E AOS COSTUMES DIZEM NADA
1. Bento XVI chamou os bispos portugueses a Roma para lhes dar uma reprimenda exemplar e inesperada: Portugal, segundo o Papa, vai mal de verdadeira fé e de militância católica: muito folclore e pouca substância. Esta foi a resposta que a Igreja Católica portuguesa recebeu ao convite para que o Papa viesse a Fátima para a inauguração da nova (e lindíssima) basílica do Santuário. Menos Fátima e mais Evangelho, respondeu-lhes Bento XVI. Menos multidões nas datas marcadas no Santuário e mais gente nas igrejas e na vida das paróquias.
Sob a chefia de João Paulo II, a Igreja portuguesa viveu anos pacíficos, adormecida à sombra de verdades imutáveis e tranquilas: 95% de baptizados, logo de católicos; um código consistente de direitos e privilégios garantidos pelo Estado e cujo núcleo duro nunca foi posto em causa; e uma crescente reanimação pelo chamado culto mariano, que todos os anos arrasta multidões até Fátima, numa demonstração de fanatismo religioso que nada fica a dever às de outras religiões para que costumamos olhar com a sobranceria de quem contempla manifestações de selvagens fanatizados. João Paulo II - provavelmente o pior Papa que a Igreja teve desde Pio XII - era muito dado a essas manifestações de fé colectiva e irreflectida, ampliadas pela televisão e os media. Verdadeiramente, ele acreditava que, afinal, o reino de Deus era deste mundo e que aqui é que se travava a batalha decisiva: tudo o que lhe cabia fazer, enquanto representante de Cristo na terra, era viajar quanto pudesse, arrastando atrás de si as televisões e as legiões de fiéis.
O Papa Ratzinger é diferente. Ocupou-se da doutrina enquanto Woytila se ocupava da fé. Teólogo, intelectual brilhante, com uma noção da intemporalidade da Igreja que vai muito além dos fenómenos passageiros de histeria de massas, ele sabe que 300.000 peregrinos em Fátima não significam 300.000 cristãos no dia-a-dia da Igreja e das suas próprias vidas. Sabe que há católicos, e a grande maioria, que é capaz de viver 364 dias por ano ao arrepio da moral e dos mandamentos da Igreja e um dia por ano a conquistar a absolvição dos seus pecados numa excursão a Fátima, mais ou menos penosa. E sabe que a fé e a religião são coisas diferentes disso.
Penso que nem mesmo o mais disponível dos católicos é capaz de olhar para o Papa Ratzinger e ver nele o representante de Deus ou o enviado de Cristo a este mundo. Mas, em contrapartida, o seu pontificado é capaz de vir a resultar mais útil para a igreja católica do que os longos anos de papado do seu antecessor. A sua mensagem vai-se tornando progressivamente clara: mais substância e menos aparência.
2. Um tribunal de primeira instância de Madrid condenou a revista satírica espanhola El Jueves a uma pena quase simbólica por ofensas aos príncipes das Astúrias, cometida através de uma caricatura onde Filipe e Letizia eram retratados em acto sexual explícito em posição que não era a nº 1 do catálogo. Lá, aqui e além-fronteira ibérica, levantou-se uma série de vozes indignadas contra este atentado à liberdade de expressão e ao sentido de humor, não faltando até quem fizesse a comparação entre este cartoon e o célebre cartoon sobre Maomé de um jornal dinamarquês. Escreveu-se que, em Espanha, a liberdade de imprensa parece acabar quando toca à família real e outras coisas semelhantes. Parece que a ninguém ocorreu que os príncipes das Astúrias por o serem, não gozam de menos direitos do que qualquer outro cidadão. E que a qualquer cidadão assiste o direito de não ver a sua vida conjugal ou sexual retratada em caricaturas explícitas nos jornais. E não ocorreu que, mesmo que por absurdo se quisesse reduzir tal matéria ao exercício da liberdade de expressão, ela deverá sempre terminar onde começa o mau gosto.
3. Há uma circunvalação em Viseu, com vários quilómetros de comprimento, separador central e duas a três faixas de circulação em cada sentido, onde absurdamente o limite de velocidade está fixado em 50 km/hora. Como tal limite é quase impossível de cumprir, a polícia gosta de montar ali os seus radares e operações stop, com profícua caçada às multas garantida. Na madrugada do último sábado, lá montaram uma operação, com direito a assistência do sr. governador civil do distrito. Mas, para azar de todos, o primeiro condutor parado por excesso de velocidade (89 km/hora) foi nada mais nada menos do que o presidente da Câmara e da Associação de Municípios Portugueses, Fernando Ruas. Depois de uma breve conversa entre este e o governador civil, o infractor seguiu livremente o seu caminho, sem ter sido identificado nem multado pela polícia. Uma descoordenação, justificou esta quando interpelada por um jornalista.
