segunda-feira, 20 de agosto de 2007

OS RICOS

Acho uma prática normal e salutar a publicação anual da lista dos cem mais ricos do país. Ser rico, sem ter enriquecido por meios ilícitos, não é vergonha alguma. Ser rico, tendo contribuído para a riqueza do país, é motivo de orgulho. Nos Estados Unidos, ser rico tendo criado obra à vista, é causa de admiração de vizinhos e conterrâneos. Em Portugal, ainda é, sobretudo, causa de inveja e desconfiança. A diferença está nas mentalidades, mas está também na forma como as coisas funcionam e no papel desempenhado pelo Estado.

Para se ser rico e causa de admiração é necessário ter enriquecido numa sociedade minimamente igualitária, onde as oportunidades estão distribuídas de forma equilibrada por todos, à partida – na educação, na saúde, na habitação e condições de vida, no desporto, etc. Não é o caso dos Estados Unidos, onde cada um é deixado por conta da sua sorte ou do seu engenho, mas é o caso das democracias escandinavas e do Norte da Europa, onde a social-democracia garantiu cinquenta anos de prosperidade, justiça social e desenvolvimento cultural sem paralelo em nenhum outro lugar do mundo e em nenhuma outra época.

O nosso mal-estar perante as grandes fortunas não tem razão ideológica, mas tem razão política e muita. Nós nunca vivemos em social-democracia. Nós nunca tivemos uma sociedade equilibrada, justa e igualitária nas oportunidades. Tivemos sempre – desde o tempo das Descobertas, passando pelo liberalismo, pela República e pelo Estado Novo – uma sociedade que colocou os pobres por conta da caridade e os ricos por conta do privilégio. Numa época histórica em que um socialismo emergente, com o foco em Moscovo, se enfrentava com o fascismo de inspiração social e cristã, o Estado Novo dotou-se de uma lei chamada do Condicionamento Industrial, que lhe permitiu controlar os grandes empresários, no continente e em África, e de uma organização corporativa do Estado, inspirada na 'Carta del Lavoro' mussoliniana, que lhe assegurou a domesticação dos sindicatos e da mão-de-obra assalariada, pois que, como explicou Salazar, "não podemos permitir que o operariado se transforme numa classe privilegiada". Cada um fará do salazarismo a leitura histórica que quiser – mesmo aqueles que não o estudaram a sério ou que, tendo-o estudado, o falsificaram à medida das suas convicções políticas. Pessoalmente, desde há muito que tenho o meu diagnóstico feito, e o tempo e as leituras subsequentes só vieram confirmá-lo: o Estado Novo e o salazarismo foram, porventura, o período mais negro e mais prejudicial de toda a história de Portugal. Ainda hoje, muito do que penamos, muito do que de negativo existe na mentalidade instalada entre os portugueses deve-se à doutrinação desses cinquenta anos de ditadura retrógrada e beata. Os ricos continuam a apostar que o Estado é a fonte de todos os negócios verdadeiramente rentáveis, e os pobres continuam a acreditar que o Estado lhes deve toda a protecção e desvelo. Uns e outros foram habituados a pensar que não há lugar para a iniciativa própria, para o risco individual, para um contrato com direitos e obrigações recíprocas entre o cidadão e o Estado.

O desvario comunista dos anos a seguir a 74 serviu apenas para que uma imensa massa de desfavorecidos e ignorantes imaginasse que todos poderiam ser ricos pela simples estatização de toda a economia do país. Tal como a 'vaca soviética' de Livtchenko era teoricamente capaz de produzir mais leite do que a 'vaca capitalista', também entre nós se procurou levar os incautos a acreditar que a Reforma Agrária iria tornar o país auto-suficiente em bens alimentares, que a indústria e as empresas em autogestão e sem investimento e risco privado seriam capazes de render muito mais e que a banca "ao serviço do povo" financiaria tudo isto... com o dinheiro de ninguém.

O despertar desta bebedeira colectiva, com a necessidade premente de acorrer ao mais elementar – pagar aos funcionários públicos, evitar a fome e as falências sucessivas das empresas, garantir o crédito externo ao Estado Português – levou a restabelecer aos poucos o único sistema económico que se acreditava, e ainda acredita, ser capaz de manter o país a funcionar: o capitalismo clientelar do Estado. E, para que a revolta social fosse evitada, deu-se aos trabalhadores o reverso da medalha: uma lei de despedimentos que garante trabalho até à eternidade a quem o tem e precariedade para sempre a quem o não tem; subsídios de desemprego garantidos, não só para quem não encontra trabalho mas também para quem não quer trabalhar; reforma segura para todos, mesmo para os que não descontaram durante a vida; um sistema de ensino público que custa uma fortuna ao país e que só satisfaz os sindicatos de professores; e um sistema de saúde pública onde se gasta mais "per capita" do que na Holanda e se espera dezoito meses por uma operação urgente. Assim se regressou ao velho Portugal de sempre, com um Estado que assegura o favor aos maus empresários e a protecção aos maus trabalhadores. E que gasta a riqueza produzida e cobrada à parte saudável do país a sustentar os que vivem à sua conta.

O que faz impressão na lista dos cem mais ricos de Portugal é constatar que as suas fortunas acumuladas representam 22% de toda a riqueza do país e que o fosso entre os que mais ganham e os que menos ganham é o maior de toda a Europa comunitária a quinze. E faz impressão pensar que, enquanto os trabalhadores por conta de outrem e a generalidade da classe média e média-baixa viu os seus rendimentos subir entre zero e três por cento no ano passado, os cem mais ricos aumentaram a sua riqueza em 36%. E fizeram-no essencialmente através da bolsa – ou seja, não pelo desempenho das suas empresas, não pela criação de riqueza para o país, mas sim através da simples especulação com o dinheiro. Mais interessante ainda seria podermos dispor da lista dos cem maiores pagadores de impostos do país em nome individual, para compararmos com os cem mais ricos. Ou sabermos quanto pagaram de impostos sobre os lucros as empresas ou fundações onde se abrigam os cem mais, para compararmos com os que, vivendo apenas do seu trabalho, pagam 42% de IRS. Aí, sim, poderíamos perceber a dimensão da injustiça social e fiscal em que vivemos.

Mas, num país que alimenta essa coisa indecorosa que é o "off-shore" da Madeira (um simples território de evasão fiscal promovida pelo Estado), num país onde mais de metade das fundações servem apenas para fugir ao fisco, onde dois terços das empresas nunca declaram lucros, onde se baptiza de 'empresário' quem nunca criou um posto de trabalho nem produziu um euro de riqueza facturável, onde os gestores públicos recebem indemnizações escandalosas para saírem de uma empresa e passarem para outra e onde o Estado oferece de graça (e ainda paga os encargos) o seu maior museu para albergar uma colecção de arte privada emprestada, não é de admirar que a generalidade das pessoas não acredite na seriedade dos meios pelos quais alguns se tornaram tão ricos. É que não se pode ter tudo: boa cama e boa fama.


Miguel Sousa Tavares

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