domingo, 8 de abril de 2007

À ESPERA QUE O ASSUNTO MORRA POR SI...

Tudo começou num blogue Do Portugal Profundo de autoria de António Balbino Caldeira em 2005. O facto de ter começado num blogue não é em si relevante: é um blogue assinado, o seu autor é conhecido até porque já estivera envolvido num processo judicial de violação do segredo de justiça do caso da Casa Pia, e as informações que durante quase dois anos foi publicando sobre os títulos académicos de José Sócrates tinham muitos elementos factuais e verificáveis. A nota original no blogue data de 22 de Fevereiro de 2005 e continha muitas das dúvidas que se vieram a revelar legítimas e sujeito de investigação jornalística. Não é verdade o que diz o comunicado pessoal do primeiro-ministro de 22 de Março de 2007 sobre
"mais uma campanha de insinuações, suspeitas e boatos que [o] pretende atingir na [sua] honra e consideração e que, à semelhança de outras de triste memória, assume uma dimensão difamatória e caluniosa (...) são veiculadas pelos mesmos meios, sob o anonimato dos blogues ou por jornais de referência no sensacionalismo e no crime".
Não havendo "anonimato" na origem das dúvidas sobre os seus títulos académicos, é interessante verificar que durante dois anos o primeiro-ministro nunca entendeu accionar qualquer mecanismo judicial em sua defesa contra uma "campanha de insinuações, suspeitas e boatos" que o pretendia atingir na sua "honra e consideração", tanto mais que estava (e está) convencido que a "campanha" tem a mesma origem das que o atingiram durante a campanha eleitoral. Ele pensa que se trata de uma campanha orquestrada, quiçá por uma qualquer agência de comunicação.

Um autor de blogue como o Do Portugal Profundo pode sempre ser visto como "suspeito". O tom justiceiro do blogue, o recebimento de muita informação de forma anónima por comentadores não identificados, o próprio facto de parecer possuir fontes de informação privilegiada, suscitam a habitual pergunta conspirativa: "O que é que o move?" A máquina comunicacional do primeiro-ministro e alguns jornalistas foram por aí, o que é um distracção interessante, mas irrelevante. Para se desviar a atenção da mensagem deu-se atenção ao mensageiro. O autor do blogue pode ter as mais obscuras das intenções, ser movido pelas piores razões, misturar informação e desinformação, mas basta passar por lá para se perceber que o grosso do que lá está é informação verificável e, uma vez verificada, publicável no mais sólido jornal do mundo. O que lá está é a mesma matéria prima das redacções dos jornais, a que se pode dar ou não um tratamento editorial, filtrando-as pelos critérios do jornalismo, ou deitá-las ao lixo, se forem apenas lixo.
Faz parte do mesmo tipo de argumentos conspirativos destinados a diminuir o mensageiro para matar a mensagem a insinuação de que o Público só tratou desta notícia como vingança da derrota da SONAE na OPA sobre a PT. Mesmo que fosse verdade seria tão irrelevante como as "motivações" de António Balbino Caldeira.
É exactamente por ser assim que nos podemos perguntar por que razão demorou tanto tempo, dois anos, até se ver a questão tratada num jornal de referência, o Público.
Há algumas honrosas excepções, como Paulo Alves Guerra que em Abril de 2005 se referiu ao caso citando o Do Portugal Profundo . O mesmo jornalista noticiou a investigação do Público no programa da manhã da RDP Antena 2, mal foi conhecido o seu teor . Esta é uma excepção que conheço e sei que há mais, embora sejam de facto excepções... (Acrescentarei aqui outros casos que entretanto conheça porque a cronologia é relevante.)

A resposta a esta questão diz-nos muito sobre os males do jornalismo português, a sua complacência e deslumbramento com o poder, quando não a sua dependência dos "poderes", a começar pelas "fontes amigas" tão importantes para a carreira de um jornalista, a sua falta de coragem cívica, em particular quando tem que quebrar as regras não escritas do pack journalism.
Pack journalism no Merriam-Webster: journalism that is practiced by reporters in a group and that is marked by uniformity of news coverage and lack of original thought or initiative.
Este "consenso" de rebanho entre jornalistas sobre aquilo de que se pode ou deve falar, e sobre os temas malditos que "sujam" as mãos de qualquer profissional e merecem o ostracismo dos outros, é o resultado destilado dos gostos, amizades pessoais e políticas, ideias feitas, ignorâncias activas, vinganças, que unem grupos de jornalistas entre si. O pack journalism traduz também a relação ambígua que muitos jornalistas mantêm com políticos que têm a mesma idade, a mesma formação, a mesma linguagem, o mesmo vocabulário, as mesmas escolas de ver o mundo, as mesmas ignorâncias, os mesmos ódios, os mesmos adversários. As paredes do Snob e outros bares frequentados pela "classe" estão cobertas destas camadas de pack journalism até ao tecto e os blogues de jornalistas revelam-nas com uma ingenuidade alarmante.