Dias depois, Fernando Ruas voltou a recusar um pedido já diversas vezes encaminhado para a Câmara de subir o limite de velocidade naquela estrada para os 80 km/ hora, declarando que ninguém se podia aproveitar do seu caso para reclamar tal alteração. Aliás, o autarca estranhou tanto interesse no seu caso e concluiu que se procura arranjar argumentos para abater este cidadão. Eis a sua moral: Façam como eu mando, não como eu desobedeço, porque nem todos são iguais perante a lei. Realmente, não se percebe tanto interesse no assunto.
4. Depois de tratar dos fumadores, o grupo parlamentar do PS propõe-se agora tratar da saúde a quem abusa do sal. Há um deputado que anda entusiasmado a preparar uma lei que vai regulamentar ao decigrama o teor máximo de sal permitido nos alimentos dos restaurantes. Não imagino que a fiscalização de tão minuciosa legislação se possa fazer sem um exército reforçado da ASAE, com aparelhos sofisticados e actuações espectaculares ao vivo ("O sr. cliente importa-se de esperar, antes de comer o seu peixe, que eu proceda à medição do teor de sal, para verificar se está legal?").
Eu sempre disse: primeiro o tabaco, depois o sal, a seguir o álcool, depois as gorduras e os fritos e a seguir, quem sabe, talvez saia uma lei a regulamentar o perigo que representa para a nossa saúde o facto de ainda estarmos vivos.
Miguel Sousa Tavares
Sob a chefia de João Paulo II, a Igreja portuguesa viveu anos pacíficos, adormecida à sombra de verdades imutáveis e tranquilas: 95% de baptizados, logo de católicos; um código consistente de direitos e privilégios garantidos pelo Estado e cujo núcleo duro nunca foi posto em causa; e uma crescente reanimação pelo chamado culto mariano, que todos os anos arrasta multidões até Fátima, numa demonstração de fanatismo religioso que nada fica a dever às de outras religiões para que costumamos olhar com a sobranceria de quem contempla manifestações de selvagens fanatizados. João Paulo II - provavelmente o pior Papa que a Igreja teve desde Pio XII - era muito dado a essas manifestações de fé colectiva e irreflectida, ampliadas pela televisão e os media. Verdadeiramente, ele acreditava que, afinal, o reino de Deus era deste mundo e que aqui é que se travava a batalha decisiva: tudo o que lhe cabia fazer, enquanto representante de Cristo na terra, era viajar quanto pudesse, arrastando atrás de si as televisões e as legiões de fiéis.
O Papa Ratzinger é diferente. Ocupou-se da doutrina enquanto Woytila se ocupava da fé. Teólogo, intelectual brilhante, com uma noção da intemporalidade da Igreja que vai muito além dos fenómenos passageiros de histeria de massas, ele sabe que 300.000 peregrinos em Fátima não significam 300.000 cristãos no dia-a-dia da Igreja e das suas próprias vidas. Sabe que há católicos, e a grande maioria, que é capaz de viver 364 dias por ano ao arrepio da moral e dos mandamentos da Igreja e um dia por ano a conquistar a absolvição dos seus pecados numa excursão a Fátima, mais ou menos penosa. E sabe que a fé e a religião são coisas diferentes disso.
Penso que nem mesmo o mais disponível dos católicos é capaz de olhar para o Papa Ratzinger e ver nele o representante de Deus ou o enviado de Cristo a este mundo. Mas, em contrapartida, o seu pontificado é capaz de vir a resultar mais útil para a igreja católica do que os longos anos de papado do seu antecessor. A sua mensagem vai-se tornando progressivamente clara: mais substância e menos aparência.
2. Um tribunal de primeira instância de Madrid condenou a revista satírica espanhola El Jueves a uma pena quase simbólica por ofensas aos príncipes das Astúrias, cometida através de uma caricatura onde Filipe e Letizia eram retratados em acto sexual explícito em posição que não era a nº 1 do catálogo. Lá, aqui e além-fronteira ibérica, levantou-se uma série de vozes indignadas contra este atentado à liberdade de expressão e ao sentido de humor, não faltando até quem fizesse a comparação entre este cartoon e o célebre cartoon sobre Maomé de um jornal dinamarquês. Escreveu-se que, em Espanha, a liberdade de imprensa parece acabar quando toca à família real e outras coisas semelhantes. Parece que a ninguém ocorreu que os príncipes das Astúrias por o serem, não gozam de menos direitos do que qualquer outro cidadão. E que a qualquer cidadão assiste o direito de não ver a sua vida conjugal ou sexual retratada em caricaturas explícitas nos jornais. E não ocorreu que, mesmo que por absurdo se quisesse reduzir tal matéria ao exercício da liberdade de expressão, ela deverá sempre terminar onde começa o mau gosto.
