sexta-feira, 7 de março de 2008

O PERIGO DAS MAIORIAS ABSOLUTAS

A queda de popularidade de José Sócrates e a indicação de que o PS não terá maioria absoluta nas legislativas sugerem alguns motivos de reflexão. Historicamente, demo-nos mal com maiorias absolutas.
A correcção veio depois; talvez tarde.
Cavaco governou à vontade, apoiado num eleitorado conservador, e cheio do dinheiro de Bruxelas.

O betão foi a prioridade.
Para o bem e para o mal, procedimentos mais urgentes foram postergados. Mas, pior do que isso, foi a criação de uma mentalidade condicionada, sem rasgo e desprovida de imaginação e de criatividade.
A década de Cavaco Silva distingue-se pela crispação, pela ausência de sensibilidade social, pela inexistência do conceito humanista nascido com o 25 de Abril e pelo paroxismo da competitividade.

Uma estranha geração de gestores, frigorificada na indiferença pelo outro, austeramente vestida de cinzento-escuro, gel nos cabelos e ideias rasas emergiu destinada a inscrever os interesses da eficácia contra os paradigmas dos valores simbólicos.
Muita dessa gente, moldada na conjunção do pragmatismo com os dados estatísticos, ainda por aí anda.
Aufere vencimentos sumptuosos, anexados a reformas obscenas, estatuídas através de contratos por ela mesma pensados e postos em prática.
Uma minoria, cujos humores institucionais oscilam entre o desaforo, a falta de convicções e a arrogância de quem se julga acima do céu e da terra.

Muitos deles procedem do esquerdismo, andaram encapuçados a defender os SUV’s (para quem não saiba, Soldados Unidos Vencerão), a espancar quem se lhe opunha, berrando por Mao e por Enver Hoxa, instaurando a contestação ininterrupta contra o PCP como forma superior e genuína do marxismo, e urdindo a intriga e a desconfiança nos locais de trabalho por onde passaram.
Em todos os governos saídos da normalização do 25 de Novembro encontramos dezenas de entre eles, impermeáveis a qualquer tipo de remorso ou a estremecimentos de carácter.
São os mais ardorosos defensores das maiorias absolutas, como garantia da sua permanência nos lugares de favor.

A maioria absoluta converte-se em poder absoluto.
Não há que escamotear.
As evidências não carecem de argumentos contrários.
Cavaco impulsionou, creio, até, sem saber muito bem o que fazia, um pensamento político não ideológico, como se tal coisa pudesse dispor de alguma consistência.
Os tecnocratas provêm desse almofariz.
Com vinte anos de atraso, emergiram os yupies, fauna regularmente tola e ignara, com uma afirmação constante de juventude, aliada à leveza, à frescura e à desenvoltura.

Perdemos, não uma década, mas muito mais, porque os estragos são duradouros.
Sofrendo de atroz iliteracia, amolgando o verbo e tropeçando nos pronomes para se estatelarem numa adjectivação alucinada, essa juventude tem, agora, 40, 50 e mais anos – e está em risco de ser corrida, por outra, arfante para lhe ocupar os lugares.

A maioria absoluta de Sócrates está cheia de ex-qualquer coisa, ele próprio ex-jota do PSD.
Não adviria muito mal ao mundo, acaso as convicções fundamentais não tivessem sido por eles abandonadas.
Justificam-se com a admissão de que o mundo mudou.
Mudou, e aceleradamente, é verdade.
Como também verdade é o facto de ninguém do Poder demonstrar qualquer interesse em enfrentar os problemas novos que despontam diariamente: a receita tem sido sempre a mesma.

O esvaziamento da sociedade, como entidade cívica, não tem encontrado resposta em nenhum sector.
Da política ao jornalismo, da educação à justiça, da saúde à segurança, da literatura ao cinema, do teatro às artes plásticas, as coisas vão de mal a pior. E, no entanto, há uma apetência pelo novo, pelo espírito de missão, pelo diálogo cultural entre gerações, totalmente inaproveitada.
O paradoxo da situação consiste, por exemplo, no seguinte: tanto na Imprensa, como nas Rádios e nas Televisões há excelentes profissionais – então, porque é que o resultado é tão mau?

A crítica ao proteccionismo de Estado, tão em moda nos editorialistas timbrados no esquerdismo, não encontra equivalente na crítica ao domínio do mercado.
A realidade histórica da globalização (ou seja: a vitória planetária do capitalismo) não representa uma infalibilidade fatal.
Uma outra inflexão, não tão subterrânea quanto se possa considerar, nasce do desassossego nascido da própria natureza da globalização.
A dimensão política da crítica é, por enquanto, escassa, mas determinante porque o seu eixo está fixado no sofrimento dos dominados.
Esta é a questão principal proposta aos partidos de Esquerda, sobretudo, como agora, no PS, que dispõe de confortável maioria.
Contudo, onde estão os textos teóricos?, as discussões fundamentais e fundamentadas?, a doutrina que espelhe a inquietação intelectual, ética e ideológica?

