, o Pacheco Pereira, a Luísa Costa Gomes, a Lídia Jorge, o Vasco Pulido Valente, ou novos escritores, como o José Luís Peixoto, o Pedro Rosa Mendes, o Rodrigo Guedes de Carvalho. Enfim, todas as listas acabam por ser injustas, mas a ideia é que não se reduza a representação do país a uma espécie de arca de Noé de caixeiros-viajantes, como já Sócrates fez na sua visita a Angola - o que se torna particularmente incompreensível e pobre quando se trata de visitas de Estado a países que têm ou tiveram grandes afinidades culturais com Portugal. De facto, a língua é, juntamente com o futebol, talvez o único verdadeiro trunfo diplomático que temos para usar em situações destas. Mas não basta apregoar a língua e a cultura: é necessário também promovê-la, defendê-la e ajudar a divulgá-la, no concreto. Imagina o Presidente da República a importância que poderia ter para Portugal haver autores portugueses traduzidos e divulgados na Índia?


Miguel Sousa Tavares

4 Comments:

At 14 de janeiro de 2007 às 15:07, Anonymous Anónimo said...

Os Cravinhos partiram em busca de especiairias

Ao mesmo tempo que Cavaco Silva viajou para a Índia, o eng. Carvinho partia para a Europa deixando a sua grande batalha contra a corrupção entregue ao grupo parlamentar do PS, não se esquecendo de no assegurar que não tinha sido comprado. Se foi ou não comprado o certo é que com o ordenado que o BERD vai pagar a Cravinho estes pode pagar muita coisa, muito mais do que o que Luís Amado vai poder fazer com o pequeno subsídio de residência que atribuiu a si próprio de ele próprio ter verificado que reunia as condições para o receber.

E como Luís Amado teve um fanico cardíaco, enquanto Cravinho pai viajou para o BERD, Cravinho filho, a sua promissora cria, seguia viagem para a Índia. Digamos que a semana, além de ter sido marcada pelas liturgias do Macedo, teve o perfume das especiarias do PS, Cravinho pai foi a colhê-las no BERD e Cravinho filho a semeá-las na Índia.

 
At 14 de janeiro de 2007 às 15:07, Anonymous Anónimo said...

Mas tal pai tal filho, assim como Cravinho não resistiu à tentação de nos consolar garantindo que não tinha sido comprado, também Cravinho filho decidiu fala demais criando um incidente em plena visita oficial à Índia, ao afirmar que a viagem de Soares não tinha sido devidamente aproveitada pelos governos do próprio Cavaco Silva.

 
At 14 de janeiro de 2007 às 21:02, Anonymous Anónimo said...

Salazar mandou defender Goa até à morte do último soldado.
Era, digamos assim, uma questão de princípio.
Falar agora em questões de princípio diz pouco aos nossos contemporâneos, sobretudo os mais jovens, cada vez mais amnésicos, cada vez mais ignorantes.
Custa-nos engolir o passado e até o chefe de Estado evitou passar por um quadro que retratava o antigo presidente do conselho, em Goa.
Se somos nós próprios os primeiros a ter vergonha da nossa história, que podemos esperar dos outros?
A manifestação feita contra o doutoramento honoris causa de Cavaco Silva, em Goa, significa apenas isso.
De nós, nada ficou.

 
At 15 de janeiro de 2007 às 13:26, Anonymous Anónimo said...

Falar de qualquer tipo de segurança social na Índia é o mesmo que dar uma lição de sexualidade a uma turma de numerários da Opus Dei, não faz o mínimo sentido, pelo que a intervenção que Cavaco dedicou ao tema apenas pode ser entendida como um recado para os políticos portugueses.

Independentemente das virtudes que a flexisegurança possa ter, já aqui o modelo foi defendido, a verdade é que Cavaco deveria seguir o princípio segundo o qual "o que se come em casa não se diz na rua". Não faz sentido mandar recados para o governo indiano e escolher a Índia ara mandar recados para o país. Trata-se de um tema demasiado sério e de m Presidente da República espera que quando defende questões tão importantes esteja cá para dar a cara pelas suas ideias

 

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