3. Há uma circunvalação em Viseu, com vários quilómetros de comprimento, separador central e duas a três faixas de circulação em cada sentido, onde absurdamente o limite de velocidade está fixado em 50 km/hora. Como tal limite é quase impossível de cumprir, a polícia gosta de montar ali os seus radares e operações stop, com profícua caçada às multas garantida. Na madrugada do último sábado, lá montaram uma operação, com direito a assistência do sr. governador civil do distrito. Mas, para azar de todos, o primeiro condutor parado por excesso de velocidade (89 km/hora) foi nada mais nada menos do que o presidente da Câmara e da Associação de Municípios Portugueses, Fernando Ruas. Depois de uma breve conversa entre este e o governador civil, o infractor seguiu livremente o seu caminho, sem ter sido identificado nem multado pela polícia. Uma descoordenação, justificou esta quando interpelada por um jornalista.
Dias depois, Fernando Ruas voltou a recusar um pedido já diversas vezes encaminhado para a Câmara de subir o limite de velocidade naquela estrada para os 80 km/ hora, declarando que ninguém se podia aproveitar do seu caso para reclamar tal alteração. Aliás, o autarca estranhou tanto interesse no seu caso e concluiu que se procura arranjar argumentos para abater este cidadão. Eis a sua moral: Façam como eu mando, não como eu desobedeço, porque nem todos são iguais perante a lei. Realmente, não se percebe tanto interesse no assunto.
4. Depois de tratar dos fumadores, o grupo parlamentar do PS propõe-se agora tratar da saúde a quem abusa do sal. Há um deputado que anda entusiasmado a preparar uma lei que vai regulamentar ao decigrama o teor máximo de sal permitido nos alimentos dos restaurantes. Não imagino que a fiscalização de tão minuciosa legislação se possa fazer sem um exército reforçado da ASAE, com aparelhos sofisticados e actuações espectaculares ao vivo ("O sr. cliente importa-se de esperar, antes de comer o seu peixe, que eu proceda à medição do teor de sal, para verificar se está legal?").
Eu sempre disse: primeiro o tabaco, depois o sal, a seguir o álcool, depois as gorduras e os fritos e a seguir, quem sabe, talvez saia uma lei a regulamentar o perigo que representa para a nossa saúde o facto de ainda estarmos vivos.
Miguel Sousa Tavares
Etiquetas: Álcool, Autarcas, Autarquias, Fumadores, Gorduras, Igreja, Liberdade de Imprensa, Sal, Saúde
3 Comments:
Oleitor ou conhece ou ouviu falar da Ginjinha do Rossio, em Lisboa. De contrário, terá de acreditar na minha descrição é um minúsculo estabelecimento de bebidas especializado na venda de uma das mais populares bebidas portuguesas, a ginjinha; com clientela rápida e despretensiosa, a Ginjinha do Rossio é uma referência para turistas que passam pela zona e para várias gerações de frequentadores que, por razões certamente inexplicáveis, continuam a passar pelo seu balcão e a pedir "uma com elas" ou "sem elas". Uma ginjinha. O estabelecimento nunca envenenou ninguém, sendo certo que também não é um modelo de limpeza. Mas é a Ginjinha do Rossio.
O meu amigo Paulo Moreiras, romancista, dedicou à ginja dois livros exemplares. De acordo com a sua preciosa investigação, a melhor ginja é a da zona de Óbidos e a Ginjinha do Rossio servia um dos melhores exemplares. Seja como for, Óbidos por um lado, e a Ginjinha do Rossio por outro, enchem-se de turistas e de apreciadores que vão em busca dessa bebida simpática, comovente e em risco de vida. Como é bom que se diga, Paulo Moreiras começou a investigar a história da ginja depois de lhe terem dito, num restaurante, que não era uma bebida "à altura".
Desta vez, foi a ASAE, Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, que partiu em busca da Ginjinha do Rossio, encerrando-lhe as portas. O argumento é a falta de higiene, tendo sido capturadas algumas garrafas da bebida.