A década de Cavaco exerceu o poder baseado num economicismo serôdio. Uma Direita ressabiada e rancorosa aliara-se a homens novos, recém-saídos de uma adolescência prolongada, e aplicaram ao País as teses conservadoras e, até, reaccionárias, tão bem aceitas pela nossa cultura rural.
O PSD nunca foi social-democrata; assim como o PS, de socialismo, nem o mais leve cheiro. E o curioso é que nenhum dos dirigentes, antigos, modernos ou actuais de qualquer daqueles partidos experimenta algum sentimento de culpabilidade moral.

A circunstância de obter maioria absoluta não legitima nenhum partido a tripudiar sobre as normas democráticas mais rudimentares.
Recusar a ouvir o outro é alarmante sintoma de autoritarismo.
Há quem goste.
Assim como há comentadores sem perigo que condenam, com árduos adjectivos, a indignação da rua.
A rua pode ser, em democracia como em ditadura, a forma superior do protesto colectivo inconformado.
A rua é a mais solene e grave das advertências ao Poder, quando o Poder, mesmo democraticamente eleito, quase se traveste de tirania.

Remato, tomando de mão o conceito de D. Francisco Manuel de Melo, cujo quarto centenário do nascimento passa em Novembro: Desenganos de mau sabor é necessário tomá-los em hora de bom gosto.


B.B.

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1 Comments:

At 7 de março de 2008 às 23:55, Anonymous Anónimo said...

Um dos fenómenos a que estamos a assistir na Administração Pública é uma vaga de graxa das chefias com o objectivo de ficarem bem na fotografia junto dos dirigentes, como estes são nomeados segundo critérios de confiança pessoal ou política (o que vai dar no mesmo) andam todos empenhados em que o governo fique com boa opinião deles.

Os concursos para a nomeação de chefias do Estado não passam de uma imensa farsa, fazem-se simulacros de concursos para nomear os mais competentes que já estão escolhidos à partida. Como os dirigentes são escolhidos por confiança dos governantes todas a hierarquia acaba por ser nomeada da mesma forma, o secretário de Estado nomeia o director-geral da sua confiança, o director-geral escolhe o subdirector-geral, este usa o mesmo critério para escolher os directores de serviços que, por sua vez, têm o mesmo cuidado na escolha dos chefes de divisão. O resultado é uma Administração Pública cuja hierarquia se vai transformando numa legião de funcionários que tudo fazem para servir bem o chefe.

Desde o simples sargento da GNR ao inspector-geral da ASAE desdobram-se em esforços para interpretar os desejos do “chefe” a fim de lhe agradar, se o chefe evidencia tiques de autoridade todos os imitam sendo desastrosamente autoritários, se o chefe gosta de ar ares de eficácia todos tentam adquirir tiques que lhe dê um ar de eficazes.

É evidente que situações como a visita da PSP a um sindicato ou como agora sucedeu com uma disparatada visita a uma escola não passam de fait divers, mas começam a ser demasiado frequentes para que não mereçam uma reflexão. Desta vez alguém da PSP achou que devia ser eficaz e lembrou-se de fazer um levantamento do número e origem dos manifestantes, alguém em Ourém quis ser ainda mais eficaz e foi perguntar à escola. Da próxima vez algum comandante da GNR ainda se lembra de solicitar a pré-inscrição dos manifestantes para melhor lhes assegurar a liberdade de manifestação, da mesma forma que um ex-director-geral dos Impostos tentou recolher dados pessoais de grevistas.

A cultura da graxa está a instalar-se na Administração Pública, a forma mais eficaz de dar graxa é imitar o chefe nos seus tiques, se o chefe usa cabelo curto vão ao barbeiro, se o chefe veste cinzento todos andam de cinzento, se o chefe é exigentes todos se armam em exigentes. Medem a sua competência pela capacidade de imitar o chefe, lembram-me o tempo em que os militantes do PSD e do CDS andavam todos de casacão verde para imitar Freitas do Amaral quando foi candidato à Presidência da República.

Se os defeitos de Sócrates não são agradáveis, ver toda uma legião de gente menor a imitar esses defeitos tornam a Administração Pública ridícula. Sócrates não tem culpa, mas isso não significa que não tenha responsabilidades, ao não ter adoptado decisões exemplares em casos como a DREN ou a cigarrilha do senhor da ASAE disse às tropas que apreciava os seus comportamentos excessivos.

 

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