O Público quebrou esse muro de silêncio e fez jornalismo como deve ser. Não é "jornalismo de sarjeta", como afirmou o ministro que "tutela" a informação, que só é poderoso porque tem um largo sector da comunicação debaixo da sua "tutela", é jornalismo. E o Público foi imediatamente sancionado por ter violado o pacto de silêncio: durante vários dias contavam-se pelos dedos de meia mão só, os órgãos de informação que ousavam sequer reproduzir a notícia maldita do Público. Esta é a segunda questão a que é vital responder para se perceber até que ponto existe efectiva liberdade de informação: por que razão muitos jornais e acima de tudo as televisões, com relevo para a RTP, entenderam pelo seu gritante silêncio que o Público tinha feito "jornalismo de sarjeta" indigno de ser citado? Foi preciso esperar uma semana até que o Expresso acrescentasse mais achas para a fogueira, tornando o assunto, como se costuma dizer, "incontornável", coisa que ele era desde 2005. A ironia destas coisas apanhou mesmo um dos responsáveis do Expresso que tinha atacado o Público considerando que a notícia sobre Sócrates "não honra (...) todos aqueles que de algum modo contribuíram para fazer do Público um jornal de referência".

Estes dias de silêncio e isolamento forçado do Público são um revelador e uma face negra da situação da nossa comunicação social e dos seus compromissos invisíveis com o poder socialista, o seu Governo e o primeiro-ministro. Seria interessante saber, porque se trata de política no seu verdadeiro sentido, se houve ou não conflitos nas redacções entre quem queria e quem não queria dar sequência às notícias do Público. Seria interessante saber por que critérios jornalísticos tal não foi feito, em particular pela parte da comunicação social que os portugueses pagam com os seus impostos e está sujeita ao governo, a RTP. Mais uma vez, a análise da cobertura televisiva da RTP, primeiro censória, depois desculpatória, revela a governamentalização do "serviço público".

Sabe-se hoje que foram dias de intensa actividade telefónica do primeiro-ministro e dos membros do seu gabinete com objectivos muito claros: primeiro impedir que a história aparecesse (falhou no Público); depois que alastrasse (sucesso relativo durante alguns dias isolando o Público); depois que não chegasse à televisão (sucesso relativo); depois que a forma de tratamento fosse a menos gravosa para o primeiro-ministro (conseguido na Renascença, desconhece-se o efeito nos outros órgãos de informação).
"Quinta-feira, dia 22, logo após o noticiário das oito da manhã da Renascença, os assessores do primeiro-ministro despertaram para um frenesim de telefonemas. A rádio dava eco à notícia do jornal ‘Público’ que levantava dúvidas em torno da licenciatura de José Sócrates na Universidade Independente. O pivô rematava a peça dizendo: “Engenheiro não! Licenciado... talvez”. Ligaram várias vezes para mim e para a redacção a protestarem”, contou ao Expresso o director de informação da Emissora Católica, Francisco Sarsfield Cabral. A frase que tinha provocado a ira do gabinete do primeiro-ministro não voltou a ser repetida. "(do mesmo artigo do Expresso).

A chuva de comunicados e declarações oficiais revela também os mesmos objectivos, contendo inverdades e sugerindo distracções, tentando lançar confusão e apontando pistas falsas. Lendo a adjectivação dos comunicados oficiais está lá tudo como, por exemplo, no comunicado do Ministério do Ensino Superior, em que se sugere que o mal da Universidade Independente é apenas do "apuramento e comunicação da informação estatística", ou seja, dos procedimentos burocráticos, e que apresenta como seu objectivo "dissipar a inaceitável suspeição generalizada que foi lançada", ou seja, comprovar a validade dos seus diplomas, já que tudo o resto é "inaceitável". Para uma entidade com poderes inspectivos, as conclusões já estão tiradas antes da investigação.