Ao capturar as garrafas e ao encerrar o estabelecimento, a ASAE estava apenas a cumprir a sua função, que está distribuída pela segurança alimentar, pela segurança de produtos e instalações, pelas questões de propriedade intelectual e industrial e também - naturalmente - pelo turismo. Ou seja, a ASAE zela pelo cumprimento da lei. E zela de forma muito eficiente, apresentando-se ao serviço público de colete à prova de bala e de gorro passa-montanhas. Por aí já o leitor vê como é arriscado o seu trabalho e como é perigoso o mister de fiscal das actividades relacionadas com a segurança alimentar. Ser atingido por uma ginja que não mencione a sua origem é grave e fatal.
Acontece que Portugal é, segundo a ASAE (e depois das suas investidas) "um dos países mais seguros no que diz respeito à higiene e qualidade dos alimentos". Isso é uma vantagem enorme. Hoje já não há castanhas assadas embrulhadas nas Páginas Amarelas nem bolas-de-berlim nas praias. A aguardente de medronho tradicional, que procurávamos na Serra de Monchique, e que já tinha sido atingido pelos incêndios, também foi perseguida pela ASAE. Há duas ou três semanas precisei de negociar uma aguardente tradicional de vinho verde, refrescada, como um americano durante a lei seca.
A Ginjinha do Rossio era um monumento nacional. Uma referência que amigos italianos, brasileiros e alemães procuravam para provar uma das melhores ginjinhas portuguesas. Aquele espaço tresandava a história e a convivialidade, a sorrisos largos e a um leve ondular de fígados conservados em ginja. Pois que se varrese o seu chão com mais frequência. Que se pusesse um médico à porta. O mal, porém, não é apenas o encerramento da Ginjinha do Rossio, esse parapeito da história da cidade e do país. O mal é a onda de lixívia sintética que vai passando por tudo quanto é "segurança alimentar" nas vetustas tascas onde vinhos fatais fizeram literatura e, certamente, doenças hepáticas. Essa onda que prega a normalização dos costumes alimentares acabará com a pequena alma dessas nobres instituições de pecado, como a Ginjinha do Rossio. Portugal aplica estas leis melhor do que ninguém. A breve prazo, agentes policiais entrarão nas nossas casas apreendendo bacalhau com excesso de sal e ginja da Beira Alta. Seremos saudáveis e faremos jogging. Tudo o resto será encerrado.
O país, segundo parece, é uma pocilga onde ninguém respeita as mínimas regras da higiene, da saúde, e a ASAE aparece para pôr ordem neste caos.
Nos últimos meses, não há semana que passe que eu não ouça falar na ASAE. Segundo parece, todo o país está a ser inspeccionado de cima a baixo. Dotados de extraordinária energia coerciva, os homens da ASAE são uma espécie de “Robocop’s” do controle sanitário, e têm caído em cima de toda e qualquer actividade. Armados até aos dentes, com carapuços para esconder a identidade, com metralhadoras, granadas, ‘shot guns’, coletes à prova de bala, capacete, viseiras, escudos protectores, cães, numa extraordinária parafernália de armamentos, fazem ‘raids’ sobre o pobre país e fecham, apreendem, encerram, proíbem, com um zelo imenso. O país, segundo parece, é uma pocilga onde ninguém respeita as mínimas regras da higiene, da saúde, e a ASAE aparece para pôr ordem neste caos.
Ao ler os jornais, ou ao ver na televisão as operações da ASAE, parece que estou a ver um filme americano, do Bruce Willis ou do Chuck Norris. Os homens da ASAE parecem aquelas equipas SWAT dos maus filmes de Hollywood, uma espécie de Delta Force que, em vez de actuar contra os terroristas, actua contra a malta dos cafés, dos restaurantes, das feiras, numa senha persecutória imparável.
Tudo isto, é claro, para nos tratar da saúde. É o Estado ‘baby-sitter’ no seu melhor. O Estado que se preocupa connosco, para que a gente não morra de excesso de sal, de excesso de noite, de excesso de camisas compradas numa feira qualquer. O Estado que quer tudo como deve ser, cumprindo todas as directivas europeias. É este o Estado que temos agora. Os restaurantes chineses são suspeitos? A ASAE ataca-os com força, entra por ali a dentro e investiga, apreende, vê se é carne de cão que nos estão a servir. As feiras populares estão na mão dos ciganos? A ASAE entra a matar, apreende roupa, põe ordem naquela balbúrdia! As discotecas da noite só têm licenças até às 3 da manhã e continuam abertas às 4? A ASAE cai-lhes em cima, e fecha esses antros negros onde a juventude do país se embebeda e se perde.