A não existir dolo, nem facilitação gravosa e excepcional no processo académico do primeiro-ministro, o que sobrará de toda esta questão é bem mais grave do que saber se José Sócrates é ou não engenheiro, agente técnico, ou estudante finalista: é o modo como a comunicação social se coloca perante o poder socialista. É por isso que a grande esperança governativa é que o assunto morra por si, mesmo indo-se os anéis (os títulos académicos), mas ficando os dedos e os seus fios visíveis e invisíveis, os mecanismos que do poder chegam às redações, explicando muita e muita coisa que escapa ao olhar do cidadão desprevenido destes meandros vitais do poder dos nossos dias.


José Pacheco Pereira

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1 Comments:

At 8 de abril de 2007 às 21:31, Blogger Pedro Manuel said...

A questão que constrange o PM e a natureza académica da sua licenciatura tem hoje conexões políticas e polítológicas importantes. Não tinha, mas com a passagem do tempo (perdido) - que é sempre esse velho e tirano sacana que tritura tudo à sua passagem - passou a ter. O tempo é assim: ora adorna as coisas e valoriza as pessoas, ora as corrói e destroi, por vezes mata-nos em vida. E de tudo que foi fica um nada de memória, um eco, ou eco-de-eco que só ecôa já só muito lá ao longe...

Decorre daqui não uma questão metafísica, mas um ponto de luz estratégico que pode cortar as pernas a Sócrates, atingindo-o na sua idoneidade e credibilidade, já que com aqueles assessores que telefonam para a RR a ameaçar os jornalistas de serviço S. Bento não se safa. Sugira-se, pois, um curso de aperfeiçoamento rápido em Relações Púbicas aos assessores de Sócrates quiça a UGT ou a CGTP ainda tenha alguns desses cursos em carteira no tempo em que Torres Couto corrompeu a filosofia dos fundos comunitários para aí direccionados. Fica, pois, a nota para o n/ PM: recicle os assessores que bem precisa. Ou ceda-os a Durão Barroso a ver se ele cai mais depressa do pedestal da Europa - que hoje paralisa - sem visão nem rasgo nem projecto o Velho Continente.

O Príncipe, ou seja, Sócrates, sabe que é obedecido porque tem autoridade e as pessoas - inclusive a oposição - o temem. Mas deverá evitar, e é aqui que entra o nosso amigo Nicolau - que dali reporta do seu gabinete de trabalho em San Casciano (in Val di Pesa - onde veio a morrer) - ser odiado ou desprezado. E, na prática, se bem que por omissão do PM (mas por muita acção desastrada do seus assessores), é isso que tem sucedido na gestão das condições que levaram à sua licenciatura na dita universidade.

Sabemos já como é Sócrates: furtivo e assertivo, combativo e vigoroso, dialético q.b.
Por comparação também assim era Margaret Thatcher, a dama-de-ferro que governo o Reino Unido durante uma década, desafiando tudo e todos: o terrorismo na Irlanda do Norte e os graves conflitos internos com o sindicalismo na Inglaterra. Ganhou nas duas frentes. Mas, no fim, ela ultrapassou as marcas, e fez dessa arrogância um motivo forte para ser desprezada no seu país. Ou seja, foi a sua intransigência que a cegou, e depois passou a ser odiada pela população.

O mesmo sucedeu a W. Churchil décadas antes no post-Guerra - em que os seus ministros deixavam-no a falar sózinho nos corredores, a ponto de lhe virem as lágrimas aos olhos... Quando Churchil percebera isso já estava políticamente morto...

É óbvio que daqui não decorre nenhuma conexão directa com Socas, mas o apodrecimento desta situação está a trabalhar nesse sentido, e os seus assessores já fizeram mais para que esse desastre aconteça do que ele próprio.

Daqui perguntamos a Sócrates - se ele que continuar a ser amado, temido ou desprezado...

Esperemos que ele para a semana, depois de dizer o que terá para dizer, possa voltar a ser respeitado. Para Nicolau aquele abraço pelos ensinamentos constantes que sempre nos dá. Estou certo que até Maquiavel concordaria comigo na opinião acerca daqueles assessores do PM...

Precisam mesmo dum curso de Relações Públicas, nem que seja na Segurança Social de Xabregas ou num Instituto de Formação Profissional perto de S. Bento.

 

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