Enfim, ‘raides’ e ‘raides’ sobre restaurantes, bares, lojas, numa ‘blitzkrieg’ com ressonâncias “nazis”, autoritária, intolerante e totalmente contra as mais profundas tradições culturais portuguesas.
Até fecharam a “Ginginha”! Sim, amigos, aquela taberna tipicamente portuguesa, ali ao Rossio, um dos poucos locais do país que ainda resistia estoicamente aos ataques de modernidade foleira que nos têm descaracterizado. A “Ginginha”, esse ex-libris da pinga tuga, esse incomparável local de confraternização para homens de barba rija, que gostam de verter umas ginginhas pela garganta abaixo, foi encerrada pela ASAE porque não cumpria certas “normas de higiene” e “segurança”.
O Estado totalitário é isto. A coberto das “normas”, o Estado vai destruindo o Portugal normal, que vive despreocupado, na boa, ‘no problem’. A coberto da preocupação com a nossa saúde, o Estado torna-se um monstro autoritário, ameaçador, e contra a ginginha avança, de metralhadoras em punho. A ASAE está a tornar-se um monstro perigoso, um braço armado da fúria higiénica que parece assolar Portugal.
A malta da ASAE deve adorar. Veste-se a rigor, manda chamar as televisões e lá vão eles, quais SS tugas, armados até aos dentes, investir contra as “Ginginhas” do país. Ninguém está a salvo. Nenhuma tasca, nenhum bar, nenhum restaurante, nenhuma ‘roulotte’, nenhuma feira de Carcavelos. Estão todos na mira da ASAE, que está apostada em fazer de nós, finalmente, um país diferente, moderno, limpo e seguro.
Provavelmente, ninguém se dá conta de que a ASAE tem requintes estalinistas, nazis, e que tem espalhado o terror pelo país. Como sempre, os portugueses “acomodam-se”. Deixam que a ASAE lhes dê cabo das lotas, dos mercados, da noite. Como um furacão que tudo varre, a ASAE aí está, em todo o seu esplendor, para fazer de Portugal um país diferente! Eu, sinceramente, tenho pesadelos com esta ASAE. Nunca gostei de pessoas que me querem tratar da saúde.
Lia no Público a história da Misericórdia de Faro, que trocou nos seus refeitórios o peixe fresco da Ria Formosa por um empacotado congelado fornecido por uma multinacional de catering. “Com medo da ASAE”, explica-se na reportagem. E lembrei-me de R, herdeiro de uma das mais antigas casas de Lisboa. Numa reunião de trabalho, R. percebeu que eu conhecera as cozinhas antigas da deslumbrante fábrica da Confeitaria Nacional, onde se produz o afamado bolo-rei (filmei-as para um programa de Natal, na RTP, em 1987...). E contou-me tudo o que a ASAE o obrigou a fazer para cumprir as “normas europeias”, dando cabo, de passagem, de uma construção histórica (chão, bancadas, tudo refeito em alumínios e materiais laváveis e não porosos...) e dos seus mais marcantes objectos de confecção artesanal. Dá raiva e ranger de dentes.
E dá que pensar: a ASAE – cujo nome, por si só, tem qualquer coisa de oriental entre Haraquiri e Kung-fu – era uma bela ideia para pôr alguma ordem na desordem que qualquer ser humano dotado de olfacto e olhar notava em restaurantes, mercearias, supermercados. Imaginei a ASAE como o órgão que ía acabar com as unhas pretas dos empregados de café, as baratas a passear pelas batatas nas cervejarias, as casas de banho imundas e mal-cheirosas, e outros atentados ao nosso sossego e higiene na hotelaria e similares. Não mais do que o essencial para garantir a saúde pública – ou seja, o chamado asseio.
Era uma ideia com um passado prometedor, como quase tudo em Portugal. Mas essa boa ideia foi rapidamente transformada numa polícia de costumes fundamentalista, disposta a fazer tábua-rasa da tradição, do bom senso, do artesanato e das poucas coisas que ainda nos distinguem dos outros países.
Quando a ASAE deixa de ser uma instituição reguladora para se tornar um papão que intimida ao ponto de um refeitório trocar o peixe fresco por congelado antes mesmo da “policia” o inspeccionar, seria altura de alguém pôr ordem no excesso de ordem que a ASAE quer impor ao país. Não há poder que trave aquele supra poder sem rei nem roque?
Eu até ando a pensar em abrir um restaurante, mas com esta ASAE no activo é melhor uma loja de ferragens...
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